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terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Haddad pode aliar política e cultura

Fernando Haddad assumiu hoje o cargo de prefeito de São Paulo gerando muita expectativa e com enormes desafios à frente. Alguns são inerentes à maior cidade de um país que vem, nos últimos anos, passando por um processo de realocação positiva de classes sociais e, em decorrência, de mudanças no padrão de consumo de estratos da população - o que gera maior demanda por serviços e tende a afetar negativamente a ecologia urbana.

Outros derivam do cenário de terra arrasada deixado por oito anos de gestão do demotucanato, caracterizada pela insensibilidade social, pelo autoritarismo no trato com os cidadãos e pela leviandade na administração da coisa pública, cuja maior evidência é a contraposição dos péssimos serviços de transporte, saúde e educação à dívida de R$69 milhões que lega ao prefeito recém-eleito. (A propósito, a Lei de Responsabilidade Fiscal é para todos ou só para uns poucos?)

A gestão Kassab, que chega ao fim amplamente rejeitada pela população, pode ser resumida em três itens, inter-relacionados entre si: extração de benefício privado da coisa pública, abandono da cidade e da população (há bairros periféricos que simplesmente deixaram de ser atendidos por linhas de ônibus aos finais de semana) e moralismo populista, visando gerar factoides ocasionais, de modo a dar a impressão de governabilidade. O resultado é o caos atual.

Para enfrentar o desafio de reverter esse quadro, Haddad cercou-se de um secretariado que prima por uma formação acima da média, com nomes como o da respeitada economista e professora da USP Leda Paulani (Planejamento, Orçamento e Gestão), de Juca Ferreira, que possivelmente foi, ao lado de Gilberto Gil, o melhor ministro da Cultura que o país já teve, e do arquiteto e doutor pela FAU-USP Fernando de Mello Franco (Desenvolvimento Urbano), encarregado de reformar o polêmico projeto de reurbanização do centro de São Paulo, Nova Luz. Em meio a outros nomes de maior ou menor destaque, macula o secretariado a inclusão do espancador de mulheres Netinho de Paula (Igualdade Racial) e, graças ao acordo pré-eleitoral com Maluf, a cessão da socialmente crucial secretaria da Habitação a uma eminência parda do PP.


Existe amor em SP?
Em seu discurso de posse, cujo mote foi "derrubar o muro da vergonha que separa a cidade rica da cidade pobre", o novo prefeito elencou suas prioridades, concedendo natural e compreensível primazia a questões eminentemente econômicas, com o combate à miséria e a busca do reequilíbrio das contas públicas disputando cabeça a cabeça a primeira colocação. Vêm secundados por uma pauta característica do que seria um governo de centro-esquerda, com destaques para itens como saúde pública, assistência social e moradia popular.

Discursos de posse costumam não passar, no Brasil, de peça de ficção e entretenimento, como bem sabem aqueles que continuam esperando que Dilma Rousseff dê à educação a prioridade que, em seu discurso de exatos dois anos atrás, reiteradas vezes prometeu – e que a realidade tem tratado de reduzir a mera conversa mole, como a recusa em sequer negociar com os professores federais e a truculência com que foram tratados na longa greve de 2011 exemplificam cabalmente. Feita esta ressalva, a fala de Haddad destaca-se por duas razões:

  1. Denota planejamento e organicidade, ao distinguir com clareza prioridades, problemas evidentes e eventuais e objetivos para enfrentá-los, o que o diferencia dos discursos recheados de platitudes genéricas;
  2. Mais importante, ousa avançar para além do pragmatismo burocrático e do convencionalismo político, evocando uma referência cultural – a canção de Criolo -, para, desmentindo-a, afirmar que "existe amor em SP" e conclamar por um novo padrão de convivência na metrópole que cultive "a solidariedade, a fraternidade e o amor ao próximo".

Este último movimento, somado a atenção que Haddad demonstrou ter, em declarações anteriores, para a relação entre cultura e política, traz em si um potencial que, se devidamente trabalhado, pode significar um diferencial do novo prefeito em relação a seus antecessores na cadeira da prefeitura, petistas ou de oposição: a capacidade de estabelecer um diálogo com os setores – jovens, em sua maioria – que anseiam por uma práxis política que incorpore elementos culturais e estéticos ao que veem como domínio exclusivo da economia, do gerenciamento administrativo strictu sensu e dos jogos de poder.


O fator cultura
Trata-se de um anseio difuso, mas facilmente captado por quem convive com a juventude. Que, na política tradicional, tal anseio seja passível de aferição em fenômenos que comumente despertam a ira dos petistas de carteirinha – como a candidatura de Marina Silva à presidência ou de Marcelo Freixo à prefeitura carioca – é mais uma evidência das potencialidades inauditas de Haddad do que uma evidência demeritória contra ele.

Seja como for, para além da ênfase que o novo prefeito venha a dar ao que se convencionou restritivamente chamar de "questões sociais" e à economia, as potencialidades de intervenção no cenário cultural – e, portanto, na autoimagem – da cidade mostram-se evidentes. Para isso, é preciso trabalhar com presteza para que a cidade volte a ter uma identidade cultural e que a cultura deixe de estar a reboque do mercado – como esteve na última década -, como objeto de consumo virtualmente exclusivo da elite.

Nos últimos anos, os espaços culturais sob a administração da prefeitura foram sucateados e a "Virada cultural" tornou-se praticamente o único evento a atrair a população de média e baixa renda – além de muita suspeição em relação aos contratos firmados entre prefeitura e representantes dos artistas. A gestão de Marilena Chaui à frente da secretaria de Cultura na gestão Erundina permanece como um exemplo de uso inteligente e democrático do aparato municipal de cultura, destacadamente do Centro Cultural São Paulo, que tem ótima localização e facilidades de acesso. Um exemplo a ser estudado.

Redimensionada e ampliada pelas facilidades trazidas pela tecnologia digital e pelo tutano antenado do secretário Juca Ferreira, a cultura, se não ficar cerceada pelos ditames da economia, tem tudo para ser um elemento de distinção não apenas da gestão, com benefícios evidentes à cidade, mas do perfil do próprio Haddad como político, que ora começa a ser definido.


(Foto retirada daqui)

Um comentário:

Marc Pereira disse...

Depende do que Haddad entende sobre cultura. Se for isso aí que aparece nas TVs e rádios, estamos fritos.