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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Clone e os vícios da Globo

Graças ao jornalismo cada vez mais deplorável e partidarizado que pratica, à estréia de mais uma "novela das oito" e a uma nova edição do acéfalo Big Brother Brasil, assiste-se atualmente, na internet, a uma inflamada discussão sobre os malefícios que a Rede Globo exerceria em vastas parcelas da população brasileira.

Tendo a considerar que, em linhas gerais, os críticos estão certíssimos em sua ojeriza ao vício televisivo que essa emissora que cresceu à sombra da ditadura representa para milhões de brasileiros. No entanto, receio ser pura ilusão achar que a desqualificação agressiva dos espectadores os fará deixar de sintonizar, noite após noite, a programação da Globo - na verdade, temo que possa vir a produzir o efeito inverso, estimulando-os a reafirmarem suas escolhas.

Mais inteligente e efetiva do que essa tática agressiva, que, embora bem-intencionada, carrega algo de autoritário em seu bojo, me parece a desconstrução argumentativa das implicações político-ideológicas dos produtos audiovisuais que a Globo oferece.

O texto abaixo insere-se nesse contexto. Parte reeditada de um artigo escrito em 2002 - e publicado na revista da área de criminologia Discursos Sediciosos -, examina criticamente aspectos centrais da novela O Clone, atualmente sendo reexibida no horário vespertino da programação global. Convido o(a) leitor(a) a ler e opinar.


O Clone
- O marketing social como discurso totalitário
O sucesso da novela da Rede Globo O Clone, evidenciado por índices médios de audiência de 60 pontos no Ibope, resenhas elogiosas mesmo em publicações avessas a tramas novelescas e premiações por parte de órgãos estatais e associações médicas, veio a ressignificar, em um novo patamar, o aval público ao avanço dos projetos de marketing social da emissora, os quais, através de iniciativas como o Criança Esperança – repercutidas através do grande poder de penetração da rede -, vêm se tornando um dos principais meios de fixação de um ideário de assistência social do tipo terceiro setor, calcado no voluntariado e na filantropia de varejo e na defesa da virtual ausência do Estado como gestor de políticas públicas – o que equivale a apostar na privatização e decorrente eternização da pobreza.


A novela, escrita por Glória Perez, atraiu inicialmente a atenção (e a preocupação) de setores intelectualizados pelo fato de, estreando apenas alguns dias após os atentados de 11 de setembro de 2001, buscar, através de numeroso pólo de personagens, tecer um retrato do modus vivendi de muçulmanos de origem marroquina. A representação tida como condigna de tais caracteres, em um momento de ódios e temores exacerbados e no principal produto de massas da indústria do entretenimento do país – a “novela das oito” –, ao mesmo tempo em que abrandou temores, cativando setores do público usualmente indiferentes a tramas novelescas, constituiu-se no amálgama que “deu credibilidade” e “reforçou o realismo”, da abordagem, por um telefolhetim, de temas como a clonagem humana e o uso de drogas. Este retratado através da trajetória da personagem Mel (Débora Falabella) e seu grupo de amigos e do alcoolismo do advogado Lobato (Osmar Prado).

Além de outros artifícios e truques de marketing da emissora, reforçou sobremaneira tais impressões a utilização de dois recursos narrativos, um inédito (a inserção de depoimentos alegadamente reais de ex-drogados, de grande apelo dramático) e outro utilizado com inédita sem-cerimônia (a visita de personalidades ao bar da personagem Dona Jura (Solange Couto)).


Forma versus conteúdo
Se, do ponto de vista dos chamados “estudos de recepção”, a assimilação de tais práticas narrativas por um público de dezenas de milhões de espectadores, socioeconomicamente heterogêneo, sugere um certo nível de evolução cognitiva do espectador brasileiro, análises detalhadas do conteúdo discursivo subjacente às respectivas abordagens revelam, no entanto, um grau de distorção e manipulação do objeto que, a julgar pelas respostas de crítica e de público, foge da apreensão “naturalizada” das imagens processada pelo espectador médio.

Essa naturalização tende a dissimular o caráter unicamente negativista reservado à abordagem dos usuários de drogas. Os depoimentos dos supostos ex-drogados constroem uma oralidade que inventaria a experiência com drogas como uma via de sentido único e invariavelmente trágica – filhos que pouco a pouco roubam tudo da casa paterna para comprar drogas, mães que abandonam os filhos à própria sorte e se entregam ao vício, seres que se degradam até coabitarem com ratos e baratas, na fissura pela próxima dose. Nesse misto de reality show do mundo-cão e melodrama mexicano é, significativamente, a maconha (e não o álcool, legalizado, comprável em cada esquina, quimicamente viciante e de efeitos comprovadamente devastadores, se comparados aos daquela) o primeiro degrau de uma inescapável escalada rumo a drogas pesadas e à degradação física, psicológica e espiritual. Ou seja, um quarto de século depois, a Globo reedita - como a maconha ocupando o primeiro degrau, no lugar do alcool - a "teoria da escadinha", descartada pela psicoterapia séria em finais dos anos 70.

A essa abordagem unilateral, maniqueísta, “o todo tomado pela parte” da questão corresponde um padrão imagético de decupagem pelo qual os usuários de drogas (ou os “drogados” e “viciados”, únicos vocábulos nesse caso cabíveis, já que “usuários”, ao implicar em um reconhecimento do sujeito e de sua capacidade decisória, é uma designação que a própria abordagem levada a cabo em O Clone desautoriza) não adquirem jamais a inteireza fisionômica, a expressão facial formada por olhos, narizes e bocas, dos seres humanos “normais”: são pedaços de corpos, recortes de braços e de costas, planos-detalhe de nucas, rostos fora de foco; seres que, ao enveredarem pelo “caminho de perdição” das drogas, deixaram de ser sujeitos, perderam, segundo a teledramaturgia da Rede Globo, o direito de ser gente.


Cadê o Estado?
Característica comum à maioria – se não à totalidade – das peças do marketing social da emissora, um terceiro ponto merece atenção na abordagem do mundo das drogas pela "novela das oito": não há menção ao Estado e às suas políticas ou a qualquer forma de estrutura socioconômica sobre a qual se funda e opera a cadeia do tráfico de drogas. A razão última para tal omissão é óbvia: ao apresentar o tráfico e a rede criminal a tal atividade ligada como algo autóctone, o mal em geração espontânea, a narrativa desautoriza – ou mesmo impede - o desenvolvimento de qualquer reflexão sobre a relação entre estruturas sociais e econômicas vis-à-vis germinação e desenvolvimento da criminalidade.

Assim, O Clone, ao invés de estimular em bases efetivas o debate sobre as drogas – como alardeiam, eufóricos, seus (muitos) entusiastas -, pluralizando o enfoque e abarcando, ainda que nos limites da dramaturgia televisiva, a complexidade da questão, restringiu-o à esfera do consumidor – estereotipado como o viciado sobre o qual se erige a cadeia do tráfico, e premido entre a repressão legal e a “salvação” clínico/religiosa -, cristalizando, assim, a marginalização social dos usuários. Trata-se de uma perspectiva que não deixa de trazer em seu bojo alguma lógica (simplista e descontextualizada, mas efetiva) – afinal, se ninguém comprasse drogas o tráfico não existiria. Porém, para avalizar esse discurso – como o faz parcela considerável da classe média brasileira – é preciso desconsiderar uma constatação inegável e deixar de responder a uma questão fundamental.


Sem respostas fáceis
O fato a se negligenciar para assegurar a manutenção da culpabilização do usuário é a constatação de que há mais de uma dezena de países desenvolvidos – incluindo EUA, Alemanha e Inglaterra – nos quais o consumo de drogas é substancialmente maior do que no Brasil, mas em nenhum deles se verifica algo remotamente similar à constituição de um poder criminal paralelo que subjuga comunidades inteiras como se verifica nos morros do Rio de Janeiro.

Ora, se italianos, franceses e holandeses compram, proporcionalmente, muito mais drogas do que brasileiros e lá não há favelas coagidas por poderes paralelos armados, a conclusão óbvia e inescapável é que a culpa pela existência destes não pode ser atribuída ao usuário, mas às peculiares estruturas socioeconômicas da sociedade brasileira, a de maior assimetria entre ricos e pobres no mundo.

A questão fundamental que os estratos que preferem, numa manobra auto-expiatória de tonalidades psicanalíticas, culpabilizar os usuários (a se olhar, como sociedade, no espelho) é: o que os bandos armados que dominam os morros fluminenses fariam se, hipoteticamente, o tráfico de drogas acabasse? Parece-me pouco provável que prefeririam vender maçãs-do-amor e algodão doce nas praças e praias da Cidade Maravilhosa: com o portentoso armamento de que dispõem, muito provavelmente passariam a, com freqüência inaudita,assaltar, seqüestrar e barbarizar os cidadãos. O que provaria - aliás, uma vez mais - que o problema não é a droga, mas uma estrutura social sediciosa e violenta.


O estratagema levado a cabo na telenovela - buscar transferir ao usuário as culpas pela omissão e inabilidade do Estado no trato da questão das drogas no país – é o mesmo que há meses vem sendo praticado pela própria campanha publicitária do Ministério da Saúde, em comerciais dirigidos aos usuários (`aqueles que ainda não trocaram sua TV pela droga, bem entendido), baseados na seguinte linha de raciocínio: “quem sustenta o crime organizado é o tráfico de drogas; quem sustenta o tráfico de drogas é você. Antes de comprar a próxima dose, pense nisso.”


Usuário: vitima ou algoz
Essa simplificação fácil, falaciosa e isenta de causas e conseqüências socioeconômicas das ligações entre crime, consumo e tráfico de drogas (e na qual o mesmo usuário que em outros programas do referido ministério, tal como nas democracias avançadas, é considerado uma vítima enferma do vício - portanto com capacidade de decisão afetada – se metamorfoseia, subitamente, no indutor consciente de todo o processo, aquele que decide, como se arbítrio para tal ato tivesse, abrir ou não a caixa de Pandora da questão das drogas no país), torna-se ainda mais explícita (e perversa) no mais recente comercial do gênero, no qual a associação dá-se de forma direta, através da história de um rapaz que, ao sair de uma “boca de fumo”, vê a mãe ser morta pelos mesmos marginais dos quais acabara de comprar drogas. A seguir nessa linha, a cada flagrante por porte de drogas deveria somar-se, automaticamente, uma autuação por homicídio...

Nesse cenário, granjeia a mistificação. “Maconha mata seus neurônios”, alardeia um dentre tantos anúncios financiados pelo Governo Federal – ou seja, por dinheiro público – que visam estabelecer uma caricata dicotomia entre “drogados semi-retardados e apáticos” e “jovens dinâmicos e saudáveis”. Nenhuma das principais pesquisas de longa duração, realizadas segundo critérios consagrados pela comunidade científica – incluindo o exaustivo estudo de 14 anos patrocinado pela FDA (EUA) -constata “morte” de neurônios em decorrência do uso de maconha. Tais danos estão na esfera de ação das drogas lisérgicas, como os derivados do LSD, “ácidos” sintetizados e cogumelos.


Argumentos falaciosos
Campanhas baseadas em inverdades e na mistificação tendem ao fracasso. Além das pessoas bem-sucedidas e produtivas que pertencem ao círculo de amizades dos jovens, a própria mídia é habitada por personalidades as mais cultuadas notoriamente ligadas ao uso de drogas – e às vezes por longos períodos, como no caso de tantos astros pop. Quem convive com a juventude urbana se apercebe de que o destino de tais estratagemas publicitários é somar-se ao vasto anedotário das campanhas anti-droga, que, ao recorrerem a discursos que os usuários acabam descobrindo, por experiência própria, inverídicos e caricaturais, reforçam a eles a impressão de que o governo os quer ludibriar com tais campanhas – que acabam, assim, se revertendo em contra-propaganda.

Campanhas de prevenção e de combate às drogas, questão de saúde pública, são legítimas e necessárias, sobretudo no âmbito de drogas pesadas e da disseminação de drogas facilmente acessíveis e devastadoras, como o crack e o ecstasy. Porém, goste-se ou não, sua eficácia está diretamente ligada à capacidade de criar empatia e confiança com o público jovem. Mistificação e artifícios enganosos, embalados na narrativa ficcional de uma novela ou em comerciais “criativos”, não ajudam em nada, significam retrocesso e até, eventualmente, pelas razões parágrafos acima explicitadas, podem reverter-se em estímulo ao consumo.


(Crédito das imagens, em ordem de apresentação: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7)

Um comentário:

Anônimo disse...

Seu texto é ridiculo e tem por objetivo ser exatamente o que vc diz que a rede globo está sendo: Manipulador !!!

Vc deve ser mais um ''jornalista'' fracassado e da rede record !