As
eleições presidenciais deste ano apresentam uma peculiaridade que
suscita preocupações: nunca, no período pós-ditadura, um número
tão grande de eleitores vê-se desprovido de candidaturas que
atendam às suas prioridades políticas.
Embora
tal fenômeno seja mais perceptível entre parcelas à esquerda –
desde ex-comunistas e brizolistas, passando por adversários
históricos do neoliberalismo e por desencantados com o "novo
PT" -, ele está longe de se restringir a tais estratos,
incorporando desde tecnocratas e administradores com perfil mais
conservador até pessoas sem coloração política, mas que têm, em
comum, a ânsia por uma maior clareza de prioridades e planificação
efetiva na administração do Estado, a médio e longo prazos.
Como
demonstram as pesquisas, soma-se a esse grupo um volumoso contingente
de jovens entre 16 e 22 anos, que se sentem atraídos à política,
mas não se identificam nem com os partidos mais conservadores nem
com a autointitulada esquerda capitaneada pelo PT, a qual assomou ao
poder quando ainda eram crianças e tende a lhes parecer parte
integrante do establishment.
Carência de planejamento
Para
além da diferentes visões de mundo e da orientação que cada grupo
gostaria que fosse dada às principais políticas públicas, os une a
exasperação com o eterno improviso, a postura meramente reativa que
tem caracterizado as políticas federais desde a volta da democracia,
seguida da convicção de que se faz necessário, para o próprio
avanço institucional desta, que ao menos os setores prioritários –
Saúde, Educação, Segurança, Economia, Transportes – passem a
ser objeto de políticas e metas predeterminadas, para além do
imediatismo estatístico e dos resultados forjados para efeitos
eleitorais.
Embora,
como já sugerido, a insatisfação reprimida que gerou tal demanda –
explicitada nas Jornadas de Junho – seja da responsabilidade de
todas as forças políticas que se revezaram no poder ao menos desde a
redemocratização, ela é particularmente aguda no que se refere ao
PT, já que a aliança comandada pelo partido, que se elegeu
prometendo grandes mudanças, está prestes a completar 12 anos no
comando do país, porém sem efetivar transformações estruturais em
nenhuma dessas áreas, quanto mais planejadas a médio e longo
prazos.
Ao
contrário: a hesitação (para regulamentar a atividade midiática,
por exemplo), os avanços e recuos (como na tentativa, logo
abandonada, de reduzir os juros a níveis civilizados) e a sensação
de improviso e de imediatismo eleitoral têm dado o tom das
administrações Lula e Dilma, que têm o mérito de se diferenciar
das anteriores por priorizarem o social – notadamente o combate à
pobreza -, mas mantendo intacto o lucro dos situados no topo da
pirâmide e sem reestruturar efetivamente as áreas sociais sob
alçada do Estado.
O
caso da Saúde
Tomemos
o exemplo da Saúde, cuja profunda crise é admitida até por José Gomes Temporão, ministro da pasta durante todo o segundo governo Lula: a prometida reforma e expansão do SUS, de forma
a torná-lo um sistema verdadeiramente universal de saúde pública
de qualidade, foi deixada de lado como projeto, substituído pela
adoção do Mais Médicos. Este programa tem o mérito de levar
atendimento básico a regiões historicamente desassistidas, mas está
longe de configurar um avanço tanto na estrutura laboratorial e
hospitalar quanto no tratamento sistêmico e avançado de patologias
de média e alta gravidades (sem deixar de frisar que se vale de condições
empregatícias sui generis, que clamam pela ação do Ministério
Público do Trabalho, se este tivesse independência e coragem para tal).
Para
completar, concomitantemente à implementação do Mais Médicos,
teve lugar, no interior do sistema público de saúde, uma
questionável reformulação de prioridades e de horários de atuação
de profissionais, além de um claro retrocesso em áreas que o Brasil
vinha tendo um desempenho acima da média - como o combate à AIDS ou
o fornecimento contínuo e gratuito de medicamentos de primeira
necessidade. Hoje, ao contrário do resto do mundo, os casos de AIDS
crescem no Brasil e abundam relatos de falta de medicamentos,
inclusive daqueles usados para dores crônicas em pacientes com
câncer.
Concomitante
a tais problemas, há a negligência governamental com os planos de
saúde para os quais são impelidos setores que vão da baixa classe
média pra cima, temerosos do festival de horrores do SUS, com suas
macas em corredores e óbitos à porta de hospitais. Tornaram-se
rotina, nos últimos anos, os aumentos abusivos, muito acima da
inflação, que levam ao desespero a clientela de aposentados cujos
rendimentos são reajustados a conta-gotas. Também tornou-se rotina,
entre conveniados, a necessidade de se recorrer à Justiça para
conseguir a autorização para cada exame ou procedimento mais caro
que o paciente vier a necessitar. E são frequentes as denúncias de
que as administradoras dos planos retaliam os clientes que as
processam judicialmente. Tudo isso sob a vista grossa do Ministério
da Saúde de um governo dito de centro-esquerda e trabalhista.
Mais
do mesmo
Esse
processo ao qual se assiste no campo da Saúde – da abdicação de
um projeto verdadeiramente democratizante e reestruturador em prol de
medidas de baixo custo, porém de impacto eleitoral – se repete, em
formatos diferentes mas dinâmica similar, em todas as outras áreas
sociais ditas prioritárias. No ensino superior, por exemplo,, ao
aumento exponencial do número de universitários - alardeado como
intrinsecamente positivo - não corresponde um aumento minimamente
proporcional de professores, laboratórios e bibliotecas, num modelo
que, a pretexto de expandir o ensino superior, o está, na prática,
sucateando. Colabora para tanto a defasagem salarial dos professores
universitários, tratados a pão e água pelo governo Dilma desde
que ousaram se valer do direito constitucional à greve para obrigar a
mandatária a dialogar. Em vão.
Ao
eleitor que hoje desaprova esse estado de coisas na Saúde e na
Educação não é oferecida alternativa pelos candidatos
oposicionistas. E é isso que torna as eleições em curso
particularmente frustrantes: nenhum dos três candidatos hoje
competitivos – Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos –
apresenta, em seus respectivos programas de governo, um planejamento
efetivo para Saúde, Educação e demais áreas sociais que se
diferencie, em linhas gerais, das práticas governamentais correntes
para tais setores. É inevitável a sensação de mais do mesmo.
Sob o jugo do neoliberalismo
Mas
a área que mais evidencia a ausência de propostas alternativas de
governo é a economia. Enquanto Aécio encarna o retorno ao
neoliberalismo mais estreito, cujos efeitos sociais devastadores
sentiram na carne os brasileiros que viveram a presidência Fernando
Henrique, os discursos da dupla Eduardo Campos e Marina Silva parecem
antes apontar para o retorno à ortodoxia de manual do que oferecer
uma alternativa ao "neoliberalismo arrependido" praticado
pelos governos petistas. Estes podem até eventualmente ter ousado expandir
o investimento público, mas, ante o mínimo rugido do mercado, se
apressaram a reafirmar a fidelidade ao tripé econômico neoliberal –
altos superávits primários, dólar flutuante e metas de inflação
- e demais badulaques herdados do Consenso de Washington os quais o
PT, na oposição, sempre abominou.
O
eleitor que vislumbra na atual crise mundial a
oportunidade da ascensão de um modelo de gerenciamento econômico
que supere a orientação neoliberal e o que ela significa de
submissão estrutural da América Latina à "ordem"
imperial se vê, uma vez mais, em estado de orfandade, em um cenário
eleitoral intrinsecamente conservador.
E
isso é particularmente grave não apenas pelos efeitos em si de tais
orientações macroeconômicas – e pelas questões de submissão
colonialista mencionadas - , mas porque delas derivam a forma como
serão tratados temas de suma importância neste momento do país,
com destaque para aqueles derivados da relação entre modelo de
desenvolvimento, direitos humanos e políticas públicas.
Retrocesso
democrático
Com
efeito, o (primeiro?) governo Dilma chega ao fim com um grave déficit
na área dos Direitos Humanos, derivado de um modelo de
desenvolvimento no pior estilo "Brasil Grande", arcaico e
impositivo, que legou ao país um genocida indígena extemporâneo e
forneceu o combustível que alimentou os protestos de Junho. E a
truculência com a qual os protestos foram tratados pelo governo
federal desde então, sob o patrocínio do ministério da Justiça de
Cardozo e o uso indiscriminado da Força Nacional e das Forças
Armadas contra a população desdobra-se, hoje, numa criminalização
dos moimentos sociais incompatível com a democracia e patrocinada,
nos âmbitos estadual e federal, por partidos e políticos que
orbitam (ou até há pouco orbitavam) tanto em torno da situação
petista quanto da oposição tucana. Campos e Marina, de sua parte,
têm sido pouco claros e enfáticos em condenar tal retrocesso
democrático.
Inclusive
e para além do que significa como retrocesso institucional,
afetando a própria evolução da democracia brasileira, a soma de
tal repressão com o conservadorismo atávico no trato das políticas
públicas torna a um tempo mais evidente e mais intenso o viés
retrógrado que hoje afeta a relação entre política e cidadania no
país. Ao impedir a renovação da prática administrativa no
interior do campo político institucional e a, ao mesmo tempo, cercear
a plena incorporação da política pelos cidadãos, tal mecanismo
revela-se o grande responsável pela manutenção estrutural de nossa
democracia em termos precários e relativos.
Pois
a concepção da política como arena de choques, alianças e
inter-relações entre micropoderes, forjada por Foucault, implica
não somente na expansão de seu locus para além dos limites da
política institucional, mas na atomização e inter-relação de
seus próprios entes (e temas) no interior desta. Foi no bojo de tal
processo que a dicotomias básicas do cardápio político-eleitoral –
destacadamente comunismo x capitalismo, ou marxismo x liberalismo –
vieram a se somar, ao longo dos anos 70, na forma de partidos ou
organizações, as plataformas ecológicas ou feministas, entre outras
de menor destaque.
Políticas
arcaicas
De
tal cadinho de cultura deriva a expansão da plataforma política
para além dos temas sociais clássicos mencionados parágrafos acima, com a
incorporação de demandas conectadas à sexualidade, ao corpo, ao
comportamento, à apreensão estético-biológica do social em sua
mediação com as Leis e a Política. Eis porque, enquanto boa parte
da arena pública do mundo civilizado debate temas
como isonomia de direitos ente heterossexuais e homossexuais,
legalização da maconha ou descriminalização do aborto, entre
tantos outros, no Brasil tal agenda vem sendo sistematicamente
travada por todos os partidos e seus candidatos, temerosos do poder
do voto religioso.
Que
isso ocorra com a maioria dos candidatos competitivos nas eleições
2014 é algo lastimável, mas até certo ponto compreensível. Que
não haja sequer uma candidatura competitiva capaz de ousar um
programa que inove quanto aos temas clássicos e, ao mesmo tempo, dê
a devida atenção à biopolítica, é revelador de nosso atraso
institucional e do quanto a democracia pós-ditadura tem falhado em
fazer avançar a prática política no pais.
Tudo
somado, no pleito atual os eleitores parecem condenados a optar entre
a manutenção do poder pelo poder nas mãos petistas, sua outorga à
oposição tucana elitista e de proverbial insensibilidade social, ou
ao museu de grandes novidades da dupla Campos/Marina, que até
anteontem compartilhavam o poder de turno. É isso ou o voto nulo de
protesto.
(Imagem retirada daqui)
Um comentário:
Quino sempre ótimo! Rs...
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