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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Genoino e os dilemas éticos da esquerda

A posse de José Genoino como deputado federal eleito, além de provocar as reações de praxe dos setores conservadores que, desde a UDN nos anos 50 até o corrente conluio entre tucanos e mídia, reduzem ao denuncismo e a um moralismo seletivo sua ação política eivada de golpismo, dividiu opiniões no próprio campo da esquerda, entendido aqui na ampla acepção do termo, ou seja, incluindo o PT, que completa uma década no comando do país sob cerrado questionamento quanto a seu perfil programático-ideológico e ao lugar que ocuparia no espectro político do país.

Em tal seara, Vladimir Safatle, que tem se revelado um dos mais profícuos e, ao mesmo tempo, argutos analistas da política e de suas relações com a cultura, e Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul, ministro das Cidades no governo Lula e figura histórica do PT, do qual foi um dos fundadores, estão entre os que se posicionaram contra a posse de Genoino. Embora a argumentação de cada um deles divirja nas filigranas, seu sentido geral é o mesmo: o Partido dos Trabalhadores, que se projetou no cenário político nacional com um discurso anticorrupção e que assomou ao poder prometendo uma nova forma de gestão da coisa pública – mais transparente, mais aberta à participação popular, isenta das falcatruas a que a maioria dos partidos recorre de forma rotineira -, deve satisfações à opinião pública por ter paulatinamente abandonado tais avanços e incorrido em práticas ilegais (cabe sublinhar que, à revelia do julgamento do "mensalão", os próprios petistas reconhecem ter recorrido ao caixa 2).

Em um artigo que gerou muita polêmica, Safatle chama a atenção para o fato de que os mecanismos de democracia direta, "como o orçamento participativo, sumiram até mesmo da esfera municipal do PT". Enquanto as críticas de Dutra concentrem-se no âmbito do partido e no que a posse de Genoino possa causar ao "sentimento partidário", o centro da preocupação do filósofo da USP é o quanto o futuro da esquerda no Brasil pode vir a ser afetado pelos desdobramentos da negligência do PT para com as bandeiras éticas que sempre defendera. Em um parágrafo finalizado de forma irretocável, ele anota:

"Para que todos não paguem por isso diante da opinião pública, há de se dizer claramente que não é a esquerda brasileira que foi julgada no mensalão, mas um setor que acreditou, com uma ingenuidade impressionante, poder abandonar a construção de novas práticas políticas sem, com isso, se transformar paulatinamente na imagem invertida daquilo que sempre criticaram."



Indícios de indoneidade
Já os defensores da posse do político cearense radicado em São Paulo, como os jornalistas Paulo Moreira Leite – que escreveu uma emocionada defesa do direito de Genoino à posse - e Paulo Nogueira, insistem no aspecto legal strictu sensu - o direito indubitável que o suplente de deputado, ao ser eleito pelo povo, tem de tomar posse quando o titular desocupa a cadeira. Nogueira - que escreveu uma "Carta aberta aos indignados com a posse de Genoino" – elenca ainda o histórico de lutas de Genoino "pelo país" e a alegação de que, após décadas de atuação parlamentar, seu patrimônio se restringiria a uma casa no Butantã, bairro de classe média alta paulistana.

Longe de mim questionar tais méritos. Penso que o país hoje democrático deve uma permanente homenagem àqueles que lutaram contra a ditadura militar, notadamente aos que foram vítimas de tortura praticada pelo Estado. Considero também que, num meio político em que os álvaros dias da vida ostentam patrimônios milionários de origens não esclarecidas, soa, a princípio, como evidência de honestidade e de frugalidade os relativamente modestos bens que Genoino declara possuir.

Porém, por mais meritórios que sejam tais quesitos, é forçoso reconhecer que nem o passado de lutas de Genoino, nem seu patrimônio modesto são determinantes de sua inocência das acusações que sofrera no julgamento da AP 470, no qual, não obstante a ausência de provas factuais, foi condenado a seis anos e 11 meses por corrupção passiva e formação de quadrilha.




Para além do "mensalão"
Na minha opinião pessoal, Genoino acertou em tomar posse – e o PT em apoiá-la. Primeiro, porque, após o grave atentado ao equilíbrio dos três poderes simulado pelo STF ao ameaçar cassar os parlamentares condenados na AP 470, era necessário que o parlamento reagisse e marcasse posição, assegurando sua soberania na parte que lhe cabe do poder.

Em segundo lugar, porque se o julgamento do "mensalão" como um todo, com a inovação duvidosa de substituir a falta de evidências materiais pela Teria do Domínio dos Fatos, com os holofotes midiáticos cegando os juízes e com condenações assumidamente "sem provas, mas garantidas pela literatura jurídica", já constitui em si um episódio altamente problemático na história da Justiça e da política no Brasil, as condenações de José Dirceu e de José Genoino mostraram-se particularmente injustas e sem bases, como o reconhecem os mais prestigiados juristas do país e um jornalista do quilate de Janio de Freitas.

Este é um ponto, portanto, em que discordo frontalmente de Safatle, que constrói toda sua argumentação inicial contrária à posse de Genoino tendo como base o resultado do julgamento do "mensalão", a partir do qual acusa o PT de agir "como um avestruz".

A meu ver, a necessidade de o PT vir a público justificar seu mergulho na vala comum dos partidos que usam expedientes como o caixa 2 e de reafirmar a necessidade de retomar seu compromisso ético com a lisura na política e com a ampliação dos mecanismos de participação democrática, características diferenciais do partido antes de chegar ao poder, antecedem, transcendem e devem se dar para além e à revelia do julgamento do "mensalão". 



Ironia Conservadora
Porém, as mais visíveis reações ante as cobranças feitas por Safatle e Dutra têm sido apelar para a desqualificação dos críticos - um vício que o "novo petismo" tem emprestado da imprensa nativa -, acusando os críticos de "fazerem o jogo da direita", sugerindo que o filósofo uspiano estaria meramente reagindo a pressões de grupo, que Dutra mostraria-se despeitado pela perda de poder no partido, e classificando o tipo de criticismo que fazem como "udenismo gauche" - expressão que de fato prima pela mordacidade, mas que deixa implícita uma visão míope das relações entre política e ética, como se com elas preocupar-se devesse ser exclusividade do conservadorismo udenista.

Trata-se de um dos piores erros que o PT e a esquerda brasileira podem cometer, pois, ao descartarem a importância da ética e do combate à corrupção, garantem a manutenção deste tema pelo conservadorismo, onde vem, há décadas, com o auxílio da mídia, recebendo tratamento meramente cosmético, servindo, no entanto, de arma sempre à mão para compensar sua própria falta de programa político e atacar de forma contínua a esquerda, como temos visto de perto no decorrer da última década.

A ética na política, bem como o aprimoramento e incremento das formas de participação democrática, são demandas legítimas das sociedades contemporâneas, à revelia das cores e tendências políticas, e tendem a se aguçar ainda mais no futuro próximo, com a democratização do acesso à comunicação digital de alta velocidade. Uma esquerda que finge não entender isso e se comporta como alvo resignado do moralismo conservador está permanentemente em risco – de perder o poder e de deixar de ser esquerda.


(Desenho retirado daqui)


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