Gilberto Dimenstein ocupa hoje a escala mais baixa do jornalismo nacional – foi acometido dessa certeza que cheguei ao final do artigo “Professores dão aula de baderna”, por ele assinado. Não é vã a paráfrase das palavras que celebrizaram Boris Casoy, outro jornalista outrora respeitado e que hoje é um lame duck da imprensa, visto, justa ou injustamente, como um mero ventríloquo da direita mais retrógrada.
Blogosfera política e ética
Quem acompanha o blog sabe que evito ao máximo ataques pessoais e não gosto de generalizações nem de maniqueísmos; tento não ver tudo branco ou preto. Embora o tempo tenha me ensinado que os artigos mais equilibrados, que criticam os podres de A sem deixar de citar as vaciladas de B, são os que despertam menos reação (e comentários), tenho preferido, quando o sentimento de revolta o permite, produzir análises o mais ponderadas possível.
Assim, embora considere central no tipo de atividade blogueira por mim e por outros exercida a crítica de mídia e a produção de discursos contra-hegemônicos, nunca utilizo a denominação PIG (Partido da Imprensa Golpista) para me referir à mídia corporativa nem me furto a apontar o que considero pontos falhos do governo Lula, embora reconheça suas qualidades (e a prevalência destas sobre aqueles, no cômputo geral).
Perdão se soo cabotino: a intenção é sublinhar que um número enorme e crescente de blogueiros compartilha de critérios éticos, se não iguais, equivalentes, que propiciem um exame o mais justo possível de seus objetos de análise e incentivem diálogos críticos civilizados com seus leitores.
A despeito das acusações que reiteradamente sofremos da mídia corporativa, segundo a qual seríamos “blogueiros amestrados”, escrevendo numa blogosfera que equivaleria a “terra de ninguém”, estando “a soldo do governo” e daí pra baixo, o fato, diariamente constatado, é que o rumo que setores majoritários da imprensa vêm tomando, notadamente após o convescote do Insituto Millenium, demonstra cada vez de forma mais explícita (embora, é claro, não assumida) que quem não está nem aí para buscar o equilíbrio e a defesa do interesse público demandados pelo bom jornalismo – o qual alardeiam praticar - são os principais jornais e revistas do país. Pior: têm ultimamente agido de forma mancomunada, como um partido, com evidentes objetivos eleitorais.
Era uma vez um jornalismo inovador...
Mas confesso que por um tempo alimentei a ilusão de que pelo menos um número reduzido de personalidades jornalísticas de destaque resistiria – se não por razões propriamente éticas, ao menos como forma de manter a credibilidade, bem maior do profissional de imprensa - à guinada à direita e ao jornalismo descriterioso empreendida pela Folha nos últimos anos. Ledo engano. Após o outrora promissor Fernando de Barros e Silva, com seu inegável talento para a escrita e para a crítica, ter se tornado mero burilador do discurso de defesa dos interesses corporativos do grupo Folha, e na mesma semana que o outrora intocável Janio de Freitas publica um artigo de um maniqueísmo pobre, Dimenstein abre mão dos poucos pudores que alimentava e parte para um ataque injusto e sem a mínima sustentação na realidade contra os professores estaduais em greve.
Não que surpreenda. Mas não deixa de ser paradoxal constatar que, enquanto a blogosfera procura elevar o padrão do debate, Dimenstein sucumba à bajulação servil aos interesses dos Frias de forma tão manipuladora e anti-ética. Afinal, a partir dos anos 80 e por mais de uma década, ele foi um dos representantes de um jornalismo inovador, que tirou o cheiro de naftalina da impensa nacional, onde tornou-se um dos principais representantes da “sensibilidade social” – seja através de suas colunas, em que privilegiava temáticas educacionais e ações inovadoras do chamado terceiro setor, seja por meio de livros que focaram em temas como a prostituição infantil e a infância marginalizada.
Havia desde sempre na produção de Dimenstein, é verdade, um certo ranço uspiano e, a despeito das posições aparentemente progressistas, uma pretensão proto-iluminista manca, pois com mais ênfase na forma do que na ética. Aos poucos o canastrismo elitista foi ficando evidente. Em um longo artigo acadêmico de 8 anos atrás eu já o chamava de “o principal representante do bom-mocismo voluntarista e ingênuo, apaziguando a má consciência da classe média nas páginas dominicais da Folha de São Paulo”. Era cada vez mais óbvio que os “critérios” que adotava para elogiar os projetos educacionais do terceiro setor, evidenciavam - além de interesses pessoais nem sempre legítimos – a aderência ao ideário neoliberal, com o decorrente menosprezo pela educação pública (no sentido de estatal).
Omissões e distorções a granel
Mas um certo cuidado formal e a preservação da lógica interpretativa o mantinham, até uns anos atrás, em um nível acima da média encontradiça na “grande imprensa” brasileira. Porém, no governo Lula embarcou no partidarismo deslavado da Folha, atingindo o ponto mais baixo de sua carreira no artigo opinativo de ontem, em que acusa professores covardemente espancados. Trata-se de uma peça jornalística tão medíocre que sequer condiz com uma seção chamada – reparem a pretensão proto-iluminista da Folha – “Pensata”. Nela, Dimenstein finge confundir direito à mobilização social com “baderna”. Como não fornece contextualização alguma, fica a sugestão de que os professores foram à passeata armados de paus e pedras e iniciaram o ataque contra as pacíficas forças da ordem.
Daí, tal qual um bedeu interiorano do século passado, pergunta o que os alunos vão achar de seus “professores desrespeitando a lei” (qual lei, se as constitucionais de fazer greve ou de ir e vir, ele não diz); acusa-os de “sem limites, indisciplinados”, logo eles, mestres que “devem zelar pela disciplina”. Por mil palmatórias, choquei!
Mas o chilique moralista é só cortina de fumaça. Serve para preparar o terreno, injetando indignação moral para em seguida disparar a acusação que pretensamente desqualificaria o movimento dos professores: as ligações de uma das dirigentes da Apeoesp com o PT e seu (óbvio) apoio à candidatura Dilma comprovariam tratar-se tão-somente de uma manobra política, visando atingir o coitado do José Serra. “Trata-se apenas de uma minoria organizada e motivada”, morde e assopra ao mesmo tempo o colunista.
As dezenas de milhares de participantes na manifestação? o relato fidedigno de pessoas que estavam lá? a pauta de reivindicações? a questão salarial, para uma categoria sem aumento real há 14 anos? os alunos que não têm nem carteira para sentar? o sucateamento do ensino paulista? a arrogância de um governo que se recusa a dialogar com a categoria profissional responsável pela essencial área da educação? As seriíssimas evidências de infiltração de policiais à paisana em manifestação cívica, em plena democracia? Qualquer fato jornalístico além da redundante constatação de que uma das sindicalistas pertence ao PT e apoia Dilma (o que ele esperava, um sindicato todo tucano em que todos apoiassem Serra? É essa a concepção de democracia do Dimenstein?)? Nadica de nada: o artigo do bom-moço passa ao largo de todos esses temas.
Artigo é confissão de culpa
Mas, apesar de tais omissões, o trecho proporciona o aspecto mais interessante do artigo, pois evidencia, para o leitor com um mínimo de discernimento psicoanalítico, que as acusações que Dimenstein faz aos professores não passam de uma confissão de culpa imposta por seu inconsciente. Pois não são os professores, mas ele, Dimenstein, como jornalista, quem está dando um péssimo exemplo profissional, deixando de cumprir, com padrões éticos mínimos, a tarefa que lhe cabe: analisar os fatos com equilíbrio, ponderação e atenção a todos os lados envolvidos. Também ao contrário do que afirma, não são os professores – que abraçam diferentes credos políticos – que agem por interesses partidários, mas o colunista, defendendo, com informações negligenciadas e distorcidas, o PSDB de seu patrão e do patrão de seu patrão.
Por fim, diferentemente do que escreve, não é a classe profissional em greve que, tal um bando de cordeirinhos, é manipulada por seus dirigentes: os professores que entraram em greve e decidiriam aderir à passeata o fizeram de forma autônoma, obedecendo a uma decisão de fórum íntimo e individual. Já Dimenstein não viola apenas a ética jornalística ao redigir, a soldo e a mando do patrão, um tal panfleto partidário travestido de artigo opinativo, mas os frangalhos que restam de sua própria imagem pública.
O outrora jornalista-cidadão, paladino da democracia internacionalmente premiado, não passa hoje de um pitt bull da Barão de Limeira, bem alimentado no canil da plutocracia mediática, e cuja função é latir alto e morder forte, na esperança de que a reação violenta dê pretexto para invocar um golpe de estado. Pois a vitória das forças que seu patrão apoia – as mesmas que ordenaram o covarde ataque policial aos manifestantes – está, a despeito de pesquisas “da casa” - de última hora, pra lá de suspeitas -, cada vez mais distante no horizonte. E a ordem na “grande imprensa” brasileira atual é essa: atiçar ânimos para provocar reações violentas. Um filme que já vimos em 1964, com longuíssimas e desastrosas consequências para o país.
Conclusão
Porém, mais importante do que todas essas considerações sobre mais um jornalista que sucumbiu ao poder do capital, é a serena constatação de que, ao contrário do que a diatribe partidária disfarçada de lição moralista de Dimenstein afirma, os professores, ao se munirem de paus e pedras para revidar a agressão gratuita das forças públicas (que a eles e à democracia deveriam proteger), dão sim uma grande lição a seus alunos: a de que as lutas sociais, no Brasil, ainda demandam sangue, sofrimento e capacidade de resistência em estados governados por certas forças políticas, acostumadas a reprimir manifestações pacíficas com práticas ditatoriais. Uma senhora lição de cidadania.
Blog sobre cinema, jornalismo, política e música, com críticas, análises e perfis.
domingo, 28 de março de 2010
quinta-feira, 25 de março de 2010
Reflexões sobre a blogosfera
Embora a sociedade brasileira venha apresentando, com mais vigor no decorrer dos últimos seis anos, um dinamismo acelerado, notadamente nas chamadas classes “C” e “D”, duas áreas, a despeito de mudanças eventuais, mantém-se presas a conformações estruturais quase centenárias: a política institucional/partidária e a chamada grande imprensa.
Não pertence ao âmbito deste artigo a discussão do primeiro item, embora seja forçoso reconhecer que, se a eleição de um ex-operário com um passado de luta representou um momento de conjunção de tal dinamismo social com exercício maduro de democracia, alguns dos aspectos mais retrógrados da Presidência de Luís Inácio Lula da Silva - a despeito do bom desempenho de sua administração em diversas frentes, notadamente a política externa, as áreas sociais e a economia - advém justamente de sua adesão a uma realpolitik por demais elástica, de modo a assegurar a governabilidade através da satisfação das demandas dos donos das capitanias políticas que persistem no Brasil contemporâneo. A proeminência de duas figuras políticas de um passado de triste memória redivivas na base de apoio lulista é suficiente para ilustrar tal ocorrência: José Sarney, senhor feudal do estado mais pobre da federação e ex-mandatário que deixou a Presidência com a inflação medida na casa das centenas e Fernando Collor de Mello, ex-presidente afastado sob ameaça de impeachment.
Mais complexo ainda é o caso da imprensa – ou melhor, da mídia, porque é irrelevante, no âmbito de um artigo que se dispõe a analisar o campo da comunicação no Brasil, discutir o comportamento de órgãos de imprensa escrita sem levar em conta como se portam as mídias televisivas e radiofônicas.
Blogosfera x Imprensa
A imprensa, acuada pelo crescimento das redes digitais de informação, passa pela sua maior crise, refletida não apenas na queda vertiginosa da venda de exemplares, mas – o que seja talvez mais grave – de respeitabilidade e de reconhecimento público, devido a uma série de práticas condenáveis que têm sido sistematicamente reveladas e exaustivamente debatidas na Internet (talvez a mais grave delas a publicação, pela Folha de S. Paulo, de uma ficha policial falsa da pré-candidata à Presidência Dilma Roussef recebida por email e cuja autenticidade não foi verificada pelo jornal).
Porém, se grandes grupos de mídia sempre aliaram seus interesses econômicos e políticos a falcatruas ao jogo de manipulação e omissão da notícia - Assis Chateaubriand sendo um exemplo notório de tais práticas, embora de modo nenhum o único – agora, com o advento dos blogs, ficou consideravelemente mais difícil dissimular tais expedientes.
A blogosfera política costuma se gabar por alegadamente ter acabado, na marra, com o monópolio da comunicação impressa nas mãos – e nos bolsos – de um punhado de famílias, representantes do conservadorismo em seus diversos matizes. O advento da Internet teria possibilitado à blogosfera não apenas apresentar-se como uma alternativa anti-hegemônica, mas trazer à luz as maquinações, omissões e interesses políticos dessa plutocracia empresarial.
Excesso de euforia
É evidente que eu próprio, como blogueiro, sou entusiasta do meio virtual e das novas modalidades de comunicação e de jornalismo que ele propicia; no entanto, parece-me necessário evitar uma certa euforia, em voga na blogosfera, quanto à superação que esta poderia vir a promover, no curto (ou mesmo no médio) prazo, em relação à “grande mídia.
É forçoso lembrar que a profissionalização do jornalismo independente na Internet brasileira – excetuando blogs ligados à mídia corporativa (e que, portanto, reforçam seu poder) e casos que se contam em uma das mãos -, não passa, neste momento, de uma quimera. Achar que o voluntarismo amador – no sentido de não remunerado – vai sustentar de forma regular a blogosfera em seu enfrentamento com a imprensa convencional é uma aposta muito alta. Profissionalizar, em algum momento, será uma necessidade inadiável.
O fator mídia
Outra questão que demanda urgente reflexão e revela o quão frágil e superdimensionada tem sido a blogosfera em relação a si mesma é sua comparação no âmbito da mídia eletrônica, incluindo televisão, rádio e internet corporativa. Há algo de esquizofrênico no comportamento da blogosfera e da tuitosfera quando continuam diariamente a se alimentar, difundir e criticar a programação televisiva e, ao mesmo tempo, a fingir que é irrelevante contrapor-se comparativamente com ela, em termos de forças. Como se, fingindo que a assimetria de forças não existe, ela deixasse de ser efetiva.
Porém, “Não dá pra deixar a grande mídia pra lá, simplesmente. Não só porque continua muito influente - certamente não os jornais impressos, mas a televisão e o rádio, sim -, porém principalmente porque, no caso destes meios, são concessões públicas e, mesmo no caso de não serem (como os impressos ou as suas versões on line), ocupam um espaço essencial de serviço público e têm contas a prestar. Não podem disseminar informações falsas, não podem provocar pânico, não podem fazer um monte de coisas que fazem e ficar por isso mesmo” – afirma a professora de jornalismo Sylvia Moretzsohn em comentário a um artigo no Observatório da Imprensa (cujo link não encontrei).
Sua intervenção toca em pontos relevantes para o debate, evitando os autoenganos frequentes na blogosfera nos embates entre mídia corporativa e jornalismo na internet. Primeiro, como já dito, a excessiva valorização que os críticos da mídia corporativa fazem da imprensa escrita em detrimento do rádio e, sobretudo, da televisão – veículos cujos graus de penetração nos lares brasileiros, em comparação com os da internet e da imprensa, pertence a outra escala de valores. Segundo, a falácia – naturalizada durante o período de hegemonia do ideário neoliberal – de que, por constituirem-se como empresas privadas, os órgãos de imprensa escrita não teriam contas a prestar ao poder público e à sociedade a respeito de suas práticas jornalísticas.
Batalhas iniciais
A revolução representada pelo advento da internet – e, no âmbito desta, da blogosfera, cuja velocidade de implantação e disseminação tem superado tremendamente a morosidade institucional do Legislativo, não só no Brasil mas em boa parte do mundo desenvolvido – apanhou as forças da mídia corporativa (e do conservadorismo de forma geral) no contrapé. Historicamente, essas forças da imprensa corporativa foram capazes, por um longo período, de barrar ou de restringir a níveis mínimos e alcance reduzido as manifestações contra-hegemônicas no campo da comunicação, como as rádios mal chamadas “piratas”, a imprensa alternativa, as TVs comunitárias (que prometiam proliferar e renovar a mídia televisiva quando do advento da TV a cabo no país), entre outras manifestações. É ilusório achar que, com o poder econômico e político que possuem, deixarão de fazer de tudo para reverter a situação como ora se encontra, ainda mais porque à medida que a exclusão digital deixar de ser um desafio no país a tendência, naturalmente, é o crescimento da atividade blogueira e virtual. Não é à tôa que vêm das forças políticas que já controlam a mídia corporativa os principais projetos legislativos de controle da internet no Brasil.
Essa é uma batalha em estágio inicial, e que pode vir a se tornar uma grande guerra. As eleições presidenciais deste ano, com a promessa de um exército de cibermercenários atuando na internet promete ser seu primeiro confronto. De qualquer forma, o atomismo dos blogueiros e a pouca efetividade de suas organizações coletivas são dados a enfraquecer o campo progressista da luta.
Não pertence ao âmbito deste artigo a discussão do primeiro item, embora seja forçoso reconhecer que, se a eleição de um ex-operário com um passado de luta representou um momento de conjunção de tal dinamismo social com exercício maduro de democracia, alguns dos aspectos mais retrógrados da Presidência de Luís Inácio Lula da Silva - a despeito do bom desempenho de sua administração em diversas frentes, notadamente a política externa, as áreas sociais e a economia - advém justamente de sua adesão a uma realpolitik por demais elástica, de modo a assegurar a governabilidade através da satisfação das demandas dos donos das capitanias políticas que persistem no Brasil contemporâneo. A proeminência de duas figuras políticas de um passado de triste memória redivivas na base de apoio lulista é suficiente para ilustrar tal ocorrência: José Sarney, senhor feudal do estado mais pobre da federação e ex-mandatário que deixou a Presidência com a inflação medida na casa das centenas e Fernando Collor de Mello, ex-presidente afastado sob ameaça de impeachment.
Mais complexo ainda é o caso da imprensa – ou melhor, da mídia, porque é irrelevante, no âmbito de um artigo que se dispõe a analisar o campo da comunicação no Brasil, discutir o comportamento de órgãos de imprensa escrita sem levar em conta como se portam as mídias televisivas e radiofônicas.
Blogosfera x Imprensa
A imprensa, acuada pelo crescimento das redes digitais de informação, passa pela sua maior crise, refletida não apenas na queda vertiginosa da venda de exemplares, mas – o que seja talvez mais grave – de respeitabilidade e de reconhecimento público, devido a uma série de práticas condenáveis que têm sido sistematicamente reveladas e exaustivamente debatidas na Internet (talvez a mais grave delas a publicação, pela Folha de S. Paulo, de uma ficha policial falsa da pré-candidata à Presidência Dilma Roussef recebida por email e cuja autenticidade não foi verificada pelo jornal).
Porém, se grandes grupos de mídia sempre aliaram seus interesses econômicos e políticos a falcatruas ao jogo de manipulação e omissão da notícia - Assis Chateaubriand sendo um exemplo notório de tais práticas, embora de modo nenhum o único – agora, com o advento dos blogs, ficou consideravelemente mais difícil dissimular tais expedientes.
A blogosfera política costuma se gabar por alegadamente ter acabado, na marra, com o monópolio da comunicação impressa nas mãos – e nos bolsos – de um punhado de famílias, representantes do conservadorismo em seus diversos matizes. O advento da Internet teria possibilitado à blogosfera não apenas apresentar-se como uma alternativa anti-hegemônica, mas trazer à luz as maquinações, omissões e interesses políticos dessa plutocracia empresarial.
Excesso de euforia
É evidente que eu próprio, como blogueiro, sou entusiasta do meio virtual e das novas modalidades de comunicação e de jornalismo que ele propicia; no entanto, parece-me necessário evitar uma certa euforia, em voga na blogosfera, quanto à superação que esta poderia vir a promover, no curto (ou mesmo no médio) prazo, em relação à “grande mídia.
É forçoso lembrar que a profissionalização do jornalismo independente na Internet brasileira – excetuando blogs ligados à mídia corporativa (e que, portanto, reforçam seu poder) e casos que se contam em uma das mãos -, não passa, neste momento, de uma quimera. Achar que o voluntarismo amador – no sentido de não remunerado – vai sustentar de forma regular a blogosfera em seu enfrentamento com a imprensa convencional é uma aposta muito alta. Profissionalizar, em algum momento, será uma necessidade inadiável.
O fator mídia
Outra questão que demanda urgente reflexão e revela o quão frágil e superdimensionada tem sido a blogosfera em relação a si mesma é sua comparação no âmbito da mídia eletrônica, incluindo televisão, rádio e internet corporativa. Há algo de esquizofrênico no comportamento da blogosfera e da tuitosfera quando continuam diariamente a se alimentar, difundir e criticar a programação televisiva e, ao mesmo tempo, a fingir que é irrelevante contrapor-se comparativamente com ela, em termos de forças. Como se, fingindo que a assimetria de forças não existe, ela deixasse de ser efetiva.
Porém, “Não dá pra deixar a grande mídia pra lá, simplesmente. Não só porque continua muito influente - certamente não os jornais impressos, mas a televisão e o rádio, sim -, porém principalmente porque, no caso destes meios, são concessões públicas e, mesmo no caso de não serem (como os impressos ou as suas versões on line), ocupam um espaço essencial de serviço público e têm contas a prestar. Não podem disseminar informações falsas, não podem provocar pânico, não podem fazer um monte de coisas que fazem e ficar por isso mesmo” – afirma a professora de jornalismo Sylvia Moretzsohn em comentário a um artigo no Observatório da Imprensa (cujo link não encontrei).
Sua intervenção toca em pontos relevantes para o debate, evitando os autoenganos frequentes na blogosfera nos embates entre mídia corporativa e jornalismo na internet. Primeiro, como já dito, a excessiva valorização que os críticos da mídia corporativa fazem da imprensa escrita em detrimento do rádio e, sobretudo, da televisão – veículos cujos graus de penetração nos lares brasileiros, em comparação com os da internet e da imprensa, pertence a outra escala de valores. Segundo, a falácia – naturalizada durante o período de hegemonia do ideário neoliberal – de que, por constituirem-se como empresas privadas, os órgãos de imprensa escrita não teriam contas a prestar ao poder público e à sociedade a respeito de suas práticas jornalísticas.
Batalhas iniciais
A revolução representada pelo advento da internet – e, no âmbito desta, da blogosfera, cuja velocidade de implantação e disseminação tem superado tremendamente a morosidade institucional do Legislativo, não só no Brasil mas em boa parte do mundo desenvolvido – apanhou as forças da mídia corporativa (e do conservadorismo de forma geral) no contrapé. Historicamente, essas forças da imprensa corporativa foram capazes, por um longo período, de barrar ou de restringir a níveis mínimos e alcance reduzido as manifestações contra-hegemônicas no campo da comunicação, como as rádios mal chamadas “piratas”, a imprensa alternativa, as TVs comunitárias (que prometiam proliferar e renovar a mídia televisiva quando do advento da TV a cabo no país), entre outras manifestações. É ilusório achar que, com o poder econômico e político que possuem, deixarão de fazer de tudo para reverter a situação como ora se encontra, ainda mais porque à medida que a exclusão digital deixar de ser um desafio no país a tendência, naturalmente, é o crescimento da atividade blogueira e virtual. Não é à tôa que vêm das forças políticas que já controlam a mídia corporativa os principais projetos legislativos de controle da internet no Brasil.
Essa é uma batalha em estágio inicial, e que pode vir a se tornar uma grande guerra. As eleições presidenciais deste ano, com a promessa de um exército de cibermercenários atuando na internet promete ser seu primeiro confronto. De qualquer forma, o atomismo dos blogueiros e a pouca efetividade de suas organizações coletivas são dados a enfraquecer o campo progressista da luta.
(Imagem retirada daqui)
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domingo, 21 de março de 2010
PORNOCHANCHADA!!!
Ao ressuscitar a pornochanchada, após décadas de ostracismo, as madrugadas do Canal Brasil repõem em circulação um período atípico do cinema brasileiro, em que evocações alegóricas e o interesse por temáticas sociais deram lugar ao entretenimento barato, de apelo erótico mas de uma sensualidade pudica para os padrões atuais, que fez a alegria de mais de uma geração de adolescentes atravessando aquela fase de, digamos, intensa atividade mano-sexual...
Ao contrário da versão que se tornou mais corrente (e que a Wikpiédia “compra”), a pornochanchada surge no final dos anos 60, com um pólo carioca (Reginaldo Faria, Pedro Carlos Rovai), de temáticas mais “malandras”, praianas e descompromissadas, seguido, já na década seguinte, por um pólo paulista, na “Boca do Lixo”, em que se destacam os produtores A. P. Galante, Alfredo Palácios e Osvaldo Massaini e que acabaria por incorporar, em alguns filmes, um subtexto político.
Um dado interessante das produções da Boca - feitas com orçamentos apertados e prazos bem curtos - é que, apesar de no mais das vezes não serem co-financiadas pelo Estado, elas respondem por cerca de 60% da produção nacional entre 1972 e 1982 (quando a estatal Embrafilme dominava o mercado), pagando-se na bilheteria, um luxo ao qual o grosso do cinema brasileiro atual não pode sequer sonhar.
Experimentalismo e política
Numa primeira fase, o gênero iria servir de plataforma de lançamento para diretores talentosos que iriam trilhar o caminho de um cinema mais autoral ou atuar no Cinema Marginal, com o qual a pornochanchada inicialmente às vezes se confunde. É destacadamente o caso de Carlos Reichenbach – o mais bem-sucedido estética e ideologicamente dos realizadores que dialogavam com a pornochanchada - mas também de João Callegaro (O Pornógrafo) e do porno-horror de José Mojica Marins (o "Zé do Caixão').
Com o tempo, a produção pornochanchadesca iria consagrar um elenco de realizadores identificados com o gênero , como Jean Garret (que dirigiu o "clássico" A ilha do desejo), Alfredo Sterheim, Ody Fraga (que tomou parte na direção dos dois A noite das taras), Fauzi Mansur, o hoje novelista Sílvio de Abreu, Tony Vieira, entre tantos outros.
Gêneros e popularidade
Como anota Nuno César de Abreu no verbete “Pornochanchada” do Dicionário do Cinema Brasileiro, “Servindo-se de um erotismo implícito, combinando títulos com duplo sentido, situações e quiprocós amorosos, piadas maliciosas e gags imaginosas, a pornochanchada condensa um imaginário que chega ao público ‘popular’ de forma precisa”.
Os títulos dos filmes filiados a tal produção fornecem uma ilustração que permite entrever tal relação: Reformatório das Depravadas; Tem Bububu no bobobó; O bem-dotado, o homem de Itu; Oh! Rebuceteio; O beijo da mulher piranha; Emoções sexuais de um jegue e por aí vai.
Musas eternas
A razão de ser das pornochanchadas são suas musas, que inspirariam gerações de adolescentes espinhudos, espectadores da Sala Especial da TV Record. Vera Fisher, no auge da beleza, fez filmes memoráveis, que de certa forma sobreviveram bem ao tempo, como A Superfêmea e Anjo Loiro (refilmagem soft-pornô de O Anjo Azul, com Vera no papel que fora de Marlene Dietrich). Helena Ramos (foto à esquerda)) reinava soberana entre as morenas, ao lado de Matilde Mastrangi, Zaira Bueno, Cristina Aché (que estreou o “clássico” Coisas eróticas, em que o protagonista se “apaixona” por uma... melancia)... Mas Aldine Muller - que anos depois, num ato de alta traição, tingiu os cabelos de loiro - também era páreo duro.
Adele Fátima, protagonista do clássico Histórias que nossas babás não contavam (analisado aqui pela pena do mestre Luiz Antonio Simas) reinava absoluta entre as negras (a rigor, Zezé Motta nunca fez pornochanchada, embora Xica da Silva dialogue com o gênero, como a campanha de marketing do filme de Cacá Diegues evidenciava).
Quanto às loiras, havia a belíssima Monique Lafond, a arrasa-quarteirões Vera Gimenez (mãe da não menos vuluptuosa apresentadora Luciana), as classudas Kate Lyra e Maria Lúcia Dahl (última foto) e a sumida Nádia Lippi (cuja foto encima este post, pois, com seus dentinhos proeminentes e olhos verdes, era uma favorita deste blogueiro), entre tantas outras musas.
Entre os homens (argh!), eram figurinhas carimbadas Nuno Leal Maia, Reginaldo Farias, Jece Valadão (que fazia o tipo machão e, para inveja dos pobres mortais, era casado com Vera Gimenez), Toni Tornado (um raro galã negro, exceção ao racismo dominane) e David Cardoso (que era também um bem-sucedido produtor).
Respeitabilidade e decadência
Havia ainda, em meio a toda essa produção, o caso dos filmes situados numa zona limítrofe entre o drama ou a comédia erótica e a pornochanchada, mas não necessariamente rotulados como esta. É o que ocorre com da obra de Walter Hugo Khouri, repleta de influências do cinema de arte europeu dos anos 60. Ela antecede e supera a época da pornochanchada mas dela se beneficiou até em termos de marketing – o qual invariavelmente enfatizava o harém de belas mulheres em cenas eróticas (a mais famosa delas, protagonizada por uma tal de Xuxa). Também ocupam essa zona limítrofe os filmes do já citado Carlão Reichenbach e, notadamente, dois filmes dirigidos pelo grande batalhador Neville D'Almeida: A Dama do Lotação (estrelado pela musa suprema Sônia Braga e que continua entre as três maiores bilheterias da história do cinema nacional) e Os Sete Gatinhos (1980), este último com um elenco de belas mulheres reunidas para uma sequência de taras de exaurir os aborrescentes mais atléticos. Troféu Pelo na Mão 1970!
A partir dos anos 80, uma série de razões – o advento do videocassete, a competição dom o pornô hardcore de baixo custo importado e, segundo alguns autores, até mesmo a democratização política (?!) – transformaria a pornochanchada no reino do sexo explícito. Ainda assim, alguns talentos excêntricos, como Sady Baby e Juan Bajon, e algumas “musas perversas”, como Sandra Morelli e a hiperfogosa Márcia Ferro se destacariam – mas com temáticas e abordagens não digeríveis por qualquer público.
Desatenção e culto
O preconceito contra a pornochanchada diminuiu nos últimos anos, e até pesquisadores das pós-graduações acadêmicas têm deixado a afetação blasé de lado e demonstrado interesse – ainda pontual e insuficiente – pelo período. Mas são necessárias muita pesquisa e sistematização para propiciar uma visão apurada e sincrônica desse período obscuro do cinema nacional. Fora da universidade, as informações são fragmentadas e imprecisas.
Quando, em meio a um zapping madrugadeiro, me deparo ocasionalmente com filmes da pornochanchada, não raro eles me agastam e não prendem minha atenção, mas às vezes encontro autênticas jóias de criatividade, humor e erotismo – e de uma certa espontaneidade e improvisação que andam faltando no cinema nacional atual, muito pseudo-hollywoodiano pro meu gosto.
Ao contrário da versão que se tornou mais corrente (e que a Wikpiédia “compra”), a pornochanchada surge no final dos anos 60, com um pólo carioca (Reginaldo Faria, Pedro Carlos Rovai), de temáticas mais “malandras”, praianas e descompromissadas, seguido, já na década seguinte, por um pólo paulista, na “Boca do Lixo”, em que se destacam os produtores A. P. Galante, Alfredo Palácios e Osvaldo Massaini e que acabaria por incorporar, em alguns filmes, um subtexto político.
Um dado interessante das produções da Boca - feitas com orçamentos apertados e prazos bem curtos - é que, apesar de no mais das vezes não serem co-financiadas pelo Estado, elas respondem por cerca de 60% da produção nacional entre 1972 e 1982 (quando a estatal Embrafilme dominava o mercado), pagando-se na bilheteria, um luxo ao qual o grosso do cinema brasileiro atual não pode sequer sonhar.
Experimentalismo e política
Numa primeira fase, o gênero iria servir de plataforma de lançamento para diretores talentosos que iriam trilhar o caminho de um cinema mais autoral ou atuar no Cinema Marginal, com o qual a pornochanchada inicialmente às vezes se confunde. É destacadamente o caso de Carlos Reichenbach – o mais bem-sucedido estética e ideologicamente dos realizadores que dialogavam com a pornochanchada - mas também de João Callegaro (O Pornógrafo) e do porno-horror de José Mojica Marins (o "Zé do Caixão').
Com o tempo, a produção pornochanchadesca iria consagrar um elenco de realizadores identificados com o gênero , como Jean Garret (que dirigiu o "clássico" A ilha do desejo), Alfredo Sterheim, Ody Fraga (que tomou parte na direção dos dois A noite das taras), Fauzi Mansur, o hoje novelista Sílvio de Abreu, Tony Vieira, entre tantos outros.
Gêneros e popularidade
Como anota Nuno César de Abreu no verbete “Pornochanchada” do Dicionário do Cinema Brasileiro, “Servindo-se de um erotismo implícito, combinando títulos com duplo sentido, situações e quiprocós amorosos, piadas maliciosas e gags imaginosas, a pornochanchada condensa um imaginário que chega ao público ‘popular’ de forma precisa”.
Os títulos dos filmes filiados a tal produção fornecem uma ilustração que permite entrever tal relação: Reformatório das Depravadas; Tem Bububu no bobobó; O bem-dotado, o homem de Itu; Oh! Rebuceteio; O beijo da mulher piranha; Emoções sexuais de um jegue e por aí vai.
Musas eternas
A razão de ser das pornochanchadas são suas musas, que inspirariam gerações de adolescentes espinhudos, espectadores da Sala Especial da TV Record. Vera Fisher, no auge da beleza, fez filmes memoráveis, que de certa forma sobreviveram bem ao tempo, como A Superfêmea e Anjo Loiro (refilmagem soft-pornô de O Anjo Azul, com Vera no papel que fora de Marlene Dietrich). Helena Ramos (foto à esquerda)) reinava soberana entre as morenas, ao lado de Matilde Mastrangi, Zaira Bueno, Cristina Aché (que estreou o “clássico” Coisas eróticas, em que o protagonista se “apaixona” por uma... melancia)... Mas Aldine Muller - que anos depois, num ato de alta traição, tingiu os cabelos de loiro - também era páreo duro.
Adele Fátima, protagonista do clássico Histórias que nossas babás não contavam (analisado aqui pela pena do mestre Luiz Antonio Simas) reinava absoluta entre as negras (a rigor, Zezé Motta nunca fez pornochanchada, embora Xica da Silva dialogue com o gênero, como a campanha de marketing do filme de Cacá Diegues evidenciava).
Quanto às loiras, havia a belíssima Monique Lafond, a arrasa-quarteirões Vera Gimenez (mãe da não menos vuluptuosa apresentadora Luciana), as classudas Kate Lyra e Maria Lúcia Dahl (última foto) e a sumida Nádia Lippi (cuja foto encima este post, pois, com seus dentinhos proeminentes e olhos verdes, era uma favorita deste blogueiro), entre tantas outras musas.
Entre os homens (argh!), eram figurinhas carimbadas Nuno Leal Maia, Reginaldo Farias, Jece Valadão (que fazia o tipo machão e, para inveja dos pobres mortais, era casado com Vera Gimenez), Toni Tornado (um raro galã negro, exceção ao racismo dominane) e David Cardoso (que era também um bem-sucedido produtor).
Respeitabilidade e decadência
Havia ainda, em meio a toda essa produção, o caso dos filmes situados numa zona limítrofe entre o drama ou a comédia erótica e a pornochanchada, mas não necessariamente rotulados como esta. É o que ocorre com da obra de Walter Hugo Khouri, repleta de influências do cinema de arte europeu dos anos 60. Ela antecede e supera a época da pornochanchada mas dela se beneficiou até em termos de marketing – o qual invariavelmente enfatizava o harém de belas mulheres em cenas eróticas (a mais famosa delas, protagonizada por uma tal de Xuxa). Também ocupam essa zona limítrofe os filmes do já citado Carlão Reichenbach e, notadamente, dois filmes dirigidos pelo grande batalhador Neville D'Almeida: A Dama do Lotação (estrelado pela musa suprema Sônia Braga e que continua entre as três maiores bilheterias da história do cinema nacional) e Os Sete Gatinhos (1980), este último com um elenco de belas mulheres reunidas para uma sequência de taras de exaurir os aborrescentes mais atléticos. Troféu Pelo na Mão 1970!
A partir dos anos 80, uma série de razões – o advento do videocassete, a competição dom o pornô hardcore de baixo custo importado e, segundo alguns autores, até mesmo a democratização política (?!) – transformaria a pornochanchada no reino do sexo explícito. Ainda assim, alguns talentos excêntricos, como Sady Baby e Juan Bajon, e algumas “musas perversas”, como Sandra Morelli e a hiperfogosa Márcia Ferro se destacariam – mas com temáticas e abordagens não digeríveis por qualquer público.
Desatenção e culto
O preconceito contra a pornochanchada diminuiu nos últimos anos, e até pesquisadores das pós-graduações acadêmicas têm deixado a afetação blasé de lado e demonstrado interesse – ainda pontual e insuficiente – pelo período. Mas são necessárias muita pesquisa e sistematização para propiciar uma visão apurada e sincrônica desse período obscuro do cinema nacional. Fora da universidade, as informações são fragmentadas e imprecisas.
Quando, em meio a um zapping madrugadeiro, me deparo ocasionalmente com filmes da pornochanchada, não raro eles me agastam e não prendem minha atenção, mas às vezes encontro autênticas jóias de criatividade, humor e erotismo – e de uma certa espontaneidade e improvisação que andam faltando no cinema nacional atual, muito pseudo-hollywoodiano pro meu gosto.
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quinta-feira, 18 de março de 2010
Inquietações sobre o virtual
É reconfortador poder viajar para os mais variados lugares do Brasil e do mundo e ter quase sempre à mão a possibilidade de interagir com o universo virtual que nos é costumeiro: há algo de quase caseiro quando voltamos, via tela do computador, ao português, aos nossos sites e blogues de costume e aos amigos virtuais (ou reais e virtuais).
Porém, ao menos para mim, há algo de assustador nisso; algo de monocórdio e claustrofóbico, que, de modo geral, tende a nivelar diferenças e a subvalorizar a peculiaridade do lugar que visitamos e das pessoas que lá habitam. Foi sob o impacto dessas sensações que me veio a reflexão abaixo:
O papel preponderante que a comunicação veio a assumir no atual estágio tecnofinanceiro do capitalismo tem suscitado, na academia e fora dela - destacadamente na internet -, uma série de indagações, reflexões e estudos acerca de sua função no mundo contemporâneo – e dos efeitos e tendências que tal posição, a um tempo meio e mensagem, acarreta.
O fenômeno que Dênis de Moraes chama de “desenvolvimento infotelecomunicacional” legou à comunicação, via aprimoramento e miniaturização dos sistemas digitais de formatação-padrão, armazenamento e transmissão de dados, um papel primordial na estruturação e circulação da informação, em que a máxima time is money torna-se, mais que um verismo, uma realidade constatável em espécie – num proceso ao qual se tem agregado um duplo valor: como bem indutor de ganho material direto (na forma de indicadores de tendência, de informação privilegiada, de dados que asseguram “fuso-ganhos” na real-time economy) e como produto-base de um cada vez mais expandido mercado de bens políticos e culturais lato sensu.
Tais mudanças impressionam não apenas pela sua velocidade, pela assimetria que, sob diversos aspectos, as caracterizam, mas por seu papel decisivo na reconfiguração da dinâmica do capitalismo e de suas conseqüências na formação, comercialização e difusão de bens imateriais capazes de interferir agudamente no imaginário coletivo (como ocorreu nos anos 90 no processo de “naturalização ideológica da economia liberal de mercado” via mídia, como alude Muniz Sodré no artigo "O globalismo como neobarbárie").
“O que os homens fazem depende do que eles pensam” – por trás de sua aparente obviedade, a máxima, grafada pelo pensador liberal Stuart Mill, desvela um mecanismo de ação-reação que, naturalizado de forma inconsciente no cotidiano, vem sofrendo, nas últimas décadas, sob os auspícios das modernas técnicas de marketing e do bombardeamento intermitente de informação, forte, “naturalizada” e não auto-evidente inflexão na constituição das concepções e dos quereres coletivos.
O Homem contemporâneo, cada vez mais subjugado pela tecnologia, parece em vias de cumprir a profecia do mais radical dos filósofos pós-marxistas: tornar-se um “Homem unidimensional”, ou seja, um ser cujas relações sociais seriam determinadas pela tecnologia, que por sua vez estaria profundamente imbricada – como de fato está - com o modo de produção capitalista, a ponto de com este se confundir (pensem, por exemplo, nos fluxos de transações financeiras virtuais).
Não é desse modo, como uma lúgubre distopia cerceadora da liberdade, que muitos dos que trafegam - por diversão, ideologia ou trabalho - nas redes sociais e no maravilhoso mundo novo da internet sentem a onipresença da tecnologia na vida contemporânea, mas como um seu oposto, pleno de interatividade e liberdade de ação. Há toda uma legião de pensadores – de Chris Anderson a Domenico Di Masi, de Michael Hardt a Pierre Lévy e a Nicholas Negroponte – a alimentar, se não tal utopia de liberdade, o anseio que um dia esta possa se tornar plena.
Porém, ao menos para mim, há algo de assustador nisso; algo de monocórdio e claustrofóbico, que, de modo geral, tende a nivelar diferenças e a subvalorizar a peculiaridade do lugar que visitamos e das pessoas que lá habitam. Foi sob o impacto dessas sensações que me veio a reflexão abaixo:
O papel preponderante que a comunicação veio a assumir no atual estágio tecnofinanceiro do capitalismo tem suscitado, na academia e fora dela - destacadamente na internet -, uma série de indagações, reflexões e estudos acerca de sua função no mundo contemporâneo – e dos efeitos e tendências que tal posição, a um tempo meio e mensagem, acarreta.
O fenômeno que Dênis de Moraes chama de “desenvolvimento infotelecomunicacional” legou à comunicação, via aprimoramento e miniaturização dos sistemas digitais de formatação-padrão, armazenamento e transmissão de dados, um papel primordial na estruturação e circulação da informação, em que a máxima time is money torna-se, mais que um verismo, uma realidade constatável em espécie – num proceso ao qual se tem agregado um duplo valor: como bem indutor de ganho material direto (na forma de indicadores de tendência, de informação privilegiada, de dados que asseguram “fuso-ganhos” na real-time economy) e como produto-base de um cada vez mais expandido mercado de bens políticos e culturais lato sensu.
Tais mudanças impressionam não apenas pela sua velocidade, pela assimetria que, sob diversos aspectos, as caracterizam, mas por seu papel decisivo na reconfiguração da dinâmica do capitalismo e de suas conseqüências na formação, comercialização e difusão de bens imateriais capazes de interferir agudamente no imaginário coletivo (como ocorreu nos anos 90 no processo de “naturalização ideológica da economia liberal de mercado” via mídia, como alude Muniz Sodré no artigo "O globalismo como neobarbárie").
“O que os homens fazem depende do que eles pensam” – por trás de sua aparente obviedade, a máxima, grafada pelo pensador liberal Stuart Mill, desvela um mecanismo de ação-reação que, naturalizado de forma inconsciente no cotidiano, vem sofrendo, nas últimas décadas, sob os auspícios das modernas técnicas de marketing e do bombardeamento intermitente de informação, forte, “naturalizada” e não auto-evidente inflexão na constituição das concepções e dos quereres coletivos.
O Homem contemporâneo, cada vez mais subjugado pela tecnologia, parece em vias de cumprir a profecia do mais radical dos filósofos pós-marxistas: tornar-se um “Homem unidimensional”, ou seja, um ser cujas relações sociais seriam determinadas pela tecnologia, que por sua vez estaria profundamente imbricada – como de fato está - com o modo de produção capitalista, a ponto de com este se confundir (pensem, por exemplo, nos fluxos de transações financeiras virtuais).
Não é desse modo, como uma lúgubre distopia cerceadora da liberdade, que muitos dos que trafegam - por diversão, ideologia ou trabalho - nas redes sociais e no maravilhoso mundo novo da internet sentem a onipresença da tecnologia na vida contemporânea, mas como um seu oposto, pleno de interatividade e liberdade de ação. Há toda uma legião de pensadores – de Chris Anderson a Domenico Di Masi, de Michael Hardt a Pierre Lévy e a Nicholas Negroponte – a alimentar, se não tal utopia de liberdade, o anseio que um dia esta possa se tornar plena.
Mas permanece, por outro lado, uma série de inquietações: até que ponto um avanço tecnológico que nos demanda diariamente um tempo cada vez maior de dedicação – para ler emails, blogar, tuitar, conversar no MSN – é libertador? Quem lucra, afinal, com tanta atividade voluntária? E, por fim, mesmo que de liberdade de fato se trate, o que nos garante que Marcuse não estava certo, e ela só nos é aparentemente concedida para que façamos girar a roda do capitalismo tecnofinanceiro?
(Imagem retirada daqui)
domingo, 14 de março de 2010
A manipulação da ética no "caso Folha x Nassif"
Que após o convescote no Café Millenium o comportamento da mídia se tornou ainda mais agressivo, irresponsável e distante, muito distante, do que se espera de um setor encarregado da nobre missão de informar a sociedade, parecem não restar dúvidas.
Os inacreditáveis factóides em sequência de O Globo - culminando com “notícia” de que Lula se licenciaria e Sarney assumiria por dois meses - e a chamativa capa de Veja afirmando que a casa do partido X caiu, para já na mesma semana ser desmentida por decisão judicial que não apenas recusou as denúncias, mas repreendeu o promotor pelo parco embasamento da denúncia, além de confirmamem a nova fase suscitam urgente discussão sobre quais os limites da imprensa.
A insistência de Veja na denúncia recusada pela Justiça, na edição agora nas bancas, leva-nos a uma questão ainda mais inquietante: estaria a mídia brasileira acima da Justiça? Pois em qualquer sociedade de fato democrática, após os acontecimentos da semana passada envolvendo as denúncias do promotor Blat, a revista estaria judicialmente obrigada a ostentar na capa um desmentido cabal das acusações peremptórias, feita em linguagem da marginália, na semana anterior. Alheia aos fatos e à honra alheia, segue impunemente com a “denúncia”.
Nesse cenário, o ataque da Folha de S. Paulo a Nassif, no melhor estilo vendetta mafiosa mas travestido de matéria jornalística, embora ofensivo à honra do jornalista e blogueiro, não surpreende. Apenas corrobora a degringolada ética da mídia brasileira.
Muito foi comentado, na blogosfera, sobre o caso. Não creio que eu tenha algo de substancialmente inovador a acrescentar. Miguel do Rosário escreveu um post curto mas definitivo; o Blog do Len, de forma corajosa e contundente, encaminhou diretamente à Folha uma série de perguntas sobre o “jornalismo” que tem praticado, perguntas que embora não digam respeito apenas ao “caso Nassif”, debatem temas éticos a este correlatos; e o próprio Nassif defendeu-se com prontidão, argumentação convincente e a objetividade costumeira.
No entanto, como veremos a seguir, o enfrentamento de Nassif pela Folha tem razões de fundo ainda não discutidas em profundidade, conectadas a um embate ideológico mais insidioso, ora muito tensionado pelas proximidades das eleições presidenciais.
Maniqueísmos éticos
Um dos êxitos mais duradouros do Brasil pós-ditadura militar foi ter levado cidadãos e cidadãs de todos os estratos sociais e faixas etárias a assimilar um alto grau de precaução ética em relação ao que diga respeito à esfera estatal e aos bens públicos. Essa postura, que deveria ser saudada como um avanço positivo rumo a um maior exercício da cidadania democrática, não propiciou, no entanto – em grande parte devido ao fato de ter-se dado durante o período de hegemonia neoliberal - , uma atenção equivalente à ética das relações corporativas privadas (e do quanto afetam o bem público, não apenas no âmbito material) nem anticorpos que propiciassem uma atenção redobrada quanto ao tanto que a mídia poderia explorar a atenção da sociedade à ética da esfera pública como forma de fazer valer seus interesses privados.
Assim, o que poderia ser uma oportunidade para uma revolução ética nas práticas político-insitucionais brasileiras tornou-se, pouco a pouco, terreno fértil para o neomoralismo de tons udenistas, feito de indignações seletivas, anti-sociais e classistas.
As acusações da Folha contra Nassif servem-se precisamente desse cadinho de ideologia, ainda enfronhado tanto no inconsciente coletivo quanto nos parâmetros valorativos de setores da população – notadamente, da classe média: desconfiado de tudo o que diga respeito à esfera pública, mas extremamente permissivo em relação ao âmbito corporativo privado.
Tais setores, cuja maioria luta arduamente para receber minguados caraminguás ao final do mês, tendem, assim, à humana, demasiadamente, humana indignação moral – que segundo a boutade de George Wells Herbert “é a inveja com uma auréola” – ao serem informados que um jornalista supostamente recebe R$ 55 mil por mês pagos com dinheiro público. Que daí ele seja acusado de fazer um jornalismo chapa-branca não é questão de constatação factível, mas de hipótese "lógica" decorrente.
Talvez todo esse moralismo pré-dirigido impeça alguns leitores de se aperceberem do quão contraditório é um órgão jornalístico que por décadas foi beneficiário de contratos milionários de publicidade governamental - graças a seu então notório saber em imprimir tinta no papel e vender jornal - lançar suspeitas sobre um jornalista respeitadíssimo no mercado, com anos de atuação destacada na própria Folha e reiteradamente premiado pelos próprios colegas – portanto, um profissional com notório saber - por este ter sido contratado para produzir, por um valor que o jornal finge julgar alto, programas para a TV Brasil, que é pública (mas, como tem reiteradamente demonstrado, serve ao Estado, e não ao governo, como se espera de um órgão estatal).
O jornal tinha a obrigação de saber que o montante do contrato entre a TV Brasil e a agência Dinheiro Vivo, da qual Nassif é proprietario, está rigorosamente dentro dos valores cobrados pelo mercado. Para isto, bastaria ter consultado algumas das principais produtoras do país. Mas sejamos indulgentes: consideremos que foi um descuido. Já quando a “matéria” deliberadamente confunde os custos do programa televisivo com salário de Nassif, aí não há como ignorar a manipulação, pois o caso passa a deixar a esfera jornalística e abrir interessantes perspectivas no âmbito judicial.
Acusações hipócritas
Resta, por fim, a acusação de chapa-branca, talvez a mais grave das contidas na matéria, pois potencialmente danosa à carreira de um jornalista. Mas que, n o caso, não deixa de ter um certo sabor humorístico, por advir de um órgão que, sendo vergonhosamente tendencioso em relação ao governador e pré-candidato à Presidência José Serra, com quem tem relações de longa data, não tem moral para acusar ninguém.
Nassif deixou a Folha, onde por mais de uma década ocupou espaço de destaque, após inúmeros entreveros – inclusive judiciais, quando Sarney era presidente - com os governos de turno. Isso é ser chapa-branca?
Deixou de renovar contrato com a TV Cultura – esta, sim, uma emissora pública aparelhada politicamente, que fala a linguagem do governo, não do Estado, como o demonstram seus telejornais - por ter feito críticas ao governador. Isso é ser chapa-branca?
Quem lê com assiduidade o blog do Nassif sabe que ele, com frequência, critica aspectos essenciais do governo Lula, notadamente em relação à não-adoção de um planejamento estratégico de longo prazo para o país, à política industrial, à política de cotas e, sobretudo, à valorização artificial do dólar e à política de juros, temas que vem tratando há anos, com diagnósticos desfavoráveis à atual administração federal. Além disso, republicou, no último mês, 2 artigos com o mesmo título de “A herança maldita de Lula” (um por Julia Dualibi, outro, no link, por Yoshiaki Nakano) e tem alertado para o perigo de que a recusa de de Lula em adotar uma política efetiva para o câmbio acabe por gerar graves problemas no médio prazo, à semehança do que ocorreu com FHC, com potencial danos à imagem que a história legará ao atual presidente. Isso é ser chapa-branca?
É fato que Nassif não se furta a elogiar os pontos positivos da administração Lula, nem a criticar o governo Serra, nem a analisar negativamente o comportamento da mídia. Estas três práticas jornalísticas – reconhecer acertos do governo de turno, ao invés de só criticá-lo; não poupar, por interesses próprios, críticas à administração de um possível candidato a presidente; e denunciar as práticas sujas e contrárias ao jornalismo democrático levadas a cabo pela mídia corporativa -, de tão rarefeitas no momento atual de nossa imprensa, talvez soem como heréticas. E heréticos não podem ser acusados de serem chapa-branca.
I rest my case.
Os inacreditáveis factóides em sequência de O Globo - culminando com “notícia” de que Lula se licenciaria e Sarney assumiria por dois meses - e a chamativa capa de Veja afirmando que a casa do partido X caiu, para já na mesma semana ser desmentida por decisão judicial que não apenas recusou as denúncias, mas repreendeu o promotor pelo parco embasamento da denúncia, além de confirmamem a nova fase suscitam urgente discussão sobre quais os limites da imprensa.
A insistência de Veja na denúncia recusada pela Justiça, na edição agora nas bancas, leva-nos a uma questão ainda mais inquietante: estaria a mídia brasileira acima da Justiça? Pois em qualquer sociedade de fato democrática, após os acontecimentos da semana passada envolvendo as denúncias do promotor Blat, a revista estaria judicialmente obrigada a ostentar na capa um desmentido cabal das acusações peremptórias, feita em linguagem da marginália, na semana anterior. Alheia aos fatos e à honra alheia, segue impunemente com a “denúncia”.
Nesse cenário, o ataque da Folha de S. Paulo a Nassif, no melhor estilo vendetta mafiosa mas travestido de matéria jornalística, embora ofensivo à honra do jornalista e blogueiro, não surpreende. Apenas corrobora a degringolada ética da mídia brasileira.
Muito foi comentado, na blogosfera, sobre o caso. Não creio que eu tenha algo de substancialmente inovador a acrescentar. Miguel do Rosário escreveu um post curto mas definitivo; o Blog do Len, de forma corajosa e contundente, encaminhou diretamente à Folha uma série de perguntas sobre o “jornalismo” que tem praticado, perguntas que embora não digam respeito apenas ao “caso Nassif”, debatem temas éticos a este correlatos; e o próprio Nassif defendeu-se com prontidão, argumentação convincente e a objetividade costumeira.
No entanto, como veremos a seguir, o enfrentamento de Nassif pela Folha tem razões de fundo ainda não discutidas em profundidade, conectadas a um embate ideológico mais insidioso, ora muito tensionado pelas proximidades das eleições presidenciais.
Maniqueísmos éticos
Um dos êxitos mais duradouros do Brasil pós-ditadura militar foi ter levado cidadãos e cidadãs de todos os estratos sociais e faixas etárias a assimilar um alto grau de precaução ética em relação ao que diga respeito à esfera estatal e aos bens públicos. Essa postura, que deveria ser saudada como um avanço positivo rumo a um maior exercício da cidadania democrática, não propiciou, no entanto – em grande parte devido ao fato de ter-se dado durante o período de hegemonia neoliberal - , uma atenção equivalente à ética das relações corporativas privadas (e do quanto afetam o bem público, não apenas no âmbito material) nem anticorpos que propiciassem uma atenção redobrada quanto ao tanto que a mídia poderia explorar a atenção da sociedade à ética da esfera pública como forma de fazer valer seus interesses privados.
Assim, o que poderia ser uma oportunidade para uma revolução ética nas práticas político-insitucionais brasileiras tornou-se, pouco a pouco, terreno fértil para o neomoralismo de tons udenistas, feito de indignações seletivas, anti-sociais e classistas.
As acusações da Folha contra Nassif servem-se precisamente desse cadinho de ideologia, ainda enfronhado tanto no inconsciente coletivo quanto nos parâmetros valorativos de setores da população – notadamente, da classe média: desconfiado de tudo o que diga respeito à esfera pública, mas extremamente permissivo em relação ao âmbito corporativo privado.
Tais setores, cuja maioria luta arduamente para receber minguados caraminguás ao final do mês, tendem, assim, à humana, demasiadamente, humana indignação moral – que segundo a boutade de George Wells Herbert “é a inveja com uma auréola” – ao serem informados que um jornalista supostamente recebe R$ 55 mil por mês pagos com dinheiro público. Que daí ele seja acusado de fazer um jornalismo chapa-branca não é questão de constatação factível, mas de hipótese "lógica" decorrente.
Talvez todo esse moralismo pré-dirigido impeça alguns leitores de se aperceberem do quão contraditório é um órgão jornalístico que por décadas foi beneficiário de contratos milionários de publicidade governamental - graças a seu então notório saber em imprimir tinta no papel e vender jornal - lançar suspeitas sobre um jornalista respeitadíssimo no mercado, com anos de atuação destacada na própria Folha e reiteradamente premiado pelos próprios colegas – portanto, um profissional com notório saber - por este ter sido contratado para produzir, por um valor que o jornal finge julgar alto, programas para a TV Brasil, que é pública (mas, como tem reiteradamente demonstrado, serve ao Estado, e não ao governo, como se espera de um órgão estatal).
O jornal tinha a obrigação de saber que o montante do contrato entre a TV Brasil e a agência Dinheiro Vivo, da qual Nassif é proprietario, está rigorosamente dentro dos valores cobrados pelo mercado. Para isto, bastaria ter consultado algumas das principais produtoras do país. Mas sejamos indulgentes: consideremos que foi um descuido. Já quando a “matéria” deliberadamente confunde os custos do programa televisivo com salário de Nassif, aí não há como ignorar a manipulação, pois o caso passa a deixar a esfera jornalística e abrir interessantes perspectivas no âmbito judicial.
Acusações hipócritas
Resta, por fim, a acusação de chapa-branca, talvez a mais grave das contidas na matéria, pois potencialmente danosa à carreira de um jornalista. Mas que, n o caso, não deixa de ter um certo sabor humorístico, por advir de um órgão que, sendo vergonhosamente tendencioso em relação ao governador e pré-candidato à Presidência José Serra, com quem tem relações de longa data, não tem moral para acusar ninguém.
Nassif deixou a Folha, onde por mais de uma década ocupou espaço de destaque, após inúmeros entreveros – inclusive judiciais, quando Sarney era presidente - com os governos de turno. Isso é ser chapa-branca?
Deixou de renovar contrato com a TV Cultura – esta, sim, uma emissora pública aparelhada politicamente, que fala a linguagem do governo, não do Estado, como o demonstram seus telejornais - por ter feito críticas ao governador. Isso é ser chapa-branca?
Quem lê com assiduidade o blog do Nassif sabe que ele, com frequência, critica aspectos essenciais do governo Lula, notadamente em relação à não-adoção de um planejamento estratégico de longo prazo para o país, à política industrial, à política de cotas e, sobretudo, à valorização artificial do dólar e à política de juros, temas que vem tratando há anos, com diagnósticos desfavoráveis à atual administração federal. Além disso, republicou, no último mês, 2 artigos com o mesmo título de “A herança maldita de Lula” (um por Julia Dualibi, outro, no link, por Yoshiaki Nakano) e tem alertado para o perigo de que a recusa de de Lula em adotar uma política efetiva para o câmbio acabe por gerar graves problemas no médio prazo, à semehança do que ocorreu com FHC, com potencial danos à imagem que a história legará ao atual presidente. Isso é ser chapa-branca?
É fato que Nassif não se furta a elogiar os pontos positivos da administração Lula, nem a criticar o governo Serra, nem a analisar negativamente o comportamento da mídia. Estas três práticas jornalísticas – reconhecer acertos do governo de turno, ao invés de só criticá-lo; não poupar, por interesses próprios, críticas à administração de um possível candidato a presidente; e denunciar as práticas sujas e contrárias ao jornalismo democrático levadas a cabo pela mídia corporativa -, de tão rarefeitas no momento atual de nossa imprensa, talvez soem como heréticas. E heréticos não podem ser acusados de serem chapa-branca.
I rest my case.
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quarta-feira, 10 de março de 2010
Ideologia versus Técnica
“Ideologia, eu quero uma pra viver” – o grito-desabafo da música de Cazuza, prenhe de desespero, é o retrato de uma época em que o ideário neoliberal, travestido de tecnificismo – alegadamente, uma não-ideologia – instaurou-se como uma panaceia que se impunha como solução "científica" para os problemas sócio-econômicos. Os receituários anteriormente a estes aplicados tornaram-se, de súbito, descartáveis, pois infestados dos a partir daquele momento supostamente inexistentes tendencionismos políticos.
Com o perdão pelo clichê e pelo sentimentalismo, só quem viveu esse período sabe da dor – intensificada pela duração aparentemente infinita da farsa,a qual tantos aderiram – que foi crescer em tal época, sem espaço para o debate, sem horizontes e ainda sob a constatação de que “meus herois morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”.
Nesse contexto, um dos sucessos inegáveis da mídia conservadora, durante um longo, longo tempo, foi fazer crer que havia atingido um tal grau de profissionalização da atividade jornalística que tornara suas publicações infesas a influências ideológicas.
Tal premissa é parte essencial ao tal “padrão Globo de qualidade jornalística” e esteve na base do jornalismo de Veja muito antes dela tornar-se uma revista da direita mais hidrófoba. No livro Mil Dias, Carlos Eduardo Lins da Silva – profissional dos mais respeitáveis, que infelizmente deixou escapar o timing certo de deixar a função de ombudsman da Folha de S. Paulo e acabou respingado – descreve em detalhes a implementação da profissionalização de todas as etapas da produção da notícia no diário dos Frias.
Assim como a ascensão de Lula à Presidência aos poucos desanuviou a atmosfera ideologicamente opressiva descrita acima, a difusão da internet, com a blogosfera política e as redes sociais, a alterou substancialmente, evidenciando, para muitos, a fragilidade de seus pressupostos e o grau de ideologia por trás dessa exaltação da ténica.
Mas além de ainda não atingirem um amplo contingente populacional, as novas tecnologias da comunicação veem-se obrigadas a conviver com um fenômeno que, importado dos EUA, encontrou abrigo nos mesmos veículos de mídia acima referidos – na revista Veja, sobretudo. A partir daí, se dissemina com facilidade, sobretudo entre jovens avessos ao ideário socialista ou esquerdista, com baixa formação cultural e, portanto, ávidos por fórmulas simples que lhes permitam interagir na internet política: o jornalismo neocon.
Uma espécie de versão reificada do discurso neoliberal – mas caricaturalmente direitista -, a militância neocon, que não raro emula, nos comentários e posts na internet, a agressividade de seus gurus midiáticos, tem verdadeira alergia a tudo o que cheire ao que rotulam como ideologia esquerdista. Esse fanatismo ignorante e reducionista – que, à moda da Inquisição, inclui um index de autores malditos, de Marx a Paulo Freire, passando por Eduardo Galeano e Marilena Chaui - leva a curiosas distorções.
Segundo a cantilena neocon, o internacionalmente respeitado método de alfabetização de Paulo Freire – a quem, à falta de argumentos para denegri-lo no plano das ideias, apelaram, bem ao seu estilo, para acusações pessoais de baixíssimo nível – não passaria de um método de doutrinação subversivo, e a crítica incisiva e documentada de Eduardo Galeano ao processo de exploração colonialista da América Latina teria sido tornada obsoleta pelos rasos arrazoados do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, o qual, mesmo após a devastação social que o neoliberalismo provocou no subcontinente, continuam cultuando como a um livro sagrado.
Para eles, aqueles que ensejam uma leitura do processo histórico priorizando aspectos econômicos e classistas o fazem devido a uma sub-reptícia doutrinação marxista que perpassaria, insidiosa, a formação cultural brasileira. Desnecessário dizer que os neocons, de forma geral, leram mal Marx, o confundem com o marxismo e - o que é pior - com o comunismo, sendo incapazes de distinguir tanto a exuberância utópica do "jovem Marx" quanto o caráter a priori anti-ideológico de sua produção madura. Um exemplo da argumentação neocon se apresenta na caixa de comentários de um post do blog A Moça do Sonho, intitulado “Militância x Apatia”, que inspirou este texto.
Doutrinação marxista na formação educacional brasileira? Seria cômico se não fosse trágico. Para reiterado escândalo do mundo, o Brasil, com Xuxa e congêneres, é um dos países que, há décadas, mais ostensivamente bombardeia as crianças, desde a mais tenra infância, com apelos consumistas de toda a ordem. Acompanhados de seus penduricalhos costumeiros – como o culto exagerado ao corpo e obsessão por “vencer na vida” a qualquer custo -, tais apelos têm acompanhado, diariamente, gerações de brasileiros, nas escolas particulares onde, ante a falência do ensino público, a classe média viu-se obrigada a pôr seus filhos, nas universidades particulares que não só do ponto de vista arquitetônico se assemelham a shopping centers e, de forma ininterrupta e espetacular, na produção simbólica midiática como um todo.
Mas dessa doutrinação ostensiva, feita de carros ante os quais a natureza se torna submissa e de cervejas que se confundem com louras devassas – e cujos resultados mais visíveis são consultórios psiquiátricos lotados de adolescentes com toda a sorte de desordens, para a fortuna dos laboratórios farmacêuticos - não preocupa o pensamento neocon. Afinal, a ideologia só se torna perigosa quando se anuncia contestadora ou subversiva, não é mesmo?
Com o perdão pelo clichê e pelo sentimentalismo, só quem viveu esse período sabe da dor – intensificada pela duração aparentemente infinita da farsa,a qual tantos aderiram – que foi crescer em tal época, sem espaço para o debate, sem horizontes e ainda sob a constatação de que “meus herois morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”.
Nesse contexto, um dos sucessos inegáveis da mídia conservadora, durante um longo, longo tempo, foi fazer crer que havia atingido um tal grau de profissionalização da atividade jornalística que tornara suas publicações infesas a influências ideológicas.
Tal premissa é parte essencial ao tal “padrão Globo de qualidade jornalística” e esteve na base do jornalismo de Veja muito antes dela tornar-se uma revista da direita mais hidrófoba. No livro Mil Dias, Carlos Eduardo Lins da Silva – profissional dos mais respeitáveis, que infelizmente deixou escapar o timing certo de deixar a função de ombudsman da Folha de S. Paulo e acabou respingado – descreve em detalhes a implementação da profissionalização de todas as etapas da produção da notícia no diário dos Frias.
Assim como a ascensão de Lula à Presidência aos poucos desanuviou a atmosfera ideologicamente opressiva descrita acima, a difusão da internet, com a blogosfera política e as redes sociais, a alterou substancialmente, evidenciando, para muitos, a fragilidade de seus pressupostos e o grau de ideologia por trás dessa exaltação da ténica.
Mas além de ainda não atingirem um amplo contingente populacional, as novas tecnologias da comunicação veem-se obrigadas a conviver com um fenômeno que, importado dos EUA, encontrou abrigo nos mesmos veículos de mídia acima referidos – na revista Veja, sobretudo. A partir daí, se dissemina com facilidade, sobretudo entre jovens avessos ao ideário socialista ou esquerdista, com baixa formação cultural e, portanto, ávidos por fórmulas simples que lhes permitam interagir na internet política: o jornalismo neocon.
Uma espécie de versão reificada do discurso neoliberal – mas caricaturalmente direitista -, a militância neocon, que não raro emula, nos comentários e posts na internet, a agressividade de seus gurus midiáticos, tem verdadeira alergia a tudo o que cheire ao que rotulam como ideologia esquerdista. Esse fanatismo ignorante e reducionista – que, à moda da Inquisição, inclui um index de autores malditos, de Marx a Paulo Freire, passando por Eduardo Galeano e Marilena Chaui - leva a curiosas distorções.
Segundo a cantilena neocon, o internacionalmente respeitado método de alfabetização de Paulo Freire – a quem, à falta de argumentos para denegri-lo no plano das ideias, apelaram, bem ao seu estilo, para acusações pessoais de baixíssimo nível – não passaria de um método de doutrinação subversivo, e a crítica incisiva e documentada de Eduardo Galeano ao processo de exploração colonialista da América Latina teria sido tornada obsoleta pelos rasos arrazoados do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, o qual, mesmo após a devastação social que o neoliberalismo provocou no subcontinente, continuam cultuando como a um livro sagrado.
Para eles, aqueles que ensejam uma leitura do processo histórico priorizando aspectos econômicos e classistas o fazem devido a uma sub-reptícia doutrinação marxista que perpassaria, insidiosa, a formação cultural brasileira. Desnecessário dizer que os neocons, de forma geral, leram mal Marx, o confundem com o marxismo e - o que é pior - com o comunismo, sendo incapazes de distinguir tanto a exuberância utópica do "jovem Marx" quanto o caráter a priori anti-ideológico de sua produção madura. Um exemplo da argumentação neocon se apresenta na caixa de comentários de um post do blog A Moça do Sonho, intitulado “Militância x Apatia”, que inspirou este texto.
Doutrinação marxista na formação educacional brasileira? Seria cômico se não fosse trágico. Para reiterado escândalo do mundo, o Brasil, com Xuxa e congêneres, é um dos países que, há décadas, mais ostensivamente bombardeia as crianças, desde a mais tenra infância, com apelos consumistas de toda a ordem. Acompanhados de seus penduricalhos costumeiros – como o culto exagerado ao corpo e obsessão por “vencer na vida” a qualquer custo -, tais apelos têm acompanhado, diariamente, gerações de brasileiros, nas escolas particulares onde, ante a falência do ensino público, a classe média viu-se obrigada a pôr seus filhos, nas universidades particulares que não só do ponto de vista arquitetônico se assemelham a shopping centers e, de forma ininterrupta e espetacular, na produção simbólica midiática como um todo.
Mas dessa doutrinação ostensiva, feita de carros ante os quais a natureza se torna submissa e de cervejas que se confundem com louras devassas – e cujos resultados mais visíveis são consultórios psiquiátricos lotados de adolescentes com toda a sorte de desordens, para a fortuna dos laboratórios farmacêuticos - não preocupa o pensamento neocon. Afinal, a ideologia só se torna perigosa quando se anuncia contestadora ou subversiva, não é mesmo?
(Imagem retirada daqui)
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domingo, 7 de março de 2010
Aniversário e convescote
Hoje faz um ano que este blog está no ar. Ele surgiu, como uma imposição íntima, em decorrência direta do protesto organizado por Eduardo Guimarães contra a Folha de S. Paulo e sua “ditabranda”, em um momento em que as recorrentes violações éticas da mídia ultrapassaram todos os limites.
Ele comemora seu primeiro ano de vida quando essa mesma mídia corporativa à qual a Folha pertence acaba de se juntar em um evento tão cômico quanto ameaçador. A máfia ítalo-americana costumava reunir-se em Cuba, em meio a daiquiris e praias tropicais, para tramar suas jogadas mais sujas e ousadas. A mídia brasileira, ainda mais jeca e alérgica a tudo o que seja tropical, prefere convescostes a R$500 a cabeça (não se assuste: só otários pagam, a maioria entra na faixa) em hotéis metidos a besta. Lá articula – em público, pela primeira desde 1964, como aponta o jornalista Gilberto Maringoni em artigo intitulado “O rosnar golpista do Instituto Millenium” – uma reação conjunta contra uma das candidaturas presidenciais – no caso, a de Dilma Rousseff (PT).
Isso não quer dizer, no entanto, que eles assumirão em seus veículos “jornalísticos”, de forma clara e transparente, a posição que fazem questão de ostentar através do convescote: a Folha continuará a se autodefinir como “Um jornal a serviço do Brasil”, a Veja como a principal e mais vendida publicação brasileira graças ao alegado alto nível profissional de seus colaboradores, e o/a Globo, assim como alega jamais ter deixado de cobrir as Diretas Já ou manipulado o debate entre Collor e Lula em 1989, continuará exaltando a imparcialidade inerente ao tal Padrão Globo de Qualidade. Não seria muito mais honesto se fizessem como alguns bons jornais norte-americanos e assumissem suas preferências eleitorais junto ao eleitor/telespectador? Esta é, aliás, uma das sugestões saídas do evento, mas quantos acreditam que será mesmo seguida?
No evento, ao menos dois dos palestrantes do evento – os inacreditáveis Demétrio Magnolli e Denis Rosenfied – fizeram acusações diretas ao PT relativas a seu suposto totalitarismo. Para o primeiro, que parece ignorar a revolução silenciosa que ora ocorre na internet, na difusão das pequenas e médias publicações no interior do país e nos Pontos de Cultura espalhados de forma capilar pelo território nacional, o partido “dá marcha a ré em todos os assuntos que se referem à democracia”. Já para o filósofo gaúcho, “"O PT é um partido contra a liberdade de expressão. Não há dúvidas em relação a isso” – o eminente masturbador mental não se preocupa em oferecer exemplos que permitam que sua afirmação peremptória soe como algo além de mero devaneio pessoal emitido por um ator político folclorizado pelo conservadorismo anacrônico de suas posições.
Não deixa de ser irônico que, como seus dois acólitos o demonstram, um dos sucessos da mídia brasileira em seu penoso estágio atual tenha sido, em conluio com o demotucanato, atribuir ao lulopetismo pendores autoritários – aos quais costumam se referir com a acusação genérica e conceitualmente imprecisa de “stalinismo”. Mas a verdade largamente comprovada por fatos históricos é que o PT nunca foi stalinista – muito pelo contrário, surgiu sindicalista e em oposição às linhagens soviéticas em confonto no interior do PCB, evoluindo, a partir dos anos 90, para uma espécie de social-democracia de resultados.
Também desconhece-se qualquer medida efetiva de cerceamento da liberdade de expressão durante a Presidência de Luís Inácio Lula da Silva. O único momento da história mais ou menos recente do pais em que houve, de fato, de forma inegável, censura institucional e sistemática – a ponto de destruir carreiras artísticas – foi durante a ditadura militar, notadamente no pós-AI-5. E quem apoiava tal regime? A maioria dos grupos de mídia presentes ao convescote – alguns inclusive com a cessão de carros para transporte de presos para a tortura - e os mesmos políticos do DEM (então Arena, depois PDS) que hoje berram ante qualquer proposta de regulação da atividade midiática. Será que não é evidente a contradição aqui, a sustentar o truque de acusar em outrem aquilo que o próprio acusador pratica?
Um dos recorrentes prolemas com o lulopetismo, em parte devido à concentração da mídia corporativa em mãos inimigas, em parte à crônica incompetência comunicacional própria, é a baixa capacidade de reação ante acusações e campanhas difamatórias. Cola-se com extrema facilidade no PT, em Lula e em membros do governo acusações que são claramente falsas. O exemplo acima é eloquente, com uma gritaria anti-autoritarismo petista ocultando, como tão bem diagnostica Luiz Egypto, a luta por manter a mídia acima da lei, livre para praticar um "jornalismo" que não atende nem à demanda pública nem à busca pela fidelidade aos fatos, mas tão-somente à satisfação de seus próprios interesses corporativos.
Assim foi também com o factóide desta semana - provavelmente o primeiro de uma escalada - , segundo o qual Lula licenciar-se-ia por 2 meses, sendo substituído durante tal período por Sarney. Desde o primeiro momento esteve clafro, para mim, tratar-se de um absurdo total, ao qual Lula, por consciência dos danos que tal ato poderia trazer a si e à sua candidata, jamais recorreria. Mas a “notícia” espalhou-se como rastilho: da coluna de O Globo para os blogs corporativos da empresa – que, numa clara orquestração, incluiu até os que cobrem segurança pública e cultura – e daí para os tuiteiros tucanos, os simpatizantes e os indecisos, todos a difundir freneticamente o que não passava de uma especulação sem valor jornalístico algum. E na sequência, como a corroborar a ideia de uma articulação conjunta, vem à tona a manchete de anos atrás requentada por Veja – que, de novo, tem feito muita gente boa cair como patinho.
Portanto, o segundo ano do blog começa com a perspectiva de uma disputa de baixíssimo nível à frente. Mas nossa intenção é de continuar, defendendo os valores que julgamos importantes - notadamente a ética no jornalismo e a prioridade ao social na política. E, quem sabe, como era a ideia inicial, inserir mais cinema, mais música e mais literatura nos posts, para a brincadeira ficar mais gostosa. Aos seguidores e seguidoras, agradeço pelo estímulo e reitero o convite ao diálogo.
Ele comemora seu primeiro ano de vida quando essa mesma mídia corporativa à qual a Folha pertence acaba de se juntar em um evento tão cômico quanto ameaçador. A máfia ítalo-americana costumava reunir-se em Cuba, em meio a daiquiris e praias tropicais, para tramar suas jogadas mais sujas e ousadas. A mídia brasileira, ainda mais jeca e alérgica a tudo o que seja tropical, prefere convescostes a R$500 a cabeça (não se assuste: só otários pagam, a maioria entra na faixa) em hotéis metidos a besta. Lá articula – em público, pela primeira desde 1964, como aponta o jornalista Gilberto Maringoni em artigo intitulado “O rosnar golpista do Instituto Millenium” – uma reação conjunta contra uma das candidaturas presidenciais – no caso, a de Dilma Rousseff (PT).
Isso não quer dizer, no entanto, que eles assumirão em seus veículos “jornalísticos”, de forma clara e transparente, a posição que fazem questão de ostentar através do convescote: a Folha continuará a se autodefinir como “Um jornal a serviço do Brasil”, a Veja como a principal e mais vendida publicação brasileira graças ao alegado alto nível profissional de seus colaboradores, e o/a Globo, assim como alega jamais ter deixado de cobrir as Diretas Já ou manipulado o debate entre Collor e Lula em 1989, continuará exaltando a imparcialidade inerente ao tal Padrão Globo de Qualidade. Não seria muito mais honesto se fizessem como alguns bons jornais norte-americanos e assumissem suas preferências eleitorais junto ao eleitor/telespectador? Esta é, aliás, uma das sugestões saídas do evento, mas quantos acreditam que será mesmo seguida?
No evento, ao menos dois dos palestrantes do evento – os inacreditáveis Demétrio Magnolli e Denis Rosenfied – fizeram acusações diretas ao PT relativas a seu suposto totalitarismo. Para o primeiro, que parece ignorar a revolução silenciosa que ora ocorre na internet, na difusão das pequenas e médias publicações no interior do país e nos Pontos de Cultura espalhados de forma capilar pelo território nacional, o partido “dá marcha a ré em todos os assuntos que se referem à democracia”. Já para o filósofo gaúcho, “"O PT é um partido contra a liberdade de expressão. Não há dúvidas em relação a isso” – o eminente masturbador mental não se preocupa em oferecer exemplos que permitam que sua afirmação peremptória soe como algo além de mero devaneio pessoal emitido por um ator político folclorizado pelo conservadorismo anacrônico de suas posições.
Não deixa de ser irônico que, como seus dois acólitos o demonstram, um dos sucessos da mídia brasileira em seu penoso estágio atual tenha sido, em conluio com o demotucanato, atribuir ao lulopetismo pendores autoritários – aos quais costumam se referir com a acusação genérica e conceitualmente imprecisa de “stalinismo”. Mas a verdade largamente comprovada por fatos históricos é que o PT nunca foi stalinista – muito pelo contrário, surgiu sindicalista e em oposição às linhagens soviéticas em confonto no interior do PCB, evoluindo, a partir dos anos 90, para uma espécie de social-democracia de resultados.
Também desconhece-se qualquer medida efetiva de cerceamento da liberdade de expressão durante a Presidência de Luís Inácio Lula da Silva. O único momento da história mais ou menos recente do pais em que houve, de fato, de forma inegável, censura institucional e sistemática – a ponto de destruir carreiras artísticas – foi durante a ditadura militar, notadamente no pós-AI-5. E quem apoiava tal regime? A maioria dos grupos de mídia presentes ao convescote – alguns inclusive com a cessão de carros para transporte de presos para a tortura - e os mesmos políticos do DEM (então Arena, depois PDS) que hoje berram ante qualquer proposta de regulação da atividade midiática. Será que não é evidente a contradição aqui, a sustentar o truque de acusar em outrem aquilo que o próprio acusador pratica?
Um dos recorrentes prolemas com o lulopetismo, em parte devido à concentração da mídia corporativa em mãos inimigas, em parte à crônica incompetência comunicacional própria, é a baixa capacidade de reação ante acusações e campanhas difamatórias. Cola-se com extrema facilidade no PT, em Lula e em membros do governo acusações que são claramente falsas. O exemplo acima é eloquente, com uma gritaria anti-autoritarismo petista ocultando, como tão bem diagnostica Luiz Egypto, a luta por manter a mídia acima da lei, livre para praticar um "jornalismo" que não atende nem à demanda pública nem à busca pela fidelidade aos fatos, mas tão-somente à satisfação de seus próprios interesses corporativos.
Assim foi também com o factóide desta semana - provavelmente o primeiro de uma escalada - , segundo o qual Lula licenciar-se-ia por 2 meses, sendo substituído durante tal período por Sarney. Desde o primeiro momento esteve clafro, para mim, tratar-se de um absurdo total, ao qual Lula, por consciência dos danos que tal ato poderia trazer a si e à sua candidata, jamais recorreria. Mas a “notícia” espalhou-se como rastilho: da coluna de O Globo para os blogs corporativos da empresa – que, numa clara orquestração, incluiu até os que cobrem segurança pública e cultura – e daí para os tuiteiros tucanos, os simpatizantes e os indecisos, todos a difundir freneticamente o que não passava de uma especulação sem valor jornalístico algum. E na sequência, como a corroborar a ideia de uma articulação conjunta, vem à tona a manchete de anos atrás requentada por Veja – que, de novo, tem feito muita gente boa cair como patinho.
Portanto, o segundo ano do blog começa com a perspectiva de uma disputa de baixíssimo nível à frente. Mas nossa intenção é de continuar, defendendo os valores que julgamos importantes - notadamente a ética no jornalismo e a prioridade ao social na política. E, quem sabe, como era a ideia inicial, inserir mais cinema, mais música e mais literatura nos posts, para a brincadeira ficar mais gostosa. Aos seguidores e seguidoras, agradeço pelo estímulo e reitero o convite ao diálogo.
(Imagem retirada daqui)
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terça-feira, 2 de março de 2010
Vendo Avatar
Em se tratando de filmes obedientes à linguagem narrativa clássica, Avatar é um espetáculo cinematográfico grandioso, visualmente impactante, com um tema que fascina pelas ilações com a geopolítica internacional contemporânea e graus bem dosados de fantasia e de expertise técnica – esta realçada se se assiste ao filme em 3D.
O até agora melhor filme dirigido por James Cameron se insere na linha de frente da tradição dos blockbusters forjada por Star Wars em 1977: uma narrativa que promove um mix de gêneros cinematográficos – com incursões pelo romance, drama, buddy movie, filme de guerra, ficção científica e doses abundantes de aventura -, combinado a um autorreferente esoterismo metafísico que assopra questões existenciais e à criação de um universo ficional próprio, que alude a um mundo real, mas com este raramente se confunde de forma plena.
Alegorias políticas liberais
Chega a ser surpreendente o grau de virulência da crítica que Avatar faz das empreitadas promovidas pela joint venture entre grandes corporações e poderio bélico norte-americano e o modo evidente como alegoriza a estratégia militar – em parte baseada na imersão junto a populações locais – utilizada no Afeganistão.
O recurso à alegoria, recorrente e praticamente inescapável, prova que, mais do que uma elaboração textual própria do "terceiro mundo", como sugeriu Fredric Jameson, trata-se de um artifício para a produção de significações e de discursos político-ideológicos contra-hegemônicos que encontra terreno fértil em sociedades sujeitas à violência e ao autoritarismo simbólicos, independente de seu status geopolítico internacional.
De qualquer modo, não deixa de ser auspicioso que um filme que reproduz e amplifica o pensamento do liberalismo de esquerda dos EUA alcance estrondoso sucesso no próprio país e internacionalmente – embora eu tenha a forte impressão de que em se tratando de razões de fundo político-ideológico, os motivos pelos quais plateias norte-americanas e de países cuja população cultiva um forte sentimento anti-americano se identificam com o filme divergem substancialmente (quando não são opostos entre si).
Clichês e limitações
Não que o universo representacional do filme deva ser confundido ipsis litteris com o da vida real. Como nas boas críticas da arte à política (pensem nas canções de Chico Buarque à época da ditadura), ele também fascina por si só, de forma não alegórica. O que, por outro lado, não quer dizer que tal universo seja desprovido de problemas.
A meu ver, seu maior defeito – e o ponto fraco do filme - é a caracterização do coronel Miles Quaritch (o limitado Stephen Lang) como um vilão por demais caricato. Havia ao menos duas maneiras de contornar o problema: a primeira, mais óbvia, seria reescrever o roteiro, forjando, de forma realista, um comandante militar que se limitasse a reproduzir de forma profissional a mentalidade e as práticas das forças armadas dos EUA. Só isso já seria suficente para conceber um vilão mais efetivo e detestável.
A segunda opção seria, mesmo sem alterar uma linha do roteiro original, contratar um ator como Jack Nicholson ou Christopher Walker para representá-lo: eles certamente dotariam o personagem de uma tal dose de auto-ironia (como fizeram, respectivamente, em Marte Ataca! e em Pulp Fiction) que frases que soam tão boçais quanto forçadas em Avatar (tais como “Termine logo isso que quero jantar”, dita pelo coronel em pleno bombardeio genocida) certamente tornar-se-iam a um tempo hilárias e efetivas como indicação de vileza.
Porém, o que torna a concepção do personagem ainda mais nefasta é que ela parece se dever a uma relativização intencional, como se se tratasse de uma forma de, ao exagerar a caricatura do vilão, “descolar” o retrato do militar nas telas do dos militares de carne e osso das forças armadas dos EUA.
Roteiro impacta positivamente
Também a caracterização da cientista Gracie (Sigourney Weaver) não é desprovida de problemas: ela é apresentada como a líder da seção científica da empreitada corporativo-militar, responsável por pesquisar a fauna e a flora do planeta invadido e pelo desenvolvimento e manutenção dos avatares (corpos similares ao dos habitantes do planeta, mas comandados, à distância, pelos americanos), os quais se infiltram em meio aos nativos.
Pois bem. De acordo com a própria correspondência entre universo fílmico e mundo real sugerida pela representação alegórica, tal função equivaleria à desempenhada por cientistas que asseguram milhões de lucro às corporações farmacêuticas. Estas, por sua vez, têm sido reiteradamente acusadas de negligência com o sofrimento humano e, entre outras coisas, do uso de africanos como cobaias - assim como as forças armadas às quais pertencem militares como Quaritch têm sido acusadas de tortura e genocídio. O correspondente a Gracie na vida real seria, portanto, uma espécie de outro lado da moeda do militarismo predador, em roupas civis e expressado em jargão científico, mas tão afinado à sanha das grandes corporações como o primeiro.
No entanto, em Avatar, a personagem encarnada por Sigourney Weaver acaba por evoluir, a meu ver de forma pouco convincente e problemática (pois negligenciadora de sua função alegórica) para um status representacional que a transforma numa espécie de “mocinha de segundo plano" do filme.
Mas os méritos de Avatar - que incluem, entre outros itens, um cuidado com a relação entre questões de gênero e poder raras vezes visto em mega produções - se mostram capazes de superar tais deslizes. Além dos quesitos já mencionados, merece também destaque o roteiro, muito bem amarrado e capaz de impactar como há muito não ocorria com os filmes de grande orçamento de Hollywood. [Atenção: contém spoiler]. Sobretudo o momento em que, de surpresa e com a batalha praticamente perdida pelos nativos, os grandes animais da floresta atacam em bloco o exército invasor é um grande achado do roteiro. Tal solução, a um tempo, deixa de endossar uma solução bélica per se para qualquer um dos lados envolvidos e resolve uma série de problemas ét(n)icos que uma vitória do povo nativo sob o comando do infiltrado James proporcionaria. Trata-se, na minha opinião, do grande clímax do filme e de um raro momento realmente surpreendente no cinema norte-americano atual.
Essa impressão altamente positiva de Avatar diz respeito ao que o filme oferece como espetáculo e como história, no âmbito do que os acadêmicos da área de cinema costumamos chamar de diegese ou espaço intrafílmico. A análise de alguns dos principais aspectos extrafilmicos da obra propicia uma avaliação bem mais sombria.
Avatar promove invasão cruel
Ora, é uma incongruência evidente – dir-se-ia uma hipocrisia – constatar que um filme que em sua narrativa defende o direito à auto-determinação de um povo ante o opressor, sublinhando a necessidade de preservação de bens culturais e naturais do primeiro, invada de forma avassaladora, precedido por um bombardeio de peças de marketing, o setor de exibição cinematográfico de um grande número de países do mundo, restringindo brutalmente o espaço para o filme nacional e afetando a diversidade cultural proporcionada pela exibição de produções europeias, asiática e latino-americanas.
Porém é ainda pior do que isso, e não só porque um produto audiovisual cujo total monetário movimentado, em termos diretos ou indiretos, supera a dezena de bilhões de dólares, acabando inescapavelmente por financiar, via impostos, parte relevante da empreitada militar que critica. Mas porque, no mundo corporativo que teve lugar no capitalismo tecnoficanceiro neoliberal, há ligações diretas – quando não unidade - entre as corporações que ora financiam (e tomam parte das) aventuras colonialistas dos EUA e aquelas que investem na lucrativa indústria do audiovisual, a terceira maior do país. Mesmo porque guerra e cinema se confundem e se mesclam para muito além dos termos em que Paul Virilo os debateu, constituindo mesmo uma espécie de binômio estrutural e simbólico em torno do qual tem orbitado o imperialismo norte-americano.
Com um orçamento estimado em U$250 milhões, que saltou para meio bilhão de dólares quando computado o custo da campanha de marketing, a invasão de amplos mercados no exterior é condição sine qua non para que Avatar se pague – assim como a invasão de países petrolíferos é essencial para a obtenção da energia para manter o dispendioso american way of life. No caso do cinema, não se trata mais de uma guerra a ser travada – ela já o foi, desde meados do século XX, utilizando-se de métodos comerciais sórdidos e coercitivos e no qual o mesmo o processo de imersão na cultura nativa como forma de melhor explorar suas riquezas foi e é rotineiramente empregado.
E de uma forma tal e tão bem-sucedida que criticar o domínio do espaço cinematográfico nacional pela produção cinematográfica hollywoodiana e correcioná-lo ao imperialismo, como acima feito, soa anacrônico, ideologicamente retrógrado e demodée.
O até agora melhor filme dirigido por James Cameron se insere na linha de frente da tradição dos blockbusters forjada por Star Wars em 1977: uma narrativa que promove um mix de gêneros cinematográficos – com incursões pelo romance, drama, buddy movie, filme de guerra, ficção científica e doses abundantes de aventura -, combinado a um autorreferente esoterismo metafísico que assopra questões existenciais e à criação de um universo ficional próprio, que alude a um mundo real, mas com este raramente se confunde de forma plena.
Alegorias políticas liberais
Chega a ser surpreendente o grau de virulência da crítica que Avatar faz das empreitadas promovidas pela joint venture entre grandes corporações e poderio bélico norte-americano e o modo evidente como alegoriza a estratégia militar – em parte baseada na imersão junto a populações locais – utilizada no Afeganistão.
O recurso à alegoria, recorrente e praticamente inescapável, prova que, mais do que uma elaboração textual própria do "terceiro mundo", como sugeriu Fredric Jameson, trata-se de um artifício para a produção de significações e de discursos político-ideológicos contra-hegemônicos que encontra terreno fértil em sociedades sujeitas à violência e ao autoritarismo simbólicos, independente de seu status geopolítico internacional.
De qualquer modo, não deixa de ser auspicioso que um filme que reproduz e amplifica o pensamento do liberalismo de esquerda dos EUA alcance estrondoso sucesso no próprio país e internacionalmente – embora eu tenha a forte impressão de que em se tratando de razões de fundo político-ideológico, os motivos pelos quais plateias norte-americanas e de países cuja população cultiva um forte sentimento anti-americano se identificam com o filme divergem substancialmente (quando não são opostos entre si).
Clichês e limitações
Não que o universo representacional do filme deva ser confundido ipsis litteris com o da vida real. Como nas boas críticas da arte à política (pensem nas canções de Chico Buarque à época da ditadura), ele também fascina por si só, de forma não alegórica. O que, por outro lado, não quer dizer que tal universo seja desprovido de problemas.
A meu ver, seu maior defeito – e o ponto fraco do filme - é a caracterização do coronel Miles Quaritch (o limitado Stephen Lang) como um vilão por demais caricato. Havia ao menos duas maneiras de contornar o problema: a primeira, mais óbvia, seria reescrever o roteiro, forjando, de forma realista, um comandante militar que se limitasse a reproduzir de forma profissional a mentalidade e as práticas das forças armadas dos EUA. Só isso já seria suficente para conceber um vilão mais efetivo e detestável.
A segunda opção seria, mesmo sem alterar uma linha do roteiro original, contratar um ator como Jack Nicholson ou Christopher Walker para representá-lo: eles certamente dotariam o personagem de uma tal dose de auto-ironia (como fizeram, respectivamente, em Marte Ataca! e em Pulp Fiction) que frases que soam tão boçais quanto forçadas em Avatar (tais como “Termine logo isso que quero jantar”, dita pelo coronel em pleno bombardeio genocida) certamente tornar-se-iam a um tempo hilárias e efetivas como indicação de vileza.
Porém, o que torna a concepção do personagem ainda mais nefasta é que ela parece se dever a uma relativização intencional, como se se tratasse de uma forma de, ao exagerar a caricatura do vilão, “descolar” o retrato do militar nas telas do dos militares de carne e osso das forças armadas dos EUA.
Roteiro impacta positivamente
Também a caracterização da cientista Gracie (Sigourney Weaver) não é desprovida de problemas: ela é apresentada como a líder da seção científica da empreitada corporativo-militar, responsável por pesquisar a fauna e a flora do planeta invadido e pelo desenvolvimento e manutenção dos avatares (corpos similares ao dos habitantes do planeta, mas comandados, à distância, pelos americanos), os quais se infiltram em meio aos nativos.
Pois bem. De acordo com a própria correspondência entre universo fílmico e mundo real sugerida pela representação alegórica, tal função equivaleria à desempenhada por cientistas que asseguram milhões de lucro às corporações farmacêuticas. Estas, por sua vez, têm sido reiteradamente acusadas de negligência com o sofrimento humano e, entre outras coisas, do uso de africanos como cobaias - assim como as forças armadas às quais pertencem militares como Quaritch têm sido acusadas de tortura e genocídio. O correspondente a Gracie na vida real seria, portanto, uma espécie de outro lado da moeda do militarismo predador, em roupas civis e expressado em jargão científico, mas tão afinado à sanha das grandes corporações como o primeiro.
No entanto, em Avatar, a personagem encarnada por Sigourney Weaver acaba por evoluir, a meu ver de forma pouco convincente e problemática (pois negligenciadora de sua função alegórica) para um status representacional que a transforma numa espécie de “mocinha de segundo plano" do filme.
Mas os méritos de Avatar - que incluem, entre outros itens, um cuidado com a relação entre questões de gênero e poder raras vezes visto em mega produções - se mostram capazes de superar tais deslizes. Além dos quesitos já mencionados, merece também destaque o roteiro, muito bem amarrado e capaz de impactar como há muito não ocorria com os filmes de grande orçamento de Hollywood. [Atenção: contém spoiler]. Sobretudo o momento em que, de surpresa e com a batalha praticamente perdida pelos nativos, os grandes animais da floresta atacam em bloco o exército invasor é um grande achado do roteiro. Tal solução, a um tempo, deixa de endossar uma solução bélica per se para qualquer um dos lados envolvidos e resolve uma série de problemas ét(n)icos que uma vitória do povo nativo sob o comando do infiltrado James proporcionaria. Trata-se, na minha opinião, do grande clímax do filme e de um raro momento realmente surpreendente no cinema norte-americano atual.
Essa impressão altamente positiva de Avatar diz respeito ao que o filme oferece como espetáculo e como história, no âmbito do que os acadêmicos da área de cinema costumamos chamar de diegese ou espaço intrafílmico. A análise de alguns dos principais aspectos extrafilmicos da obra propicia uma avaliação bem mais sombria.
Avatar promove invasão cruel
Ora, é uma incongruência evidente – dir-se-ia uma hipocrisia – constatar que um filme que em sua narrativa defende o direito à auto-determinação de um povo ante o opressor, sublinhando a necessidade de preservação de bens culturais e naturais do primeiro, invada de forma avassaladora, precedido por um bombardeio de peças de marketing, o setor de exibição cinematográfico de um grande número de países do mundo, restringindo brutalmente o espaço para o filme nacional e afetando a diversidade cultural proporcionada pela exibição de produções europeias, asiática e latino-americanas.
Porém é ainda pior do que isso, e não só porque um produto audiovisual cujo total monetário movimentado, em termos diretos ou indiretos, supera a dezena de bilhões de dólares, acabando inescapavelmente por financiar, via impostos, parte relevante da empreitada militar que critica. Mas porque, no mundo corporativo que teve lugar no capitalismo tecnoficanceiro neoliberal, há ligações diretas – quando não unidade - entre as corporações que ora financiam (e tomam parte das) aventuras colonialistas dos EUA e aquelas que investem na lucrativa indústria do audiovisual, a terceira maior do país. Mesmo porque guerra e cinema se confundem e se mesclam para muito além dos termos em que Paul Virilo os debateu, constituindo mesmo uma espécie de binômio estrutural e simbólico em torno do qual tem orbitado o imperialismo norte-americano.
Com um orçamento estimado em U$250 milhões, que saltou para meio bilhão de dólares quando computado o custo da campanha de marketing, a invasão de amplos mercados no exterior é condição sine qua non para que Avatar se pague – assim como a invasão de países petrolíferos é essencial para a obtenção da energia para manter o dispendioso american way of life. No caso do cinema, não se trata mais de uma guerra a ser travada – ela já o foi, desde meados do século XX, utilizando-se de métodos comerciais sórdidos e coercitivos e no qual o mesmo o processo de imersão na cultura nativa como forma de melhor explorar suas riquezas foi e é rotineiramente empregado.
E de uma forma tal e tão bem-sucedida que criticar o domínio do espaço cinematográfico nacional pela produção cinematográfica hollywoodiana e correcioná-lo ao imperialismo, como acima feito, soa anacrônico, ideologicamente retrógrado e demodée.
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