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domingo, 6 de setembro de 2009

Humor e racismo

Este post trata de um tema delicado e que mobiliza, com o perdão do oxímoro, ódios apaixonados. Ele examina, de forma pontual, a relação entre humor e racismo nos dias atuais, buscando a máxima independência analítica possivel e, portanto, evitando certos discursos em voga, que são muito bonitos no papel mas cuja efetividade em termos de práticas sociais ainda precisa ser comprovada.

Em outras palavras: a análise pretende se ater aos fatos e não a um wishful thinking politicamente correto cujas intenções últimas eu compartilho, embora, por razões que deixarei claro ao longo do texto, tenha sérias dúvidas quanto a algumas de suas premissas – e, mais ainda, em relação a seus resultados objetivos. Por se tratar de um tema delicado e inflamável, peço aos leitores e leitoras que tiverem a paciência de me acompanhar ao longo do texto que se certifiquem de que sou mesmo merecedor das pedras, antes de atirá-las.


A internet e o humor
O ponto de partida para a análise é o crescente mal-estar que piadas de cunho racistas têm despertado nos setores mais esclarecidos da sociedade, do qual a reação à pretensa piada de Danilo Gentili (que, há cerca de um mês, “tuitou” a seguinte mensagem: “Agora, no Telecine, o filme 'King Kong', um macaco que, depois de ir para a cidade, pega uma loira. Quem ele pensa que é? Jogador de futebol?”) do CQC, foi exemplar.

Utilizando-se das novas ferramentas de comunicação na internet, esses setores resolveram dar uma espécie de “basta” ao humor que se utiliza de forma derrisória de estereótipos racistas, sexistas e expressivos de preconceitos de forma geral.

A partir sobretudo dessa reação, uma espécie de lema passou a ser insistentemente repetido através da internet, como o demonstra, por exemplo, um tweet colhido ao léo, enviado no último sábado por @flabrito: “Não, piadas racistas, xenófobas, sobre terrorismo, assassinatos e maus-tratos de animais não são engraçadas”.


De lemas e de fatos
Trata-se de uma afirmação cujas premissas são genuina e verdadeiramente compartilhadas por muitas pessoas e, como tal, espelha um posicionamento ideológico de determinados setores da sociedade – posicionamento este que se alia, por um lado, ao desenvolvimento do que Norberto Bobbio vê como uma etapa avançada na batalha pelos direitos humanos e, por outro lado, a uma visão que identifica um processo de retroalimentação do racismo através do humor preconceituoso.

Suas genuinidade e implicações polítcas não fazem, contudo, que a afirmação seja um dado histórico incontestável. Na verdade, pelo contrário: uma análise fria e desapaixonada dos fatos tenderia a constatar que a existência – e a persistência ao longo do tempo - de tantas piadas racistas e xenófobas denota que, para muitos e há tempos, elas são – e, pior, continuam sendo - engraçadas. Afinal, se não houvesse quem delas risse, haveria poucas piadas a respeito de tais temas e elas tenderiam a diminuir ao longo do tempo. Infelizmente, não é isso que ocorre – e a mesma internet que dá voz a essas parcelas da sociedade que querem estancar as vertentes racistas e preconceituosas do humor tornou-se, por outro lado, o principal repósitório e incubadora das piadas que têm raça, gênero e preconceitos como tema (e, veja bem, não estamos falando de nichos minoritários, mas de sites de humor com altíssima audiência e que estão, há muito, no top 10 da internet brasileira).

Ignorar esse fato e seguir repetindo um mantra que pode ser belo, coberto das melhores intenções e totalmente “do bem”, mas que não corresponde à prática social efetiva - como o presente estatuto do politicamente correto tem feito -, é incorrer em um grave erro tácito de ação política: ignorar os fatos. E a história desconhece exemplos de ações políticas bem-sucedidas baseadas em diagnósticos falsos.

Repete-se, assim, no Brasil contemporâneo, um dos graves problemas com o construcionismo social made in USA, cujos preceitos estão por trás dessa forma de militância politicamente correta ora em voga (com 3 décadas de atraso, como de praxe nas relações entre metrópole e colônia): apostar tão-somente em marcos regulatórios socialmente impostos , de cima para abaixo, ignorando tanto pressupostos psicanalíticos específicos, strictu sensu – como o estudo desenvolvido por Freud em Jokes and Their Relation to the Unconscious e seus desdobramentos na psicologia coletiva moderna - quanto as implicações genéricas, metafóricas de mecanismos reativos à repressão, notadamente o conceito de “retorno do oprimido”.


Os EUA e a mídia
A cultura popular industrial afigura-se terreno fértil para a análise das consequências de tal miopia. Tomemos, pois, como exemplo, a produção contemporânea de filmes e séries norte-americanas. Com maior vigor a partir de fins dos anos 80, movimentos organizados de defesa dos gays e dos negros passaram a fazer ingerências junto aos grandes estúdios de Hollywood visando coibir representações depreciativas e obter maior e mais qualificada presença de seus representados nos filmes. O resultado foi, inicialmente e por um bom período, positivo, talvez menos em relação a questões de gênero do que raciais, mas neste âmbito proporcionou resultados palpáveis, com a ascenção profissional e econômica de gerações de astros negros e, pela primeira vez, sua presença frequente e distinção eventual nas principais premiações do cinema e da TV (sendo que Denzel Washington, Halle Berry, Cuba Gooding Jr. e Jamie Foxx estão entre os multipremiados).

Porém o que acontece hoje em dia? O politicamente correto tornou-se, ele mesmo, mais do que um tema de humor, o fio que perpassa toda uma linhagem de comédia, que tem em Sacha Baron Cohen um de seus ícones maiores, mas de forma alguma o único. Mesmo nas comédias mais pedestres – como em Se Beber Não Case (The Hangover, Todd Philips, EUA, 2009) , em cartaz no Brasil - estabeleceu-se um procedimento-padrão para driblar as restrições impostas pelo establishment do politicamente correto e reforçar preconceitos: elas são explicitamente enunciadas pela trama, artifício que funciona a um tempo como um sinal de que serão desrespeitadas e um salvo-conduto para transcendê-las sem constrangimentos.

É esse mesmo mecanismo que sustenta uma das vertentes do humor de House, a série com o médico tão brilhante quanto rabugento que é um fenômeno mundial de audiência. O politicamente correto é não apenas desprezado, mas sua própria superação cumpre um duplo papel: é em si um tema de piada e uma desculpa para tornar as piadas de cunho racista (ou preconceituosas) ainda mais livres de qualquer contingência imposta pela moral vigente (como se observa inúmeras vezes não só em relação a Foreman, o médico vivido por Omar Epps, mas particularmente - e com uma virulência poucas vezes vista na TV - contra o personagem de Cole “Big Love”, o mórmon candidato a médico na quarta das até agora seis temporadas da série).

Ou seja, o politicamente correto tem se tornado, paradoxalmente e cada vez mais, um elemento de intensificação do racismo na produção audiovisual. Trata-se, metaforicamente, do retorno do oprimido de que nos fala Freud, puro, escarrado e, como pelo fundador da psicanálise previsto, mais forte e insidioso.


Sem saídas fáceis
Como sair desse impasse? Deve-se deixar que o humor baseado em preconceitos e discriminação circule livremente? Decerto que não. A militância anti-racismo na internet pode funcionar efetivamente como uma estratégia de convencimento a médio prazo? Talvez. O contra-ataque na forma de piadas que têm como alvo estereótipos ligados aos poderes dominantes é válido como estratégia? Na minha opinião pessoal, sim. Poucas assuntos são mais potencialmente engraçados do que figuras do autoritarismo patriarcal e conservador (pense em José Serra).

Porém não tenho a pretensão de ter a resposta para tão complexa questão. Não posso deixar de registrar, no entanto, que , como já colocado anteriormente, ignorar fatos quando se trata de se desenhar uma estratégia para um objetivo político é burrice – e eventualmente uma burrice contra-producente, como o presente status da representação social na produção audiovisual norte-americana o demonstra.

É o que ocorre no Brasil atual, em relação a essa relação entre humor e preconceitos: fica-se um grupo de pessoas bem-intencionadas de um lado, afirmando que piadas racistas e/ou homofóbicas não têm graça; e, do outro lado, outro grupo, ao que tudo indica numericamente maior, consumindo diariamente piadas do tipo produzidas pelos principais sites de humor. Mesmo correndo o risco de sofrer o destino do mensageiro do rei que é imolado por trazer más notícias, tal estado de coisas me leva a constatar que a atual estratégia de combate ao humor politicamente incorreto não está funcionando.


Que há formas mais inteligentes de se criticar o racismo - e com humor - o clip abaixo reproduzido não deixa dúvidas.



4 comentários:

Mariê disse...

Que achado esse vídeo! Demais mesmo. Nem é pelo tanto que amo o Chico, mas a música e a dança e as interpretações dele e do Gil são 10! Valeu! (postei o vídeo no bloguinho, pq não podia deixar passar essa maravilha!)
Bj

Unknown disse...

Agradeça ao Gil, que estava no auge da carreira nessa obra-prima, não é mesmo?

bete disse...

linha muito tênue separa o verdadeiro humor do preconceito, mas pelas pretensas brincadeiras que alguém tem muito mais se conhece do que há de verdade dentro daquela pessoa, por isso acho o besteirol escatológico americano tão sem graça.
já outras bobeiras gosto, mas sem deixar de perceber, jamais o que há por trás do discurso. cabe a nós decifrar e não replicar certos modelos. isso não é falta de humor, é querer um mundo melhor pra todos. simples assim.

Alexandre Nodari disse...

Caro Maurício: muito bom o post. Todavia, acho que o "politicamente correto", mesmo quando distanciado da realidade, ou justamente por isso, tem sua função - quer dizer, justamente por ele ser formal, ele pode ser útil (ou seja, se alguém enuncia um conteúdo racista codificado como tal, pode e deve ser punido). Dito isso, o distanciamento da realidade por vezes converte o "politicamente correto" em eufemismo, isto é, um artifício da linguagem que diz escondendo o que quer dizer. Estou há tempos querendo escrever sobre isso; vamos ver se sai algo. Abraço