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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Dilma e os fujões

Um dilema recorrente na esquerda – e notadamente no PT – é a dificuldade para lidar com seus próprios erros, sejam declarações infelizes, sejam recuos ou decisões impensadas (como a renúncia que Mercadante anunciou mas não praticou).

A direita - o PSDB de forma destacada – evidentemente não tem esse problema, pois a “grande mídia”o apóia com entusiasmo desde FHC, e agora, após o convescote do tal instituto Milenium, o faz de forma escancarada e agindo em bloco. Sempre disposta, portanto, a minimizar ou mesmo esconder declarações e atos impensados dos candidatos tucanos.

Justamente por conta dessa conformação midiática, parece-me pouco inteligente a tática de Dilma Rousseff de insistir que, em discurso recente, não tentou retratar de forma demeritória o fato de tucanos – FHC explicitamente e Serra metaforicamente - terem se exilado do país durante a ditadura, como se de uma fuga covarde se tratasse. Pois ao se esforçar por desmentir o “indesmentível” fornece lenha para manter a polêmica acessa.

Caso preferisse admitir a mancada, a candidata do lulopetismo receberia, é claro, as pedras de praxe, acompanhadas de impropérios variados sublinhando traços de sua alegada imaturidade agressiva, mas acabaria por botar um ponto final na celeuma. E o faria através de uma estratégia eleitoralmente inteligente, substituindo o desgaste contínuo pela exibição pública de um traço nobre de caráter, muito apreciada num país cuja formação católica, desavisadamente entranhada mesmo entre aqueles que, livro de Richard Dawkings à mão, proclamam em altos brados seu ateísmo, valoriza tremendamente a capacidade de se redimir, aceitar os próprios erros e pedir perdão. O José Roberto Arruda que renasceu eleitoralmente após incorrer no pecado mortal da corrupção que o diga.

Ao se enrolar em justificativas desmentidas pelo próprio discurso, Dilma contraria o dito popular: "Errar é humano, persistir no erro já é burrice".


Exilados e "fujões"
Mas, voltando ao atual estágio da polêmica, por que o desmentido de Dilma à sua diatribe contra os exilados não seria exequível, como afirmo no penúltimo parágrafo? Porque, embora os que se esforçam por tapar o sol com peneira prefiram fingir não se dar conta, não é, como veremos, apenas o primeiro item elencado na fala de Dilma que é altamente sugestivo da caracterização dos exilados como “fujões”. Tomado isoladamente, o trecho, embora já passível de ser interpretado como uma menção demeritória ao passado dos líderes tucanos, pode até passar como um mero contraponto para a exaltação das qualidades que a ex-ministra vê em si mesma. Acontece que não apenas tal trecho, mas TODO O DISCURSO dela é construído através de oposições entre Dilma e um oponente não nomeado, em relação ao qual claramente se identificam traços e atitudes do ex-governador paulista e do ex-presidente do país.

Façamos uma breve análise do discurso da candidata (que pode ser lido na íntegra aqui): “Eu não fujo quando a situação fica difícil. Eu não tenho medo da luta. Posso apanhar, sofrer, ser maltratada, mas estou sempre firme com minhas convicções (...) Nunca abandonei o barco”. De início, fica estabelecido que é negativo fugir “quando a situação fica difícil”. E quando isso ocorre? É preciso uma dose enorme de auto-ilusão para se recusar a perceber que a escolha das palavras – que certamente foi efetuada no contexto de uma campanha política profissional, portanto de forma planejada e intencional – responde à pergunta de forma altamente sugestiva: ou seria coincidência que Dilma prefira o emprego do substantivo “luta” - o único que, em se tratando de seu passado, permite quase que automaticamente evocar o adjetivo “armada” -, ao invés de utilizar termos nesse sentido neutros, como “batalha”ou “desafio”? Ou que recorra a verbos fortes, específicos e pouco comuns em discursos de eleições presidenciais como “apanhar” e “ser maltratada’ - que remetem diretamente à sua condição de torturada? Assim, ainda que não nomeado diretamente, o período ditatorial é uma referência difusa no texto, que ao final reforça a visão negativa de quem “foge”, com a menção a “abandonar o barco”. E quem o fez?

A meu ver, só esse trecho já seria capaz de provocar celeuma, já que pode sugerir a alguns o impensável: que, em relação aos exilados, as opiniões de Dilma coincidissem com as de ninguém menos do que o general Leônidas Pires Gonçalves, que em estarrecedora entrevista a Geneton Moras Neto acusou-os de serem fujões e afirmou cinicamente que deveriam permanecer no país, como se condições de segurança para tal houvesse. O trecho, a princípio e lido isoladamente, fora do contexto integral do discurso, não chega porém a ser categoricamente comprometedor.

Ademais, o trecho da fala de Dilma consubstancia a adoção de uma estratégia discursiva inteligente: a da exaltação positiva que a candidata, ainda que de forma metafórica, faz da luta dos que, como ela, ficaram e enfrentaram a ditadura. Trata-se de um fato histórico que tende a ser exaustivamente explorado com viés negativo por uma mídia cada vez mais adepta de um revisonismo que procura suavizar o período ditatorial – vide a Folha de S. Paulo e sua “ditabranda” –, instaurarando a confusão entre luta armada e banditismo.


Comparação não é genérica
Porém, na seqüência do discurso, o que podia passar como uma alusão genérica a um adversário eventual vai ganhando contornos mais definidos: “Vocês não verão Dilma Rousseff usando métodos desonestos e eticamente condenáveis para ganhar ou vencer. Não me verão usando mercenários para caluniar e difamar adversários”. A última frase torna difícil conceber uma referência mais direta aos métodos os quais Serra é reiteradamente acusado de usar, seja na imprensa (com o chapeleiro da Veja & cia.), seja no mundo digital (em que, segundo Luis Nassif, o jornalista Eduardo Graeff comandaria, no decorrer da atual eleição, um exército de cibermercenários).

Se dúvidas ainda havia quanto a quem Dilma se refere, elas se dissipam de maneira definitiva no parágrafo seguinte: “Eu não traio o povo brasileiro (...) Vocês não me verão por aí pedindo que esqueçam o que afirmei ou escrevi”. Só a ignorância grave da história política brasileira recente ou o maucaratismo ostensivo justificariam negar que Dilma se refere a FHC.

E, como qualquer aluno mediano sabe, um texto se lê respectivamente: quando o adversário sem nome do discurso de Dilma, pleno de traços de Serra, se consubstancia, no quinto parágrafo, na referência à figura do despeitado ex-presidente tucano, fica claro que ela está se contrapondo ao tucanato de alta cepa, todo ele advindo do exílio. Se dúvidas ainda houvesse quanto ao objeto de suas comparações, a própria candidata, após criticar o estado mínimo e as privatizações, as dirime de forma categórica:

“Democrata que se preza não agride os movimentos sociais. Não trata grevistas como caso de polícia. Não bate em manifestantes que estejam lutando pacificamente pelos seus interesses legítimos”. Se ela não está se referindo a José Serra eu me chamo Pato Donald.

Resta saber por que raios um discurso, que em todos os seus parágrafos numerados (de forma a sugerir uma sequência e uma ordem de importância) se refere, de forma facilmente identificável, ao adversário tucano, não o estaria fazendo justamente no primeiro deles, como querem fazer crer os fanáticos.

I rest my case.


Tapando o sol com a peneira
Porém a maioria dos apoiadores de Dilma, na Internet ou no mundo real, prefere fingir não ver todas as evidências acima elencadas. A leitura dos comentários nos blogs políticos de esquerda e a leviandade com que se afirma tratar-se de factóide o caso em questão, surrupiando trechos do discurso e pondo a culpa automaticamente na imprensa, são exemplares de tal processo.

Assim, o fanatismo cego e muitas vezes agressivo toma cada vez mais o lugar do debate político civilizado – e isso vale tanto para a candidatura apoiada pela “grande mídia” quanto à que a esta se opõe. Há muito se sabia que a campanha eleitoral em curso seria assim, embora aquela esperança que mora no fundo do coração democrático teimasse em alimentar esperanças contrárias. Não mais.

Porém cabe esclarecer que, em meio a tal atmosfera de turba, a postura deste blog continuará a ser a mesma de sempre, priorizando o jornalismo ético e a análise crítica, porém equilibrada. Pois entendo que apoiar um determinado projeto político para o país em detrimento de outro é uma coisa; macaquear histericamente palavras de ordem, recusando-se a enxergar os problemas e transformando o(a) candidato(a) numa espécie de ídolo infalível é outra. E, como a história dolorosamente nos ensina, se recusar a enxergar os erros e buscar corrigi-los a tempo é o caminho certo para a derrota.

5 comentários:

Raphael Tsavkko Garcia disse...

Concordo em gênero número e grau com o discurso da Dilma. Quem fugiu, como FHC e Serra são sim fujões. Quem se exilou para salvar a vida lutou.

Se exilar por necessidade é continuar a luta e preservar a vida. Ir para paris descansar ou pro Chile pra não fazer nada, como FHC e Serra, é fugir, é ser covarde.

Eduardo disse...

Maurício,

Isso me faz lembrar a derrapada da campanha da Marta na última eleição para a prefeitura de São Paulo, explorando uma suposta homossexualidade do Kassab para desqualificá-lo junto aos eleitores mais conservadores.

Embora diretamente não tivesse dito nada, a Marta demorou muito para admitir o erro e se desculpar, preferindo minimizar os protestos _ vindos inclusive de grupos GLBTT _ como se tudo não tivesse passado de uma interpretação infeliz. A equipe de propaganda do Kassab _ e também a imprensa _ deitou e rolou em cima da propaganda dita "homofóbica" do PT, explorando exaustivamente a "interpretação infeliz" a favor do candidato do PSDB/DEM.

Esse episódio pode não ter sido determinante, mas ajudou a mandar a vitória da Marta pro ralo.

bete disse...

bom como eu comentei, eu assino embaixo. voto na pessoa, mas não quer dizer que por isso eu vá perder o senso crítico, o discurso aliás foi totalmente dirigido ao Serra e ao FHC a meu ver, ela não deu nome ao bois por motivos de conveniência política e pelo mesmo motivo voltou atrás e deu uma justificava torta, eu ao menos acho assim. E isso acontece com a esquerda e com a direita,vão e voltam, dizem e desdizem ao sabor das conveniências, só não vou deixar de notar e criticar pq voto na pessoa, aliás pq voto é que vou mesmo criticar. Bjs

Unknown disse...

Perfeito, Eduardo, seu exemplo lustra perfeitamente o que tentei dizer.

Iaiá, exato, justamente porque queremos votar numa pessoa coerente é que criticamos. Um beijo.

Tsavkko: em que parte do discurso Dilma diz que há exilados que lutaram para salvar a vida???

Quanto a essa distinção que você - e não Dilma - faz entre categorias de exilados, uns covardes, outros não, é a reprodução, à esquerda, de processo similar ao da "ditabranda" da Folha, ambos baseados em um revisionismo histórico feito a partir do quadro ideológico do presente e em desonhecimento da história do Brasil. Tanto Serra, como ex-presidente da UNE, quanto FHC, como intelectual de esquerda, seriam persequidos e quiçá mortos se ficassem no Brasil. É o que asseguram todos os historiadores do período, à exceção dos militares, é claro.

lucia disse...

Concordo com o comentário. Foi, sim, dirigido a Serra e FHC. Ao Serra fujão, sim. Que ao primeiro bater dos coturnos dos militares, já estava de malas prontas e calças borradas na porta do aeroporto. Diferente das demais lideranças políticas da época: Brizola, Kubistchek,Jango e outros, que precisavam fugir para não morrer, o fujão era um João ninguém, preisidente da UNE, que abandonou o barco e deixou a luta para o Travassos, que pagou com a vida a esperteza do outro!