Boyhood é
um filme solar. Ao
retratar 12 anos na história de uma família, com filmagens com o
mesmo elenco fixo principal, reunido a cada três anos, trocando a
rigidez matemática dos roteiros milimetricamente construídos por
uma sensação difusa de naturalismo e maleabilidade, o filme de
Richard Linklater traz um sopro de novidade em um momento de profunda
crise do cinemão hollywoodiano, sobrepujado pelo fenômeno das
séries televisivas.
O
foco privilegiado na trajetória do garoto Mason (Ellar Coltrane) –
que começa o filme com cinco anos e o termina prestes a completar
18, ingressando na universidade – faz de Boyhood
uma trama sobre amadurecimento, ritos de passagem, dissolução da
infância na adolescência - e desta na juventude. Mas a riqueza da
narrativa e a força dos personagens secundários dão relevo a
outras temáticas, como relações familiares, a maternidade,
sexualidade e afeto, a relação entre natureza e construcionismo
social, ética pessoal versus ética coletiva, o questionamento do
“sonho americano”.
Processos
de identificação
A
captação física dos efeitos da passagem do tempo, embora
represente um desafio para a construção da profundidade psicológica
dos personagens, tende, paradoxalmente, a intensificar por mimese a
identificação do espectador com eles – sobretudo quando são
apresentados ainda crianças, como é o caso. Facilita também o
afloramento de estados emocionaism no espectador, ao invocar, através
da interrelação dos personagens, emoções inerentes à passagem do
tempo, como saudade, melancolia, vertigem, (receio de) perda ou de
solidão – processo que, em dois ou três pontos-chave de Boyhood,
culmina em epifanias.
Mas
seria exagero atribuir o impacto do filme ao acompanhamento do
envelhecimento do elenco ao longo de 12 anos, ou mesmo considerar
isso seu mérito por excelência. Na verdade, sem um pré-roteiro bem
amarrado – sujeito a revisões pontuais periódicas ditadas pela
própria evçução da dinâmica da equipe - e sem um elenco afiado,
as possibilidades de malogro se multiplicariam com a adoção de tal
esquema.
Road movie atípico
Com
uma gramática narrativa que varia entre tomadas exteriores (que por
vezes funcionam como alusão ou metáfora de aspectos da vida
sócio-política nos EUA no périodo, eventualmente reforçados pela
trama) e tomadas interiores em que a direção de arte, determinante,
chega a ter função narrativa, tipificando as mudanças de endereço
e de condição social da família, Boyhood não deixa de ser,
à sua maneira, um road movie. (Filiação que o nome da
produtora de Linklater, Detour, corrobora ao aludir ao título de um
cultuado film
noir, dirigido em 1945 por Edgar G. Ulmer, e filiado a
esse que é considerado o subgênero cinematográfico em que melhor
confluem a tematização da identidade pessoal e da identidade
nacional.)
Pois,
parafraseando o diagnóstico feito por Walter Salles em um texto
sobre road movies,
de que “os mais interessantes são justamente aqueles em que a
crise de identidade do protagonista da história reflete a crise de
identidade de uma cultura, de um país”, não parece despropositado
sugerir que o processo de amadurecimento, de superação da infância
rumo à juventude, vivenciado pelo protagonista de Boyhood –
e por cada membro de sua família – ecoa a trajetória dos Estados
Unidos em busca da superação do cenário de terra arrasada da Era
Bush em prol de um novo país, simbolizado pela candidatura Obama
(passagem à qual, aliás, mais de um personagem alude).
Elenco em destaque
Tudo isso, somado, conflui para fazer de Boyhood um filme marcado por um humanismo profundo. E que, embora, como já dito, não se furte a eventualmente tocar emocionalmente o espectador, o faz sem a pieguice adocicada ou o moralismo recorrente em que o cinema norte-americano costuma incorrer quando tematiza relações familiares.
Num elenco em que Patricia Arquette brilha, valendo-se de muita técnica
para simular naturalismo (mas sem conseguir atingir o pathos
dramático desejável em duas
das cenas mais intensas) e a perfomance do jovem ator principal é convincente,
mas, com exceção de um ou outro momento - destsacadamente a sequência em que lembra ao pai a promessa de dar-lhe um carro - sem chegar a ser brilhante, é sobretudo através de personagens secundários
que o referido humanismo aflora com mais vigor. Notadamente no que diz respeito à irmã
do protagonista, vivida por Lorelei Linklater (filha do diretor,
nascida no México), e desde criança tipificada como irõnica e
contestadora, e ao ex-marido malandro e a princípio loser
interpretado por Ethan Hawke, cujo amadurecimento ao longo da
narrativa é um dos achados do filme (e valeu ao ator sua quarta
indicação ao Oscar, três delas por performances em um filme
dirigido por Linklater).
Imprevisibilidade
Graças
a essa combinação feliz de fatores, e sem explosões, efeitos
especiais de última geração ou um roteiro com rocambolescas idas e
vindas no tempo – praga tarantinesca que infecta as produções
hollywoodianas das duas últimas décadas - Boyhood logra
algo raro no cinema hollywoodiano atual: mantém-se surpreendente do
início ao final.
Tem-se,
a maior parte do tempo, a impressão de que tudo pode acontecer na
narrativa e mesmo os cinéfilos mais escolados em predizerem o rumo
da trama através da lógica do roteiro, pelo que os padrões da mise en scène do
diretor antecipam, ou mesmo pela escalação do elenco, tendem a ser
surpreendidos pela fluência imprevisível da narrativa, que prende o
tempo todo a atenção dos espectadores com uma história cuja beleza
deriva, paradoxalmente, de ser plausível e comum.
P.S. É certo que o avanço tecnológico melhorou muito a qualidade das sessões caseiras de filmes, mas Booyhood é daqueles filmes cujas potencialidades se multiplicam e se revelam plenamente se vistas em um cinema de tela grande e som potente.
(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali, de lá e dacolá)
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