Em outras palavras: a análise pretende se ater aos fatos e não a um wishful thinking politicamente correto cujas intenções últimas eu compartilho, embora, por razões que deixarei claro ao longo do texto, tenha sérias dúvidas quanto a algumas de suas premissas – e, mais ainda, em relação a seus resultados objetivos. Por se tratar de um tema delicado e inflamável, peço aos leitores e leitoras que tiverem a paciência de me acompanhar ao longo do texto que se certifiquem de que sou mesmo merecedor das pedras, antes de atirá-las.
A internet e o humor
O ponto de partida para a análise é o crescente mal-estar que piadas de cunho racistas têm despertado nos setores mais esclarecidos da sociedade, do qual a reação à pretensa piada de Danilo Gentili (que, há cerca de um mês, “tuitou” a seguinte mensagem: “Agora, no Telecine, o filme 'King Kong', um macaco que, depois de ir para a cidade, pega uma loira. Quem ele pensa que é? Jogador de futebol?”) do CQC, foi exemplar.
Utilizando-se das novas ferramentas de comunicação na internet, esses setores resolveram dar uma espécie de “basta” ao humor que se utiliza de forma derrisória de estereótipos racistas, sexistas e expressivos de preconceitos de forma geral.
A partir sobretudo dessa reação, uma espécie de lema passou a ser insistentemente repetido através da internet, como o demonstra, por exemplo, um tweet colhido ao léo, enviado no último sábado por @flabrito: “Não, piadas racistas, xenófobas, sobre terrorismo, assassinatos e maus-tratos de animais não são engraçadas”.
De lemas e de fatos
Trata-se de uma afirmação cujas premissas são genuina e verdadeiramente compartilhadas por muitas pessoas e, como tal, espelha um posicionamento ideológico de determinados setores da sociedade – posicionamento este que se alia, por um lado, ao desenvolvimento do que Norberto Bobbio vê como uma etapa avançada na batalha pelos direitos humanos e, por outro lado, a uma visão que identifica um processo de retroalimentação do racismo através do humor preconceituoso.
Suas genuinidade e implicações polítcas não fazem, contudo, que a afirmação seja um dado histórico incontestável. Na verdade, pelo contrário: uma análise fria e desapaixonada dos fatos tenderia a constatar que a existência – e a persistência ao longo do tempo - de tantas piadas racistas e xenófobas denota que, para muitos e há tempos, elas são – e, pior, continuam sendo - engraçadas. Afinal, se não houvesse quem delas risse, haveria poucas piadas a respeito de tais temas e elas tenderiam a diminuir ao longo do tempo. Infelizmente, não é isso que ocorre – e a mesma internet que dá voz a essas parcelas da sociedade que querem estancar as vertentes racistas e preconceituosas do humor tornou-se, por outro lado, o principal repósitório e incubadora das piadas que têm raça, gênero e preconceitos como tema (e, veja bem, não estamos falando de nichos minoritários, mas de sites de humor com altíssima audiência e que estão, há muito, no top 10 da internet brasileira).
Ignorar esse fato e seguir repetindo um mantra que pode ser belo, coberto das melhores intenções e totalmente “do bem”, mas que não corresponde à prática social efetiva - como o presente estatuto do politicamente correto tem feito -, é incorrer em um grave erro tácito de ação política: ignorar os fatos. E a história desconhece exemplos de ações políticas bem-sucedidas baseadas em diagnósticos falsos.
Repete-se, assim, no Brasil contemporâneo, um dos graves problemas com o construcionismo social made in USA, cujos preceitos estão por trás dessa forma de militância politicamente correta ora em voga (com 3 décadas de atraso, como de praxe nas relações entre metrópole e colônia): apostar tão-somente em marcos regulatórios socialmente impostos , de cima para abaixo, ignorando tanto pressupostos psicanalíticos específicos, strictu sensu – como o estudo desenvolvido por Freud em Jokes and Their Relation to the Unconscious e seus desdobramentos na psicologia coletiva moderna - quanto as implicações genéricas, metafóricas de mecanismos reativos à repressão, notadamente o conceito de “retorno do oprimido”.
Os EUA e a mídia
A cultura popular industrial afigura-se terreno fértil para a análise das consequências de tal miopia. Tomemos, pois, como exemplo, a produção contemporânea de filmes e séries norte-americanas. Com maior vigor a partir de fins dos anos 80, movimentos organizados de defesa dos gays e dos negros passaram a fazer ingerências junto aos grandes estúdios de Hollywood visando coibir representações depreciativas e obter maior e mais qualificada presença de seus representados nos filmes. O resultado foi, inicialmente e por um bom período, positivo, talvez menos em relação a questões de gênero do que raciais, mas neste âmbito proporcionou resultados palpáveis, com a ascenção profissional e econômica de gerações de astros negros e, pela primeira vez, sua presença frequente e distinção eventual nas principais premiações do cinema e da TV (sendo que Denzel Washington, Halle Berry, Cuba Gooding Jr. e Jamie Foxx estão entre os multipremiados).
Porém o que acontece hoje em dia? O politicamente correto tornou-se, ele mesmo, mais do que um tema de humor, o fio que perpassa toda uma linhagem de comédia, que tem em Sacha Baron Cohen um de seus ícones maiores, mas de forma alguma o único. Mesmo nas comédias mais pedestres – como em Se Beber Não Case (The Hangover, Todd Philips, EUA, 2009) , em cartaz no Brasil - estabeleceu-se um procedimento-padrão para driblar as restrições impostas pelo establishment do politicamente correto e reforçar preconceitos: elas são explicitamente enunciadas pela trama, artifício que funciona a um tempo como um sinal de que serão desrespeitadas e um salvo-conduto para transcendê-las sem constrangimentos.
É esse mesmo mecanismo que sustenta uma das vertentes do humor de House, a série com o médico tão brilhante quanto rabugento que é um fenômeno mundial de audiência. O politicamente correto é não apenas desprezado, mas sua própria superação cumpre um duplo papel: é em si um tema de piada e uma desculpa para tornar as piadas de cunho racista (ou preconceituosas) ainda mais livres de qualquer contingência imposta pela moral vigente (como se observa inúmeras vezes não só em relação a Foreman, o médico vivido por Omar Epps, mas particularmente - e com uma virulência poucas vezes vista na TV - contra o personagem de Cole “Big Love”, o mórmon candidato a médico na quarta das até agora seis temporadas da série).
Ou seja, o politicamente correto tem se tornado, paradoxalmente e cada vez mais, um elemento de intensificação do racismo na produção audiovisual. Trata-se, metaforicamente, do retorno do oprimido de que nos fala Freud, puro, escarrado e, como pelo fundador da psicanálise previsto, mais forte e insidioso.
Sem saídas fáceis
Como sair desse impasse? Deve-se deixar que o humor baseado em preconceitos e discriminação circule livremente? Decerto que não. A militância anti-racismo na internet pode funcionar efetivamente como uma estratégia de convencimento a médio prazo? Talvez. O contra-ataque na forma de piadas que têm como alvo estereótipos ligados aos poderes dominantes é válido como estratégia? Na minha opinião pessoal, sim. Poucas assuntos são mais potencialmente engraçados do que figuras do autoritarismo patriarcal e conservador (pense em José Serra).
Porém não tenho a pretensão de ter a resposta para tão complexa questão. Não posso deixar de registrar, no entanto, que , como já colocado anteriormente, ignorar fatos quando se trata de se desenhar uma estratégia para um objetivo político é burrice – e eventualmente uma burrice contra-producente, como o presente status da representação social na produção audiovisual norte-americana o demonstra.
É o que ocorre no Brasil atual, em relação a essa relação entre humor e preconceitos: fica-se um grupo de pessoas bem-intencionadas de um lado, afirmando que piadas racistas e/ou homofóbicas não têm graça; e, do outro lado, outro grupo, ao que tudo indica numericamente maior, consumindo diariamente piadas do tipo produzidas pelos principais sites de humor. Mesmo correndo o risco de sofrer o destino do mensageiro do rei que é imolado por trazer más notícias, tal estado de coisas me leva a constatar que a atual estratégia de combate ao humor politicamente incorreto não está funcionando.
Que há formas mais inteligentes de se criticar o racismo - e com humor - o clip abaixo reproduzido não deixa dúvidas.
4 comentários:
Que achado esse vídeo! Demais mesmo. Nem é pelo tanto que amo o Chico, mas a música e a dança e as interpretações dele e do Gil são 10! Valeu! (postei o vídeo no bloguinho, pq não podia deixar passar essa maravilha!)
Bj
Agradeça ao Gil, que estava no auge da carreira nessa obra-prima, não é mesmo?
linha muito tênue separa o verdadeiro humor do preconceito, mas pelas pretensas brincadeiras que alguém tem muito mais se conhece do que há de verdade dentro daquela pessoa, por isso acho o besteirol escatológico americano tão sem graça.
já outras bobeiras gosto, mas sem deixar de perceber, jamais o que há por trás do discurso. cabe a nós decifrar e não replicar certos modelos. isso não é falta de humor, é querer um mundo melhor pra todos. simples assim.
Caro Maurício: muito bom o post. Todavia, acho que o "politicamente correto", mesmo quando distanciado da realidade, ou justamente por isso, tem sua função - quer dizer, justamente por ele ser formal, ele pode ser útil (ou seja, se alguém enuncia um conteúdo racista codificado como tal, pode e deve ser punido). Dito isso, o distanciamento da realidade por vezes converte o "politicamente correto" em eufemismo, isto é, um artifício da linguagem que diz escondendo o que quer dizer. Estou há tempos querendo escrever sobre isso; vamos ver se sai algo. Abraço
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