A
política tradicional, com suas agremiações partidárias,
participação popular via eleições e composição de alianças
para fins eleitorais e/ou governamentais vive, há tempos, uma crise
de representatividade. Esta se traduz, no Brasil, na concepção que
boa parte da população tem da política como o locus da corrupção
e dos negócios escusos, passa pelos percentuais nunca desprezíveis
de votos nulos ou em branco nas eleições e culmina, a partir de
junho, com a eclosão simultânea de manifestações populares.
Dada a
persistência de tais problemas – e o agravamento da repressão aos
protestos a níveis inaceitáveis numa democracia –, há, em 2014, a
forte possibilidade de que novas e mais volumosas manifestações
assomem às ruas, possibilidade que cresce ainda mais com a Copa, a
proximidade das eleições e a insatisfação manifesta de setores da
sociedade contra um governo que se diz progressista mas não se digna
sequer a negociar com os servidores públicos – os quais,
corroborando este prognóstico, acabam de aprovar em plenária
indicativo de greve para o primeiro trimestre do ano que vem.
A
política tradicional em xeque
A
despeito das críticas relativas a uma suposta falta de objetividade,
comumente feita aos protestos (e a meu ver improcedentes), seria
obtuso deixar de reconhecer que eles evidenciam uma insatisfação
aguda e generalizada com os rumos da política e com o estado de
coisas no país e nas cidades - como evidencia a reação específica
contra o baixo grau de mobilidade e de deterioração do espaço
urbano, no que não deixa de ser também uma crítica estética da
política.
Tudo
somado, embora alguns continuem insistindo em não ver, o alvo comum
aos protestos tem sido a política tradicional, em sua atual versão
desideologizada e publicitária, em que candidatos são vendidos como
sabonetes, as alianças não se firmam em torno de afinidades
programáticas, mas de interesses comezinhos – em sua maioria
inconfessáveis e inconfessados - e os discursos eleitorais refletem
antes um ajuste ao que o consumidor/eleitor quer ouvir do que um
comprometimento com um programa de governo.
Não se
pode compreender em sua complexidade o fenômeno Marcelo Freixo nas
eleições de 2012, ou a disparada de Marina Silva no pleito
presidencial de dois anos antes, sem levar em conta a incorporação
de novas demandas à política tradicional e o lugar prioritário
que, para um número crescente de eleitores, elas ocupam. Descartar
tais fenômenos eleitorais como resultado de meras articulações "da
direita" ou procurar desqualificá-las como fenômenos típicos
de uma burguesia fútil – os "coxinhas", xingamento
máximo do petismo -, como de ordinário vem fazendo os que defendem
o atual status quo político, resulta em uma crítica não apenas
preguiçosa, desatenta e injusta, mas tendenciosa e autocentrada, o
que acaba por ressaltar o quanto, a despeito do discurso legalista,
se encontra embebida em um wishful thinking de viés partidário.
Biopolítica
Tal
postura crítica é a expressão de uma consciência culpada. Pois,
mais do que qualquer outro partido, o PT muito tem contribuído para a
decepção com a política. Ao nível político eleitoral, ao
sacrificar suas origens esquerdistas com a adoção de um pragmatismo
aético, um vale-tudo em nome da "governabilidade" que
inclui alianças por demais elásticas com ícones do conservadorismo
e da transgressão ética, a transformação do aguerrido Lula em
"Lulinha Paz e Amor" e, mais recentemente – e mais grave
-, com a presidente Dilma Rousseff traindo o compromisso
antiprivatista que assumira em campanha e promovendo "concessões"
em série.
E, ao nível politico administrativo, por negligenciar as políticas de gênero (devido a compromissos com líderes religiosos) , a questão agrária e os direitos indígenas (em prol do agronegócio e do latifúndio), o avanço institucional da democracia (como forma de manter e ampliar a hegemonia política por métodos que antes o partido condenava).
E, ao nível politico administrativo, por negligenciar as políticas de gênero (devido a compromissos com líderes religiosos) , a questão agrária e os direitos indígenas (em prol do agronegócio e do latifúndio), o avanço institucional da democracia (como forma de manter e ampliar a hegemonia política por métodos que antes o partido condenava).
Essa
visão limitadora e superada de política, contraposta à noção
elaborada por Michel Foucault de "dispositivos de poder" –
concebidos como mecanismos que transpassam o institucional e o não
institucional, se manifestam através de discursos estruturados e
ordenam os corpos humanos sob lógicas e propósitos pré-determinados
- demonstra as limitações de se pensar o ativismo social apenas na
perspectiva de hegemonia político-eleitoral e ocupação de lugares
no aparelho do Estado, como defende o atual discurso governista para
justificar a submissão à "pequena política" de que fala
Gramsci.
Os
protestos apontam para a superação desse anacronismo e para um
cenário caro à esquerda contemporânea, menos hierarquizado e no
qual a democracia direta expande a política para além dos gabinetes
e das urnas. Em tal dinâmica, a política tradicional dá lugar à
universalidade e à capilaridade inerentes às questões biopolíticas
(erigindo um novo ethos), com lugar proeminente à denúncia
sistemática - e a esforços concretos de superação - dos limites e
do caráter predador do capitalismo e da sujeição corporal e
repressão libidinal por ele imposta às formas de vida (forjando um
novo pathos). Tudo isso em um contexto em que o desenvolvimento
tecnológico acaba por gerar uma sociedade integrada em redes que
estimulam a interação e o debate e ambicionam renovar as formas de
participação política (através de um novo logos).
A
desqualificação como estratégia
Evidenciando
o imenso passivo do atual governo federal em relação a tais
demandas, a reação dos governistas aos protestos populares tem
sido, em sua maioria, como já mencionado, negativa e marcada por
tentativas de desqualificação baseadas em distorções, paranóia
ou boataria. Proliferou-se o esforço para confundir o fastio dos
manifestantes para com a politica tradicional com um alinhamento
automático com o autoritarismo. Trata-se de uma generalização
inexata, imbuída de uma agenda político-partidária própria, que
propositalmente confunde a crítica a aspectos específicos da
relação entre capitalismo, marketing e política – e,
indiretamente, à lenta evolução e aos avanços e retrocessos
pontuais de nossa democracia - com uma adesão automática dos
manifestantes a eventuais alternativas suprademocráticas. Ante a
reação contra o atual estágio da política no país, conservadores
e governistas se unem em uma falsa acusação: a de que os
manifestantes negam a política. O jornalista Renato Rovái, em um
texto no qual identifica "um novo padrão
de demandas e lutas sociais" advindo da passagem da era
industrial para a era informacional, refuta com propriedade tal
estratégia desqualificadora:
Essa é uma daquelas respostas simples que não buscam dialogar com o problema. Entre outras coisas, porque nunca se discutiu tanto política como nesses anos de redes em redes. Essas redes nascem nas ruas e se articulam na internet. Nascem na internet e se manifestam nas ruas. Não são produzidas em escala industrial e nem em linhas de produção. E nelas há forças centrais, mas não há um centro. E as forças centrais podem inclusive ser contraditórias.
Esgotamento
do modelo
Assim, a
despeito dos esforços desqualificadores dos que temem o embate
verdadeiramente democrático, o que está em jogo desde os protestos
de junho – e deve ter um papel cada vez mais preponderante no
universo político brasileiro - é a qualidade da democracia e,
nesta, as formas e o grau de participação dos cidadãos e cidadãs.
Porém, na atual conjuntura, mesmo se se reafirma - ainda que de
forma reticente - o credo na democracia liberal, este não precisa
ser confundido com um aval à eternização do formato no qual
historicamente tem atuado a política institucional. Pois esta, no
âmbito da já não tão recente mas ainda precária democracia
brasileira, tem se revelado não apenas anacrônica, mas, em diversos
aspectos, insuficiente. Em um artigo brilhante, o professor Lincoln
Secco resume o atual dilema político brasileiro:
"O PT não tem mais o que apresentar de novo porque isso significaria dar o passo seguinte: desagradar o capital financeiro e substituir a democracia racionada pelo regime da abundância de direitos. Também não pode continuar indefinidamente com sua política de conciliação de classes. A democracia racionada dos partidos não consegue mais comportar em seu estreito círculo as contradições sociais que ela mesma engendrou. Uma vez mais estamos diante do dilema: mais democracia ou mais um passo atrás."
Para
muito além do fla-flu PT x PSDB ou das disputas eleitorais em que os
partidos não têm programa ou ideologia e descumprir o que é prometido em campanha (inclusive pela
autointitulada esquerda ora no poder) tornou-se prática banal, ante a qual a população se cala e o TSE
não se manifesta, será em torno dos grandes temas suscitados pelos
protestos de junho que se darão os embates verdadeiramente
relevantes do ano eleitoral de 2014. Mesmo se a mídia corporativa e
os ditos blogs progressistas – cada vez mais parecidos entre si, não obstante suas divergências –
fingirem que nada está acontecendo.
(Foto
retirada daqui)
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