A
oportunidade histórica de se apresentar como uma liderança capaz de
oferecer uma alternativa de centro-esquerda à hegemonia do
receituário neoliberal – panaceia que ora destrói a economia
europeia - foi desperdiçada por Dilma Rousseff. Seu governo acaba de
acentuar ainda mais, e de forma irreversível, uma guinada
conservadora.
Enquanto
Lula herdara de Fernando Henrique um país aos cacos, à beira da
insolvência, com índices pornográficos de desemprego e baixa
atividade econômica, Dilma recebeu um Brasil renovado, recém
reestruturado socioeconomicamente - através da diminuição
expressiva dos índices de miséria e de pobreza e da ascensão de
uma nova classe média – e com uma economia interna vibrante,
marcada por inclusão e aumento no consumo e por recordes de baixo
desemprego, a qual permitira que a crise mundial fosse
aqui sentida (quase) como “uma marolinha”.
Eleita,
em tais condições, presidenta de um grande país emergente,
potência regional e um dos principais incentivadores do diálogo
Sul-Sul, muitos acreditavam que a nova mandatária, livre da “herança
maldita” tucana, estava fadada a aprimorar e expandir o legado de
Lula, seja - como prometera no discurso de posse - priorizando o
muito que se há de fazer na Saúde e na Educação, seja expurgando
de vez as políticas de orientação neoliberal que, voltadas à
satisfação desse ente caprichoso chamado mercado, tanto mal já
causaram ao povo e à economia brasileiros. “Venho para consolidar
a obra transformadora do presidente Luis Inácio Lula da Silva”,
anunciava a candidata.
Decepção
inicial
Já a
partir do segundo mês de governo, com a imposição de um duríssimo
choque anticíclico – que o futuro confirmaria não apenas
desnecessário, mas deletério à saúde econômica do país – tais
alvissareiras possibilidades foram dando lugar a um retorno à
primazia, no interior da administração, do economicismo mais tacanho, de
planilha. Este tem, desde então - e de forma ainda mais intensa nos
últimos meses - mantido o governo permanentemente apavorado ante a
iminência do agravamento da crise econômica internacional, gerando
o que Paulo Kliass, em imperdível artigo
na Carta Maior, chama de “síndrome da perda de popularidade”, a
qual estaria levando Dilma a agir da forma apressada e improvisada
que temos verificado.
Em seu
texto, Kliass observa, em relação às pífias consequências
advindas do aperto macroeconômico acima referido: “Quando a
maioria esperava justamente uma mudança de rota a partir de tais
resultados colhidos ao longo do primeiro ano de seu mandato em termos
da economia, eis que Dilma inicia 2012 com a mesma lenga-lenga da
ortodoxia conservadora: esforço fiscal para geração de superávit
primário e contenção de despesas orçamentárias essenciais (…)
Apesar de ela ter revelado uma atuação importante no sentido de
provocar a reversão da taxa oficial de juros (SELIC), isso só
começou a ocorrer muito tarde, a partir de 1 de setembro de 2011”
(e, acrescento eu, não conseguiu até agora que tal medida
significasse uma redução realmente expressiva do
spread que os grandes
bancos, com exceção dos estatais, cobram do cidadão comum,
notadamente no que concerne a cartão de crédito e cheque especial).
Como
decorrência de tal contexto, no lugar do avanço esperado, o que se
observa nas áreas sociais desde o início do governo - ressalvados
os programas de renda mínima -, além do agravamento das
condições de alguns campi das novas federais, do sucateamento das
Defensorias Públicas e da adoção de um programa de ajustes na Saúde (que,
levando dezenas de médicos a pedirem demissão, prejudicou
sobremaneira o funcionamento do SUS), é o absoluto desprezo pelos
servidores em geral e pelos professores universitários em
particular, cuja greve já supera inacreditáveis três meses, sob a
intransigência irresponsável do governo.
Direita,
volver!
Porém, o
ponto culminante da guinada conservadora do governo Dilma, o qual
enterra de vez as esperanças de que pudesse contribuir para a
constituição de uma alternativa ao neoliberalismo - obstáculo
principal aos avanços sociais e à efetivação de uma agenda
politicamente avançada - deu-se na semana que passou, com o anúncio
de um megaprograma privatista para obras de infraestrutura (rodovias,
portos e aeroportos), pelo qual o governo desembolsa, só na primeira
fase, referente a estradas, R$133 bilhões à iniciativa privada.
Como
observa Kliass, “Se os recursos existem e estão disponíveis, não
há razão para oferecê-los graciosamente ao setor privado. O Estado
brasileiro teria todas as condições de iniciar os projetos
necessários, bastando para isso a sinalização da vontade política
por parte da Presidenta”. O governo Dilma prefere, no entanto,
ignorar as graves implicações político-ideológicas de tal decisão
e se coloca mais uma vez contra o Estado (e seus servidores) enquanto
protagonista da economia nacional, apostando, como forma de aprimorar
a infraestrutura - mas talvez ainda mais de criar empregos e
fermentar a economia – numa espécie de aggiornamento
neoliberal do New Deal de Roosevelt, o que é, por si, uma
contradição em termos.
Diferenças
mínimas
Deve-se
reconhecer , para o bem do debate, que, como argumentam muitos
defensores do governo, as privatizações (ao estilo FHC) e as
concessões (à moda Dilma) não constituem exatamente a mesma coisa,
já que as primeiras são para sempre, enquanto as últimas duram
várias décadas. Mas, excetuada essa diferença de duração, não
há como negar que se trata, nos dois casos, de uma operação
privatizante, que segue uma lógica caracteristicamente privatista,
ao transferir do Estado para a iniciativa privada a tarefa de
executar grandes obras de infraestrutura – e de auferir, para
sempre em um caso, durante um longuíssimo período em outro, lucros
com isso.
Convém
apontar, ainda, que tanto privatizações tucanas quanto “concessões”
petistas têm em comum uma original contribuição ao receituário
neoliberal à brasileira, na constatação de que grande parte do
capital demandado por tais obras advém de dinheiro público – ou
seja, o povo paga para construir e pagará para usufruir, mas o lucro
ficará com a iniciativa privada. Trata-se do “governo pagar pra
capitalista administrar mal, cobrar caro e lucrar sobre um bem que é
do povo brasileiro”, como resume
“na lata” a blogueira Maria Frô.
Tão
importante quanto assinalar essas coincidências, digamos,
operacionais entre privatizações tucanas e “concessões”
petistas, é atentar para o fato de que a lógica política que
orienta ambas é muito similar e, obediente aos preceitos do Consenso
de Washington, deriva da mesma ideologia neoliberal que apregoa o
protagonismo do mercado como agente econômico e que, se tanto,
tolera a limitação do Estado à função reguladora. O retrocesso
que um governo dito de centro-esquerda promove ao sucumbir a tal
ideologia orientadora de políticas oficiais – a mesma que a
oposição à direita que nas urnas derrotou cultivava – é
imensurável. Mas não quero me estender neste tema. Tudo o que eu
tinha a dizer sobre a agenda privatista do governo Dilma e suas
diferenças – ou ausência delas – em relação às privatizações
tucanas já o fiz em outro post (link).
Traição
eleitoral
Dilma fez
toda uma campanha eleitoral condenando as privatizações e os
políticos que as promoveram, ao mesmo tempo em que reiterava o
compromisso com um Estado atuante e promotor do desenvolvimento do
país. Eram críticas fortes, contundentes, que não deixavam margem
à dúvida: transferir ao setor privado a administração de áreas
estruturais do país, e ainda por cima fazê-lo com dinheiro público,
era uma prática condenável do passado, que sua administração não
cometeria. Não há, nos discursos de campanha, nenhuma referência à
possibilidade de que viesse a adotar um modelo temporário de
privatização, que a novilíngua petista prefere chamar de concessão
mas que, como já aludido acima, significa, na prática o retorno de
um modelo privatista, e com duração assegurada por longas décadas.
Portanto
agora, ao recorrer, com dinheiro público, a uma política privatista
de longo prazo, Dilma Rousseff trai os seus compromissos de campanha
e a confiança de muitos daqueles que acreditaram em sua palavra. O
desprezo que demonstra pelos aspectos político-ideológicos de suas
medidas, além de permitir a seus adversários tucanos se
refastelarem em gozações e provocações, coloca, com sua guinada
rumo ao conservadorismo, a centro-esquerda e seu programa político
em uma situação extremamente desconfortável. Cría cuervos...
(Fotomontagem de Dilma copiada daqui)
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