Este terceiro post da série sobre a universidade brasileira analisa uma questão premente: as condições materiais do ensino superior no país. Inicialmente examinaremos o tema por um ângulo estrutural; em seguida, em relação a professores e funcionários; e, por fim, quanto às pressões que a questão financeira exerce sobre aquele que é, muitas vezes, o elo mais fraco da cadeia: o aluno.
Por economia de espaço, concentraremos o foco no ensino, deixando ao leitor a tarefa de correlacionar as questões materiais por este enfrentadas àquelas por que passam a pesquisa e a extensão, as quais apenas tangenciaremos em nossa abordagem.
Não é nossa intenção fornecer uma radiografia macroeconômica do ensino superior brasileiro e de parâmetros de comparação com o universo universitário internacional baseada em dados e estatísticas. Os sites do MEC, do CNPq e da Capes, bem como os de seus correspondentes estrangeiros, estão aí para quem se dispuser à tarefa. Nossa intenção é, de acordo com o espírito do blog, fornecer uma visão que combine visão pessoal e análise crítica conjuntural.
Assimetrias em série
Uma série de assimetrias econômicas em cadeia caracteriza a universidade pública brasileira. De forma geral e com a possível exceção de setores das estaduais paulistas, não há parâmetro de comparação com a universidade não apenas dos principais países desenvolvidos, mas mesmo com pesos-médio como Coréia e Nova Zelândia.
A tal assimetria, outra, interna ao país, se impõe: entre o nível das instalações, dos materiais pedagógicos e das tecnlogias disponíveis entre uma universidade pública e outra. Não se trata apenas das diferenças entre um sistema gerido pela poder central e outro pelos governos estaduais – no interior mesmo de um e de outro sistema o desnível é gritante. Tomemos dois exemplos dos mais eloquentes, conectados à divisão geoeconômica brasileira e do poder político dela decorrente: a comparação dos recursos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com os da Universidade Estadual do Mato Grosso (UEMT), ou dos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), na cidade homônima do interior de São Paulo, com os da, digamos, Universidade Federal do Piauí (UFP). Como alegar isonomia?
Porém uma terceira assimetria, talvez ainda mais efetiva, tem lugar, graças à autonomia universitária, no interior de uma mesma universidade pública: entre um e outro instituto e, nestes, entre um e outro departamento. A justificativa que se invoca para tais discrepâncias, que notadamente afetam mais as “Humanidades”, diz respeito, mormente, ao custo dos cursos e à prioridade que alegadamente deveriam ter, por seu potencial de intervenção “prática” na sociedade, as “Exatas” e as “Biomédicas”. Bobagem. Com a possível exceção do que se refere ao curso de Medicina, tal discurso não passa de desculpa para maior dotação de verbas a correligeonários, tendo como efeito colateral (não involuntário) a criação de duas classes de profissionais. Trata-se tão-somente de política barata, com todo o sentido pejorativo que a junção dos dois termos implica.
Vamos a um exemplo concreto: pertenço a uma pós-graduação que é avaliada pela Capes com a maior nota em seu campo (Comunicação). No entanto, as condições materiais a que eu, meus colegas, os funcionários e os professores estão submetidos são abaixo da crítica. O banheiro masculino é do padrão do dos piores botecos de Belfort Roxo: a tampa da privada e aquela outra parte que as mulheres fazem questão que nós, homens, levantemos, não se comunicam entre si; a pia pinga de forma intermitente, o que leva os neuróticos/TOC/Monk preocupados com o aquecimento global como eu a perder vários minutos tentando enroscá-la de modo a que ela desperdice o mínimo de água possível. A quais das três modalidades de assimetria acima elencadas deve-se atribuir a culpa por tal estado de coisas? Ou à conjunção de todas elas?
A urgente questão das bibliotecas
Se me perguntassem qual o quesito que, na minha avaliação e de acordo com minha experiência pessoal, mais se sobressai numa comparação entre a universidade brasileira e a norte-americana, diria, sem pestanejar: as bibliotecas. Decepcionei-me, de forma geral, com os professores, os currículos e os métodos; reconheço a supremacia dos espaços físicos, dos equipamentos e das tecnologias em uso, bem como o profissionalismo eficiente dos funcionários; mas o único quesito em que a universidade dos EUA realmente é infinitamente superior à brasileira é, na minha opinião, as bibliotecas. Praticamente não tenho saudades do país, mas sonho em ter novamente acesso àquele universo aparentemente infinito de livros, publicações e filmes.
Compará-lo com o que disponibilizam as bibliotecas das universidades públicas federais é defrontar-se com um quadro depressivo: acervos defasados, incompletos, em péssimas condições, desatualizados tecnologicamente; pouquíssima disponibilização de filmes e de mídias digitais, mesmo em bibliotecas de Comunicação; consulta online de documentos e publicações em estágio primitivo.
Porsua vez, as universidades públicas paulistas, ao menos em parte, provam que é possível oferecer bibliotecas informatizadas, com catálogo não tão defasado e que inclui ao menos o essencial da produção acadêmica em inglês (a qual hoje, queiramos ou não, é essencial ao profissional acadêmico). Comparado com o que, via de regra, as federais e demais estaduais oferecem, afigura-se inquestionável avanço, porém longe de ser suficiente.
Pois trata-se de uma área para a qual são necessários investimentos vultosos e urgentes se o Brasil pretende realmente ter um sistema universitário de ponta - e não uma dúzia de ilhas de excelência. Do contrário, a abertura dos cursos superiores a um número maior de estudantes não passará de uma louvável maior inserção no ensino superior, mas também de um fator de atrofia deste, a impedir que se desenvolva e atue como um dos sustentáculos tecnológicos, científicos e intelectuais de um país que se pretende player global.
Remuneração e condições de trabalho dos docentes
Claro está que discutir a questão dos salários dos professores significa defontar-se com os dilemas que caracterizam nossa Belíndia (neologismo criado pelo economista Edmar Bacha para dar conta de um país que seria metade Bélgica, metade Índia): comparados aos salários da massa de trabalhadores e medidos com a régua do salário mínimo soam polpudos; contrapostos ao que ganham os trabalhadores do andar de cima resultam risíveis.
Mas há alguns parâmetros fora dessa polarização. Um professor universitário hoje é praticamente obrigado a possuir doutorado para passar nos concursos públicos que o habilitam. Para tanto, ele tem de passar entre 10 e 15 anos estudando, dependendo de sua área e do tempo que levar para concluir uma etapa e, com esta concluída, iniciar outra (o que demanda ser aprovado nos concursos para pós-graduação). Superadas todas essas etapas, ele, encarregado de lecionar no nível mais alto do ensino público, formando novas elites,vai receber uma remuneração bruta em torno de R$8 mil por mês, composta, em sua maioria, de abonos e adicionais (ou seja, o salário nominal, aquele que conta para a aposentadoria e para outros direitos trabalhistas, é muito abaixo disso). Basta comparar tal remuneração com a de um profissional liberal com 10 anos de “janela” para constatar que se trata de um “salário” defasado.
Além desse parâmetro, há a cada vez mais cada vez mais inevitável comparação com o mercado docente internacional: os professores brasileiros ganham, em média, e observados a classe e o tempo de serviço, a metade do que percebem seus colegas norte-americanos que lecionam em universidades públicas (isso com o dólar a R$1,80, ou seja, anomalamente baixo).
Há de se considerar, ainda, que a profissão de docente universitário exige atualização constante, com compra ininterrupta de livros e materiais produzidos no exterior. Nesse quesito a falácia da globalização se revela plena: enquanto um professor na Europa ou nos EUA paga, nos grandes sites de vendas como Amazon, X por um livro, mais Y para o correio fazer a entrega (sendo que esta taxa às vezes é de graça, a depender do total da compra), seu colega brasileiro paga os mesmos X pelo livro, mas, obrigatoriamente, 3Ys pela compra, cujo custo total acaba saindo mais do que o dobro daquela feita no "primeiro-mundo" - entidade que a globalização teria supostamente tornada obsoleta.
Porém, para além da questão salarial, há o talvez ainda mais grave problema das condições de trabalho. Trata-se de um problema crônico, que o aumento do número de professores e de oferta de disciplinas – sem o respectivo aumento das condições estruturais para tal – leva agora a uma situação-limite.
Já na primeira vez que lecionei numa universidade pública, em 2001, me defrontei com tal questão: estava eu, com a ansiedade dos neófitos, dando aula quando de repente adentra a classe uma dupla de funcionários da universidade em questão. Pediram uma licença protocolar e começaram a desenroscar o aparelho de TV de seu suporte. Fiquei desconcertado, insisti que não havia nada de errado com ele (pois eu havia acabado de utilizá-lo), em vão: tinhamuma ordem de conserto. Limitaram-se a perguntar que curso era aquele:
- “Semiologia da Imagem” – respondi, abobalhado. Eles fizeram uns muxoxos risonhos, do tipo “não-estamos-nem-aí-pra-sua-disciplina-de-título-presunçoso”, e sumiram. O curso, preparado com grande antecedência para conjuminar filme, leituras e debates, virou estritamente teórico e com aulas preparadas semana a semana, com metade da classe desistindo no meio e a outra metade morrendo de tédio. Ao final, deparei-me, pela primeira vez, com um caso grave de plágio, essa verdadeira praga da era do ctrl-C, ctrl-V. Não pretendo debater esse tema nesta série de artigos, mas fica o registro para não dizer que passei batido por ele.
Recentemente, assisti ao replay da cena: o desespero de um professor de pós-graduação para conseguir exibir filmes à classe. Por três aulas ele lutou contra a improvisação, os aparelhos defeituosos, as salas que, embora reservadas para tal aula, são ocupadas por quem delas tem poder para de lá não sair. Quer dizer, quando um docente de uma área da pós-graduação chamada Análise da Imagem e do Som se vê impedido de cumprir um requisito básico previsto para o seu curso – exibir filmes, seu objeto de estudo por excelência e tema de textos correlatos e de discussões – significa que estamos sendo vencidos por um problema grave.
O funcionalismo federal
É fato que o funcionalismo público federal nas universidades tem bolsões de ineficiência e, em alguns casos, de total negligência. Lembro-me de um setor responsável pelo apoio audiovisual que tinha 80 funcionários – nunca, nos quatro anos de graduação, vi mais de 20, o resto só pegava o cheque. É evidente que isso é uma anomalia a ser sanada. Mau humor e desleixo ocorrem com uma frequência bem maior do que na iniciativa privada – é um fato.
Por outro lado, seria injusto generalizar: há funcionários eficientes e dedicados. Há de se vencer o corporativismo e instalar meios para controlar a assiduidade e a qualidade do serviço. Não se consegue tal coisa, porém, pagando-se os salários baixíssimos ora praticados.
Uma outra questão a ser debatida é a da terceirização de serviços, Confesso que não tenho uma posição isenta: sou crítico desse processo, que desvincula o funcionário da instituição em níveis diversos e cria uma subclasse de funcionários no interior da universidade. Utilizo, uma vez mais, um exemplo pessoal: certa vez cheguei ao prédio da pós ali pelas 7:30 da manhã, para uma reunião que começaria às 8. Fui entrando, acostumado há anos com a instituição. Fui barrado por um segurança fardado, pouco educado, que talvez tivesse treinamento para proteger empresas privadas, mas se encontrava claramente despreparado para lidar com a especifidade da relação de profesores e pós-graduandos com a universidade. Pior: essa função é exercida por funcionários diversos, que se revezam, dificultando a criação dos laços de coleguismo que de ordinário caracterizam a relação entre funcionários, alunos e professores.
Uma maneira de contornar o problema - justamente naqueles cargos que, estando na base do organograma profissional, são extremamente mal remunerados-, e, ao mesmo tempo, criar melhores condições materiais para o aluno, seria instituir bolsas de estudo para que alunos exercessem algumas funções durante meio período. Isso funciona às maravilhas em boa parte do mundo. Dou um exemplo hipotético: aquele cara que cuida do guarda-volumes na biblioteca, sempre com aquele carão mau humorado: remaneje-o para um lugar onde ele possa ascender; substitua-o por dois bolsistas, treinados para um atendimento amável sob o risco de perder a bolsa. Quando o carrancudo se aposentar, não abra concurso: mantenha o sistema de bolsistas. O ambiente fica melhor para os frequentadores da biblioteca, os alunos passam a ter um incentivo extra que os ajuda a se manter e, a longo prazo, o custo é menor.
Dilemas da graduação
Trazendo, muitas vezes, em sua formação as mazelas do ensino público brasileiro – aceleradamente sucateado partir dos anos 70 -, tendo, em geral, de conciliar o estudo universitário com um emprego de baixa remuneração que sua escolaridade permite, crescendo “numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”, como diagnosticou Eric Hobsbawn, o aluno, descrente da política, do futuro, de si mesmo, ocupa uma posição frágil no sistema universitário.
Isso se dá, em parte, devido à sua transitoriedade: para o aluno a universidade é, no mais das vezes, uma forma objetiva de se inserir em melhores condições no mercado de trabalho, não passando de um purgatório de aulas, textos complicados e professores caprichosos; uma vírgula entre a oscilação empregatícia da adolescência e uma carreira profissional com algum reconhecimento social.
Há, evidentemente, exceções. Comparar o corpo discente do curso de Medicina da Unesp de Botucatu com o da Pedagogia da UFPB é defrontar-se com duas realidades distintas: estacionamento repleto de carros importados vs. dificuldades econômicas para tomar o ônibus que leva e traz ao campus; férias na Europa vs. subemprego de período integral concomitante com a faculdade e por aí vai. De qualquer forma, estou certo de que, na média – e excluindo alguns cursos das estaduais paulistas e exceções pontuais aqui e ali -, a imagem criada pela mídia de que os estudantes da universidade pública são parte de uma elite econômica que deveria custear seus estudos não se sustenta.
A profissionalização da pós-graduação
Em relação à penúria total da graduação, na pós-graduação as coisas mudam um pouco, embora ela sofra - talvez de forma ainda mais prejudicial para a formação de seus membros - as consequências em cadeia das restrições materiais acima debatidas e, em um país em que, como revelou a mais recente pesquisa do INPE, os mais instruídos têm mais dificuldade de arrumar emprego do que aqueles sem instrução, se veja obrigada a atender a uma demanda extra dos que a procuram não apenas por necessidades educacionais, mas financeiras (na forma de bolsas de estudo).
É inegável, no entanto, que, do ponto de vista material, as bolsas de estudo melhoraram, se comparadas à penúria dos anos FHC – mas continuam insuficientes para garantir o sustento e, sobretudo, a importação obrigatória de livros que tal nível universitário demanda. Algumas modalidades de bolsas, poucas e difíceis de se obter, trazem uma "taxa de bancada", que ajuda a custear os voos, a estadia e as caríssimas inscrições nos congressos acadêmicos – que, por sua vez, devido a razões que analisaremos no próximo post, tornaram-se itens de suma importância na formação do currículo acadêmico.
Para os bolsistas, portanto, a situação deu uma melhorada, mas precisa melhorar mais, tanto individualmente quanto em relação à penúria material geral. Já para os não bolsistas que não pertencem ao quadro docente superior ou não detém algum cargo que combine flexibilidade de horários e remuneração ao menos razoável, a situação é muito complicada. É mister atingir 100% de oferta de bolsas a pós-graduandos que não trabalhem, exigindo que, em troca, lecione por pelo menos um semestre e cobrando uma interação mais constante com o programa ao qual está filiado. Seria bom para a universidade e para o estudante.
De qualquer modo, dentro do que pode ser feito a curto prazo pelos próprios pós-graduandos, parece-me urgente a união como forma de aumentar o poder de pressão sobre as organizações de congressos, exigindo uma redução substancial do valor das inscrições e o fim da cobrança para inscrever um trabalho sem saber se ele será aprovado ou não - exigência recentemente consolidada e que é imoral, pois é um princípio ético elementar que os custos de um evento do tipo devem ser coberto pelos que dele participam, e não pelos que dele foram excluídos.
O blog adoraria receber comentários trazendo a opinião dos colegas sobre tais temas.
Como se vê, na seara econômica os desafios são enormes para a universidade pública brasileira. Mas com planejamento, aumento substancial do orçamento para o ensino superior, e medidas que coibam a distribuição política de verbas intracampus (nem que seja necessário afrontar a autonomia univerisitária), talvez possam, a médio ou longo prazo, ser amenizados. Uma questão ainda mais intrincada e de difícil reversão é a da ideologia orientadora do ensino superior no país, tema do quarto e último post da série.
Blog sobre cinema, jornalismo, política e música, com críticas, análises e perfis.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
sábado, 26 de setembro de 2009
Com vocês, Mestre Caleiro!
Como não está com nada esse negócio de cinema e de jornalismo – que nem profissão é mais! – e dada a urgência em satisfazer minhas humildes necessidades materiais (dar a volta ao mundo de jato particular – acompanhado, of course -, só ficando em hotéis 6 estrelas e comendo em restaurantes de cla$$$$e internacional) decidi diversificar:
Apresento-lhes: Mestre Caleiro!!! – Prediz o futuro e traz a alma penada, digo, a pessoa amada, em 3 dias!!!
Para incentivar a clientela, a primeira consulta, versando sobre as próximas eleições presidenciais, não será cobrada – mas não vão se acostumando, não, que não existe almoço “de grátis” (ou pelo menos não existia até que esse bando de manés como eu decidiu dedicar-se à escravidão voluntária de escrever de graça em blogs).
Atenção para as palavras iluminadas de Mestre Caleiro, aquele que tudo vê:
- De agora até junho do ano que vem, a imprensa inventará 193 factóides visando difamar Dilma Rousseff. Eles surtirão pouco efeito junto ao eleitorado, com exceção das Velhinhas de Taubaté de sempre.
- Entre junho e julho de 2010, um dos candidatos nanicos irá subir como foguete nas pesquisas eleitorais. Não digo qual para preservar o suspense (re, re, re), mas será ou a Marina verde do ecológico partido do Zequinha Sarney; ou a Heloísa de branco do Partido de Suporte à Oligarquia (PSOL) - também conhecido como “criançada do Congresso”, na imortal definição de @flavio_as -, ou o Ciro que sempre morre pela boca e acaba revelando o coronelzinho enrustido.
- Em decorrência dos fatos acima previstos, os demo-gaviões (e, claro, a imprensa) vão soltar fogos. Predigo: será fogo de palha, e em agosto o(a) candidato voltará ao patamar de sempre.
- Em setembro, a menos de um mês da eleição, Serra terá 42,1% e Dilma 34,1%.
- A uma semana das eleições, acontecerão fatos bizarros em sequência: euros em cuecas, montanhas de dinheiro para comprar dossiê contra candidato já derrotado - enfim, o trivial. A imprensa cunhará um daqueles apelidos que “pegam” para designar os auxiliares de Dilma (naturalmente, os culpados): os “abilolados” do PT; Dilma cairá um pouco.
- Na sexta-feira anterior ao pleito, a Globo mostrará com exclusividade o cruel sequestro de um bebê, filho de um político do PSDB próximo a Serra: os sequestradores – entre eles uma mulher clone de Dilma – vestirão camisetas do PT e ameaçarão, ante as câmeras, mutilar a criança se o resgate não for pago. Ninguém (nem mesmo a cúpula do PT, que nessas horas se borra toda) vai perguntar como a Globo conseguiu as imagens, mas Dilma despencará. Euforia nas hostes paulistas!
- O resultado final das eleições no primeiro turno será: Serra, 48,3%, Dilma, 25,6%. Por muito pouco, haverá segundo turno.
- FHC será internado com um quadro agudo de invejite (de Serra).
- Durante as primeiras semanas da campanha eleitoral no segundo turno, os jornais, exultantes como há muito não se via, trarão análises políticas isentas em que as palavras “barbada”, “sopa no mel’ e “Serra já ganhou” serão repetidas à exaustão.
- Mas as primeiras pesquisas revelarão que, a exemplo do que ocorreu com Alckmin e Lula - e à medida em que o sequestro do bebê se revela uma armação -, Serra perderá a vantagem e Dilma subirá. Não será, no entanto, essa a tendência divulgada. Mas Mestre Caleiro, aquele que tudo vê, revela as parciais: Serra, 34,3% vs. Dilma, 47,8%.
- Num desespero de causa, os institutos de pesquisa e os jornais repetirão o que fizeram com Erundina em 1989 e ocultarão os números verdadeiros até os três últimos dias, quando Dilma terá, nas “pesquisas” divulgadas pela imprensa, uma ascensão meteórica.
- Como último lance dos demo-gaviões, rumores de militares dispostos a dar golpe de Estado em SP e no RS caso a ex-militante da esquerda vença serão divulgados com alarde, insinuando um clima de instabilidade institucional às vésperas da eleição.
- No dia 31/10/2010, Dilma vencerá as eleições presidenciais, derrotando Serra por 46,9% a 31,6%.
- FHC será internado no dia seguinte com um quadro agudo de invejite (de Dilma).
- Em 01º. de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tomará posse como a primeira mulher eleita à Presidência da República Federativa do Brasil.
That’s all folks! E como diria o grande Raul Seixas, pra quem provar que eu tô mentindo, eu tiro o meu chapéu...
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domingo, 20 de setembro de 2009
"Nova África" mostra excelência da TV pública
Internacionalmente, a imagem da África oscila entre estereótipos como “o continente perdido” e metáforas como o “coração das trevas” de que fala Joseph Conrad – uma região alijada do chamado desenvolvimento capitalista, devastada pela peste, miséria e demais efeitos dos séculos de exploração colonial, habitada por populações cuja sobrevivência dependeria de campanhas humanitárias.
Para o Brasil, apesar de toda a imensa herança que, como elemento formador - e a partir do legado cruel da escravidão -, nos deixou, ela continua sendo um grande enigma. É precisamente esse enigma que a série Nova África, em exibição a partir do próximo dia 25, todas as sextas-feiras, às 22hs, na TV Brasil, tenta desvelar.
Dirigida pelo jornalista e blogueiro Luiz Carlos Azenha e por Henry Daniel Ajl, a série se propõe a empreender uma “jornada de descoberta”, inédita na TV brasileira, pelo continente africano, revelando-o em sua diversidade, para além dos tais estereótipos imperialistas, com uma atenção especial a seus povos e culturas e à capilaridade de suas relações com o Brasil.
Primeiro programa enfoca Moçambique
Essa jornada começa em pleno mar, que a um tempo une e separa Brasil e África e ocupa um lugar central no imaginário artístico de boa parte da produção desses dois gigantes periféricos tão perto e tão longe entre si. Um barco navega no Oceano índico, que separa o continente africano da ilha de Moçambique, tema do primeiro programa da série de 26 episódios produzida pela Baboon Filmes, que venceu edital público da TV Brasil.
A estratégia narrativa desenhada pelo roteiro permite, a um tempo, retratar a África a partir da perspectiva dos africanos – evitando abordagens condicionadas por um vício imperialista que, como aponta o escritor moçambicano Mia Couto, tem produzido uma imagem falsa do continente – e garimpar os veios de ligação da cultura africana com a brasileira. A primeira operação é propiciada não apenas por entrevistas que evitam as fontes oficiais e interagem da forma mais espontânea possível com o interlocutor, mas por um olhar atento, cúmplice (imerso, e não de fora) ao modo de vida nos países percorridos.
Já a ligação do continente com o Brasil é uma teia tecida de forma sutil e intermitente, num primeiro nível através da repórter Aline Midlej, que já no episódio inicial, em solo africano, declara: “Como muitos brasileiros, tenho dúvidas sobre minhas raízes. Sei que alguns de meus antepassados familiares saíram daqui, e é tudo. É como se minha história familiar se perdesse na imensidão do continente”. E, enquanto imagens em sucessão mostram cenas de um cotidiano que bem poderíamos reconhecer como o de muitas pessoas no Brasil – mas que não deixam de ter um quê especial - a ligação com o continente deixa de se dar a partir da subjetividade da repórter e se anuncia coletiva: “mas qualquer um é capaz de reconhecer esse ritmo, esses sorrisos, esse jeito de ser”.
Num segundo e mais explícito nível, a ligação África-Brasil é objetivamente tematizada pela abordagem narrativa. No primeiro episódio, por exemplo, isso se dá tanto através de uma reconstituição "subjetiva" da chegada à Ilha de Moçambique do navio Nossa Senhora da Conceição, que em 1792 levou sete dos "inconfidentes" mineiros - cujas penas capitais foram comutadas por degredo em colônias portuguesas. Entre eles, Tomás Antônio Gonzaga, o autor de Marília de Dirceu, que prosperaria em terras africanas. Por vezes, o dualismo África-Brasil é superado pela evidência de uma cultura pan-portuguesa, como na ligação entre Camões (que morou em Moçambique, numa casa semi-arruinada visitada pelo documentário) e a poética luso-brasileira. Mas o momento climático do primeiro episódio se dá através do relato emocionado de uma moçambicana de sua relação com as novelas brasileiras.
Assim, evidencia-se que mais do que o continente em si, são as mulheres e os homens africanos e a cultura – na acepção ampla do termo – que produzem o centro do interesse de Nova África. O documentário, desse modo, não apenas possibilita o contato com uma realidade sócio-cultural da qual a grande mídia nos mantém afastados, mas o faz em grande estilo: com imagens belas mas jamais folclóricas, conteúdo rico em sua diversidade e curiosidade antropológica. Como o demonstra o relato de Conceição Oliveira, que prestou consultora de História à produção:
Excelência técnica e imersão emocional
A direção de fotografia da série (Markus Bruno) não pode ser considerada menos do que primorosa: gravações tecnicamente bem-resolvidas, mas feitas no calor da hora, no melhor estilo jornalístico, combinam-se a tomadas que evidenciam um cuidado extremo não apenas com angulações, movimentos de câmera e composições de quadro, mas em trabalhar a luz – no mais das vezes intensa e natural – de modo a realçar o universo multicolorido do continente sem folclorizá-lo.
Tais imagens são trabalhadas por uma montagem que é ágil sem jamais ser neurótica e “videoclipada”, como ora em voga: respira, tem ritmo; não se furta a compor mosaicos com imagens em profusão, mas respeita a relação com o objeto retratado, não hesitando em se deter em determinada tomada por um tempo mais longo, se conveniente. E, embora a ficha técnica não elenque sound design ou montagem de som entre seus quesitos, o som é tratado com especial atenção, seja em relação à imagem, como elemento de condução da narrativa ou exercendo a função de realçar a riqueza musical da África. Trata-se de um aspecto técnico tratado com um apuro raro de se observar em produções jornalístico/documentais da TV brasileira.
Desnecessário dizer que as manifestações sonoras retratadas são, literalmente, um show à parte – valorizado, no caso, pela trilha sonora e pela mixagem de Rafael Gallo. É na música e na dança, mais do que em qualquer outra arte, que a excepcional aptidão artística dos africanos se evidencializa, como manifestação de uma alegria que não sem frequência contrasta com a escassez material em volta:
Veja o trailer de Nova Àfrica
Nová África: Todas as sextas, 22h., na TV Brasil.
Making of: Segunda, 21/09, 20h.
Para o Brasil, apesar de toda a imensa herança que, como elemento formador - e a partir do legado cruel da escravidão -, nos deixou, ela continua sendo um grande enigma. É precisamente esse enigma que a série Nova África, em exibição a partir do próximo dia 25, todas as sextas-feiras, às 22hs, na TV Brasil, tenta desvelar.
Dirigida pelo jornalista e blogueiro Luiz Carlos Azenha e por Henry Daniel Ajl, a série se propõe a empreender uma “jornada de descoberta”, inédita na TV brasileira, pelo continente africano, revelando-o em sua diversidade, para além dos tais estereótipos imperialistas, com uma atenção especial a seus povos e culturas e à capilaridade de suas relações com o Brasil.
Primeiro programa enfoca Moçambique
Essa jornada começa em pleno mar, que a um tempo une e separa Brasil e África e ocupa um lugar central no imaginário artístico de boa parte da produção desses dois gigantes periféricos tão perto e tão longe entre si. Um barco navega no Oceano índico, que separa o continente africano da ilha de Moçambique, tema do primeiro programa da série de 26 episódios produzida pela Baboon Filmes, que venceu edital público da TV Brasil.
A estratégia narrativa desenhada pelo roteiro permite, a um tempo, retratar a África a partir da perspectiva dos africanos – evitando abordagens condicionadas por um vício imperialista que, como aponta o escritor moçambicano Mia Couto, tem produzido uma imagem falsa do continente – e garimpar os veios de ligação da cultura africana com a brasileira. A primeira operação é propiciada não apenas por entrevistas que evitam as fontes oficiais e interagem da forma mais espontânea possível com o interlocutor, mas por um olhar atento, cúmplice (imerso, e não de fora) ao modo de vida nos países percorridos.
Já a ligação do continente com o Brasil é uma teia tecida de forma sutil e intermitente, num primeiro nível através da repórter Aline Midlej, que já no episódio inicial, em solo africano, declara: “Como muitos brasileiros, tenho dúvidas sobre minhas raízes. Sei que alguns de meus antepassados familiares saíram daqui, e é tudo. É como se minha história familiar se perdesse na imensidão do continente”. E, enquanto imagens em sucessão mostram cenas de um cotidiano que bem poderíamos reconhecer como o de muitas pessoas no Brasil – mas que não deixam de ter um quê especial - a ligação com o continente deixa de se dar a partir da subjetividade da repórter e se anuncia coletiva: “mas qualquer um é capaz de reconhecer esse ritmo, esses sorrisos, esse jeito de ser”.
Num segundo e mais explícito nível, a ligação África-Brasil é objetivamente tematizada pela abordagem narrativa. No primeiro episódio, por exemplo, isso se dá tanto através de uma reconstituição "subjetiva" da chegada à Ilha de Moçambique do navio Nossa Senhora da Conceição, que em 1792 levou sete dos "inconfidentes" mineiros - cujas penas capitais foram comutadas por degredo em colônias portuguesas. Entre eles, Tomás Antônio Gonzaga, o autor de Marília de Dirceu, que prosperaria em terras africanas. Por vezes, o dualismo África-Brasil é superado pela evidência de uma cultura pan-portuguesa, como na ligação entre Camões (que morou em Moçambique, numa casa semi-arruinada visitada pelo documentário) e a poética luso-brasileira. Mas o momento climático do primeiro episódio se dá através do relato emocionado de uma moçambicana de sua relação com as novelas brasileiras.
Assim, evidencia-se que mais do que o continente em si, são as mulheres e os homens africanos e a cultura – na acepção ampla do termo – que produzem o centro do interesse de Nova África. O documentário, desse modo, não apenas possibilita o contato com uma realidade sócio-cultural da qual a grande mídia nos mantém afastados, mas o faz em grande estilo: com imagens belas mas jamais folclóricas, conteúdo rico em sua diversidade e curiosidade antropológica. Como o demonstra o relato de Conceição Oliveira, que prestou consultora de História à produção:
“No segundo programa, no interior de Moçambique, encontramos a professora Diamantina embaixo de um cajueiro. Era sábado, dia de entrega de material. A cena é fabulosa, passávamos pela estrada e vimos uma roda imensa de crianças ao redor do cajueiro, protegidas do sol pela copa da árvore. Ela dá aula sozinha para 360 alunos em condições distantes da ideal - e não precisa dar um grito para ter atenção. Foi uma lição de vida para todos... Você vai se emocionar, as crianças cantaram lindamente para nós, chorei. Aliás, as crianças de Moçambique me emocionaram sempre”.
Excelência técnica e imersão emocional
A direção de fotografia da série (Markus Bruno) não pode ser considerada menos do que primorosa: gravações tecnicamente bem-resolvidas, mas feitas no calor da hora, no melhor estilo jornalístico, combinam-se a tomadas que evidenciam um cuidado extremo não apenas com angulações, movimentos de câmera e composições de quadro, mas em trabalhar a luz – no mais das vezes intensa e natural – de modo a realçar o universo multicolorido do continente sem folclorizá-lo.
Tais imagens são trabalhadas por uma montagem que é ágil sem jamais ser neurótica e “videoclipada”, como ora em voga: respira, tem ritmo; não se furta a compor mosaicos com imagens em profusão, mas respeita a relação com o objeto retratado, não hesitando em se deter em determinada tomada por um tempo mais longo, se conveniente. E, embora a ficha técnica não elenque sound design ou montagem de som entre seus quesitos, o som é tratado com especial atenção, seja em relação à imagem, como elemento de condução da narrativa ou exercendo a função de realçar a riqueza musical da África. Trata-se de um aspecto técnico tratado com um apuro raro de se observar em produções jornalístico/documentais da TV brasileira.
Desnecessário dizer que as manifestações sonoras retratadas são, literalmente, um show à parte – valorizado, no caso, pela trilha sonora e pela mixagem de Rafael Gallo. É na música e na dança, mais do que em qualquer outra arte, que a excepcional aptidão artística dos africanos se evidencializa, como manifestação de uma alegria que não sem frequência contrasta com a escassez material em volta:
“Voltei com a sensação de que se há um continente onde seus povos são sinônimo de resistência é o africano. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida como pessoa, estudiosa do assunto, como mulher – afirma Conceição, que promete postar em seu blog algumas histórias sobre a empreitada e “pôr no ar algumas fotos dos sorrisos mais lindos que vi na vida” (o primeiro texto já esta lá, confira).Um tema tão raras vezes visto nas telas brasileiras, tratado com tamanha sensibilidade e alto grau de excelência técnica, prova a que veio uma TV pública que foi injusta e impiedosamente combatida por certos setores da mídia e pelas penas de aluguel a seu serviço. Pois, caro(a) leitor(a), não se deixe iludir: nenhum canal comercial ousaria produzir uma série com tamanha qualidade, que se estendesse por tanto tempo e sobre um assunto sem apelo comercial para os grandes anunciantes - porém, como a própria série demonstra, essencial para uma melhor compreensão não apenas da África e dos africanos, mas, através dela, do que somos nós: é a TV pública brasileira dizendo a que veio.
Veja o trailer de Nova Àfrica
Nová África: Todas as sextas, 22h., na TV Brasil.
Making of: Segunda, 21/09, 20h.
(imagem retirada daqui)
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Repensando a universidade brasileira - 2a Parte
Neste segundo dos quatro posts sobre a universidade brasileira, abordamos as vicissitudes teóricas que têm marcado a academia brasileira na última década e seus efeitos na formação de novas gerações de estudantes e na dinâmica do relacionamento extra-muros com a sociedade como um todo.
A questão do cânone
Um primeiro ponto a debater diz respeito à eleição por demais limitada de determinadas tendências e autores como cânones acadêmicos e à substituição da formação do senso crítico do aluno - e do estímulo à sua manifestação - pelo culto a um grupo restrito de pensadores [refiro-me às Humanidades de forma geral; sugiro ao leitor de outras áreas que correlacione exemplos utilizados aos de sua seara, se tal prática lá se der].
Ressalte-se que, como aponta Harold Bloom em um texto célebre, cultivar um cânone pode ser, no mais das vezes, um procedimento acadêmico salutar. Para ficar num exemplo simples, pensemos, pois, no absurdo de um departamento de Literatura Brasileira que não incluísse entre suas referências bibliográficas primárias a obra de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa.
O primeiro perigo a ser contornado, no entanto, é o engessamento desse cânone e, ainda mais, a recusa em abordá-lo a partir de novas abordagens e perspectivas – refere-se justamente a tais procedimentos a acepção pejorativa que impregna o termo academicismo.
Porém, algo ainda mais perverso do que cultivar um mesmo cânone teórico e filtrá-lo por uma sempre mesma abordagem é coibir seu questionamento e as críticas a ele dirigidas, entronizando-o, na prática, como objeto de culto acadêmico. É precisamente o que ocorre hoje na universidade com o cânone pós-estruturalista.
Culto no lugar da crítica
Trata-se, na verdade, de um problema que não se restringe à academia brasileira, mas encontra-se disseminado internacionalmente. O, com o perdão do pleonasmo, culto acrítico ao cânone – e, no caso, a mais ou menos o mesmo cânone pós-estruturalista ora em voga no Brasil - seria, sem dúvida, uma das características mais negativas que eu apontaria em minha experiência como pós-graduando nos Estados Unidos; recentemente, no Rio de Janeiro, ao ciceronear dois acadêmicos franceses (Paris III Sorbonne e Paris X Nanterre), seus relatos confirmaram o que breve contato anterior com a academia francesa sugerira: o culto a Foucault, Deleuze e os pós-estruturalistas os tornou quase intocáveis na própria França. (A propósito, os que enxergam tanta contestação e espírito crítico nesses pensadores deveriam atentar para o paradoxo de que eles se tornaram a tradição que não se deixa contestar.)
Tomemos Foucault como objeto de análise representativo do pós-estruturalismo. Não restam dúvidas de que ele (e Deleuze, e Derrida, e Barthes, entre outros) é um intelectual de alto gabarito, que alia a visões originais, agudas e às vezes prefiguradoras de processos sociais um talento para a escrita que talvez só encontre paralelo em Freud. Daí a colocá-lo na condição de demiurgo da sociedade contemporânea (isso há um quarto de século), cultuando-o como a um deus e ajustando os fatos às análises para, ainda hoje, atribuir-lhe faculdades clarividentes (é precisamente o caso do que eu chamo de “visão vulgar da biopolítica”, largamente disseminada), vai uma distância que, na academia, é inaceitável que seja percorrida.
A menção a Freud não é vã. Ao contrário de Foucault, ele se afirmou como referência intelectual incontestável – a um ponto tal que o século XX é às vezes referido como “o século de Freud” – após ter seu trabalho agressivamente contestado por décadas a fio. Ele passou no teste histórico. Foucault, que emergiu em pleno linguistic turn e seguiu a onda, permanecendo em sua crista num momento em que, no pós-68, a academia (notadamente a norte-americana, cuja capacidade de imperialismo cultural não deve ser menosprezada) precisava desesperadamente de novos cânones teóricos - , não foi sequer a ele submetido. Em plena crise econômica mundial e num momento de extrema concentração de riqueza em âmbito mundial, passa da hora de analisar de forma realista os efeitos da práxis (micro)política de Foucault, cujas teorias negligenciam de forma patente o papel das análises econômicas.
As críticas ocultas
Não que não existam críticas. O difícil é, em meio às igrejinhas acadêmicas e à atmosfera de turba que discutiremos na próxima seção deste post, fazer circulá-las. Por exemplo, historiadores em penca questionam (e às vezes ridicularizam) o conhecimento histórico de Foucault - elemento essencial de obras como Vigiar e Punir e Naissance de la clinique - e nunca é demais lembrar que ele foi capaz de escrever uma história da sexualidade que negligencia Sappho e dá pouca atenção ao homossexualismo feminino. No Brasil, além do que resta da crítica neomarxista de alto nível, são raras as obras que conbinam contundência e equilíbrio na abordagem do legado de Foucault – como é o caso de Cinismo e Falência da Critica, de Wladimir Saflate (cuja excelente resenha assinada por Alex Nodari, seguida de um bom debate, pode ser lida aqui).
A propósito, considero falsa a alegação, que vem de longa data e da pena de diversos autores, que a universidade brasileira se dividiria entre pós-estruturalistas e “uspianos marxistas”. Primeiro porque, se a última categoria se restringe a apenas uma universidade (ou, vá lá, a apenas uma tradição acadêmica específica) não é suficiente para “dividir” a universidade brasileira; segundo, porque tenho acompanhado de perto o processo de renovação de docentes das universidades federais e posso assegurar que, nelas, o predomínio dos pós-estruturalistas (a maioria muito mais fanática pela tendência do que seus mestres) é maciço.
Essa nova geração de professores, carente dos conhecimentos históricos e etimológicos abrangentes proporcionados pela filologia alemã e com domínio rudimentar em Economia da Cultura, encontrou no economicismo e historicismo rasos transformados em jogos mentais brilhantes de Foucault et caterva o bilhete de ingresso à docência universitária. São justamente os responsáveis pela repetição, no Brasil, da atmosfera de culto aos pós-estruturalistas predominante em muitas das universidades dos EUA - em detrimento do aperfeiçoamento da capacidade crítica de seus pupilos, que só o contato com diferentes correntes de pensamento proporciona. Como consequência, cheguei a constatar, em um congresso de cinema, que 1/3 das comunicações fazia referência a Foucault e/ou a Deleuze - a maior parte delas utilizando de forma vulgar e meramente classificatória os conceitos de "sociedade disciplinar" e "sociedade de controle" (que, como verifica-se em boa parte da produção dos principais autores do pós-estruturalsimo, são conceitos ricos em significação e possibilidades; minha crítica é à vulgarização de seu uso).
Soa simplesmente inacreditável que jovens professores de pós-graduação – que supostamente deveriam renovar os ares da academia – continuem não apenas impingindo a seus alunos uma dieta básica do mesmo pós-estruturalismo francês velho de guerra, mas o façam sem oferecer contraponto crítico e numa atmosfera de preito e de reverência quase religiosa às palavras de seus principais autores, como tenho podido, estupefato, observar com meus próprios olhos.
Cultos são inaceitáveis na academia. A universidade não é igreja.
Estrutura incentiva formação de “igrejinhas”
Colaboram sobremaneira para essa formação de igrejinhas acadêmicas onde São Foucault, São Deleuze e outras divindades pós-estruturalistas são cultuadas – num processo que inclui tribalização de vocabulário, vestuário e concepções de mundo – três fatores, agravantes dos efeitos dessa veneração que substitui o que deveria ser uma abordagem crítica.
O primeiro é o prazo extremamente reduzido de dois anos para completar o mestrado, determinado pelas diretivas que estruturam o ensino superior no país (que serão analisadas no quarto e último post da série). Além de não permiter ao mestrando aprofundar pesquisas e criar para si um leque variado de opções teóricas, ele faz com que importe, cada vez menos, a obtenção, por parte do aluno, da Urteilskraft kantiana, da capacidade de julgar que, na comunicação “Contra o minimalismo no mestrado”, publicada em 1999, no momento imediatamente anterior à implementação das mudanças ora vigentes nas pós-graduações, o psicanalista Renato Mezan ressaltava como o principal bem a ser adquirido durante tal etapa da formação acadêmica.
O segundo fator, já abordado no post anterior desta série, deriva do jogo de interesses e bajulações estimulado para a ascensão acadêmica – no qual, “naturalmente”, a tendência é que o orientando assimile e reproduza as preferências teóricas do orientador como forma de prestigiá-lo.
Ligado à questões materiais do ensino superior brasileiro - tema do próximo post da série -, o terceiro fator é a própria oferta reduzida de livros e demais fontes disponíveis nas bibliotecas universitárias e as dificuldades dos professores para manterem-se atualizados. Incorre em erro quem julga que as facilidades para importação de livros trazidas pela globalização e o fato de a maioria da clientela das pós-graduações ser da classe média para cima sejam fatores suficientes para contornar o problema (mesmo porque, a princípio, é a universidade quem deve oferecer condições apropriadas para pesquisa, incluindo disponibilização de fontes atualizadas).
Universidade e sociedade
Outra vertente central da questão diz respeito à conformação do conhecimento produzido no interior da universidade, sob os auspícios do culto a tal cânone, e sua influência nas relações entre academia e sociedade. Se, historicamente, a massa crítica que aquela produz só muito rara e pontualmente assoma ao debate público - para o qual seria das instâncias mais capacitadas a aprimorá-lo – o predomínio do pós-estruturalismo, com suas categorias verbais pouco consistentes e a opacidade aparentemente proposital de alguns de seus autores (não é o caso de Foucault nem de Deleuze) representa um emprecilho a mais para o desenvolvimento de tal relação.
Não estou com isso querendo dizer, com o perdão da simplificação, que a universidade deva rebaixar seus alegados padrões de excelência para dialogar com a sociedade, mas defendendo uma maior abertura a outras linhagens intelectuais e abordagens não tão repetitivas e menos desinteressantes ao debate cultural do que as vigentes sob o domínio proto-religioso do pós-estruturalismo. Pois é certo que há temas à mancheia com potencial de atrair parcelas da sociedade sendo desenvolvidos no interior da academia - e é evidente também que há maneiras diversas e interessantes de abordá-los com excelência acadêmica e estimulando tal diálogo. Porém, no viciado esoterismo pós-moderno que ora vige, a conjunção dos dois fatores tem sido extremamente rara.
Para além dessa questão especificamente teórica, há, ainda, para a universidade pública, o dilema entre interagir com a sociedade (que a sustenta) sem deixar-se cooptar pelo mercado – particular e justificadamente delicado no campo das chamadas “ciências humanas”. As dificuldades naturalmente impostas por tal dilema não justificam, no entanto, o hermetismo e o isolamento deliberado a que se assiste, e que não derivam exclusivamente dos efeitos da presente estruturação do ensino superior impingida pela burocracia acadêmica, mas também de seus usos e costumes internos. Assim, no minueto acadêmico, sobram salameleques e pompas; faltam incisão, pungência e, sobretudo, diálogo crítico com a sociedade.
Futuro incerto
O cenário que se desenha para o futuro parece intensificar o hermetismo e o isolamento (ou o reverso deste: a cooptação acrítica): as pós-graduações em Humanidades, por exemplo, vivenciam, há mais de uma década, um processo viciado de esvaziamento intelectual e onanismo teoricista. Capacidade analítica, cultura geral e bagagem literária pouco importam nesse cenário. Conta escolher, nesta ordem, uma “base teórica” que impressione (de preferência com a vanguarda francesa pós-pós-estruturalista de moda) e achar um tema up-to-date que nela se encaixe (quanto mais abstrato e apartado da realidade, melhor: com um projeto que analise os templates dos sites ucranianos de times de futebol de botão você tem uma chance enorme de entrar no mestrado; com outro que examine as referências sócio-econômicas nas letras de músicas produzidas pela nova geração do samba carioca suas chances se aproximam de zero).
Esvaziado os pendores críticos, sob o império do tecnicismo, das metas e prazos cada vez mais reduzidos, do teoricismo como um valor em si, “o sistema como um todo está montado para eliminar toda toda originalidade, qualquer coisa que inflame minimamente, qualquer coisa excitante, qualquer coisa extravagante”, como observa Camille Paglia, falando de um contexto estrangeiro mas que,descontados os fatores materiais, é cada vez mais o nosso (a propósito, eu sugeriria a qualquer pessoa interessada no tema que lesse a “Carta aberta aos estudantes de Harvard”, que a autora fez publicar em 1994. É um retrato acabado da universidade brasileira hoje). Seria o retorno, uma vez mais, de nossa incapacidade crítica de copiar de que falava Paulo Emílio Salles Gomes, em versão acadêmica e em pleno século XXI?
Quais serão as conseqüências dessa assepsia crítica para a formação das novas gerações de pensadores? Não há razões para otimismo.
A questão do cânone
Um primeiro ponto a debater diz respeito à eleição por demais limitada de determinadas tendências e autores como cânones acadêmicos e à substituição da formação do senso crítico do aluno - e do estímulo à sua manifestação - pelo culto a um grupo restrito de pensadores [refiro-me às Humanidades de forma geral; sugiro ao leitor de outras áreas que correlacione exemplos utilizados aos de sua seara, se tal prática lá se der].
Ressalte-se que, como aponta Harold Bloom em um texto célebre, cultivar um cânone pode ser, no mais das vezes, um procedimento acadêmico salutar. Para ficar num exemplo simples, pensemos, pois, no absurdo de um departamento de Literatura Brasileira que não incluísse entre suas referências bibliográficas primárias a obra de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa.
O primeiro perigo a ser contornado, no entanto, é o engessamento desse cânone e, ainda mais, a recusa em abordá-lo a partir de novas abordagens e perspectivas – refere-se justamente a tais procedimentos a acepção pejorativa que impregna o termo academicismo.
Porém, algo ainda mais perverso do que cultivar um mesmo cânone teórico e filtrá-lo por uma sempre mesma abordagem é coibir seu questionamento e as críticas a ele dirigidas, entronizando-o, na prática, como objeto de culto acadêmico. É precisamente o que ocorre hoje na universidade com o cânone pós-estruturalista.
Culto no lugar da crítica
Trata-se, na verdade, de um problema que não se restringe à academia brasileira, mas encontra-se disseminado internacionalmente. O, com o perdão do pleonasmo, culto acrítico ao cânone – e, no caso, a mais ou menos o mesmo cânone pós-estruturalista ora em voga no Brasil - seria, sem dúvida, uma das características mais negativas que eu apontaria em minha experiência como pós-graduando nos Estados Unidos; recentemente, no Rio de Janeiro, ao ciceronear dois acadêmicos franceses (Paris III Sorbonne e Paris X Nanterre), seus relatos confirmaram o que breve contato anterior com a academia francesa sugerira: o culto a Foucault, Deleuze e os pós-estruturalistas os tornou quase intocáveis na própria França. (A propósito, os que enxergam tanta contestação e espírito crítico nesses pensadores deveriam atentar para o paradoxo de que eles se tornaram a tradição que não se deixa contestar.)
Tomemos Foucault como objeto de análise representativo do pós-estruturalismo. Não restam dúvidas de que ele (e Deleuze, e Derrida, e Barthes, entre outros) é um intelectual de alto gabarito, que alia a visões originais, agudas e às vezes prefiguradoras de processos sociais um talento para a escrita que talvez só encontre paralelo em Freud. Daí a colocá-lo na condição de demiurgo da sociedade contemporânea (isso há um quarto de século), cultuando-o como a um deus e ajustando os fatos às análises para, ainda hoje, atribuir-lhe faculdades clarividentes (é precisamente o caso do que eu chamo de “visão vulgar da biopolítica”, largamente disseminada), vai uma distância que, na academia, é inaceitável que seja percorrida.
A menção a Freud não é vã. Ao contrário de Foucault, ele se afirmou como referência intelectual incontestável – a um ponto tal que o século XX é às vezes referido como “o século de Freud” – após ter seu trabalho agressivamente contestado por décadas a fio. Ele passou no teste histórico. Foucault, que emergiu em pleno linguistic turn e seguiu a onda, permanecendo em sua crista num momento em que, no pós-68, a academia (notadamente a norte-americana, cuja capacidade de imperialismo cultural não deve ser menosprezada) precisava desesperadamente de novos cânones teóricos - , não foi sequer a ele submetido. Em plena crise econômica mundial e num momento de extrema concentração de riqueza em âmbito mundial, passa da hora de analisar de forma realista os efeitos da práxis (micro)política de Foucault, cujas teorias negligenciam de forma patente o papel das análises econômicas.
As críticas ocultas
Não que não existam críticas. O difícil é, em meio às igrejinhas acadêmicas e à atmosfera de turba que discutiremos na próxima seção deste post, fazer circulá-las. Por exemplo, historiadores em penca questionam (e às vezes ridicularizam) o conhecimento histórico de Foucault - elemento essencial de obras como Vigiar e Punir e Naissance de la clinique - e nunca é demais lembrar que ele foi capaz de escrever uma história da sexualidade que negligencia Sappho e dá pouca atenção ao homossexualismo feminino. No Brasil, além do que resta da crítica neomarxista de alto nível, são raras as obras que conbinam contundência e equilíbrio na abordagem do legado de Foucault – como é o caso de Cinismo e Falência da Critica, de Wladimir Saflate (cuja excelente resenha assinada por Alex Nodari, seguida de um bom debate, pode ser lida aqui).
A propósito, considero falsa a alegação, que vem de longa data e da pena de diversos autores, que a universidade brasileira se dividiria entre pós-estruturalistas e “uspianos marxistas”. Primeiro porque, se a última categoria se restringe a apenas uma universidade (ou, vá lá, a apenas uma tradição acadêmica específica) não é suficiente para “dividir” a universidade brasileira; segundo, porque tenho acompanhado de perto o processo de renovação de docentes das universidades federais e posso assegurar que, nelas, o predomínio dos pós-estruturalistas (a maioria muito mais fanática pela tendência do que seus mestres) é maciço.
Essa nova geração de professores, carente dos conhecimentos históricos e etimológicos abrangentes proporcionados pela filologia alemã e com domínio rudimentar em Economia da Cultura, encontrou no economicismo e historicismo rasos transformados em jogos mentais brilhantes de Foucault et caterva o bilhete de ingresso à docência universitária. São justamente os responsáveis pela repetição, no Brasil, da atmosfera de culto aos pós-estruturalistas predominante em muitas das universidades dos EUA - em detrimento do aperfeiçoamento da capacidade crítica de seus pupilos, que só o contato com diferentes correntes de pensamento proporciona. Como consequência, cheguei a constatar, em um congresso de cinema, que 1/3 das comunicações fazia referência a Foucault e/ou a Deleuze - a maior parte delas utilizando de forma vulgar e meramente classificatória os conceitos de "sociedade disciplinar" e "sociedade de controle" (que, como verifica-se em boa parte da produção dos principais autores do pós-estruturalsimo, são conceitos ricos em significação e possibilidades; minha crítica é à vulgarização de seu uso).
Soa simplesmente inacreditável que jovens professores de pós-graduação – que supostamente deveriam renovar os ares da academia – continuem não apenas impingindo a seus alunos uma dieta básica do mesmo pós-estruturalismo francês velho de guerra, mas o façam sem oferecer contraponto crítico e numa atmosfera de preito e de reverência quase religiosa às palavras de seus principais autores, como tenho podido, estupefato, observar com meus próprios olhos.
Cultos são inaceitáveis na academia. A universidade não é igreja.
Estrutura incentiva formação de “igrejinhas”
Colaboram sobremaneira para essa formação de igrejinhas acadêmicas onde São Foucault, São Deleuze e outras divindades pós-estruturalistas são cultuadas – num processo que inclui tribalização de vocabulário, vestuário e concepções de mundo – três fatores, agravantes dos efeitos dessa veneração que substitui o que deveria ser uma abordagem crítica.
O primeiro é o prazo extremamente reduzido de dois anos para completar o mestrado, determinado pelas diretivas que estruturam o ensino superior no país (que serão analisadas no quarto e último post da série). Além de não permiter ao mestrando aprofundar pesquisas e criar para si um leque variado de opções teóricas, ele faz com que importe, cada vez menos, a obtenção, por parte do aluno, da Urteilskraft kantiana, da capacidade de julgar que, na comunicação “Contra o minimalismo no mestrado”, publicada em 1999, no momento imediatamente anterior à implementação das mudanças ora vigentes nas pós-graduações, o psicanalista Renato Mezan ressaltava como o principal bem a ser adquirido durante tal etapa da formação acadêmica.
O segundo fator, já abordado no post anterior desta série, deriva do jogo de interesses e bajulações estimulado para a ascensão acadêmica – no qual, “naturalmente”, a tendência é que o orientando assimile e reproduza as preferências teóricas do orientador como forma de prestigiá-lo.
Ligado à questões materiais do ensino superior brasileiro - tema do próximo post da série -, o terceiro fator é a própria oferta reduzida de livros e demais fontes disponíveis nas bibliotecas universitárias e as dificuldades dos professores para manterem-se atualizados. Incorre em erro quem julga que as facilidades para importação de livros trazidas pela globalização e o fato de a maioria da clientela das pós-graduações ser da classe média para cima sejam fatores suficientes para contornar o problema (mesmo porque, a princípio, é a universidade quem deve oferecer condições apropriadas para pesquisa, incluindo disponibilização de fontes atualizadas).
Universidade e sociedade
Outra vertente central da questão diz respeito à conformação do conhecimento produzido no interior da universidade, sob os auspícios do culto a tal cânone, e sua influência nas relações entre academia e sociedade. Se, historicamente, a massa crítica que aquela produz só muito rara e pontualmente assoma ao debate público - para o qual seria das instâncias mais capacitadas a aprimorá-lo – o predomínio do pós-estruturalismo, com suas categorias verbais pouco consistentes e a opacidade aparentemente proposital de alguns de seus autores (não é o caso de Foucault nem de Deleuze) representa um emprecilho a mais para o desenvolvimento de tal relação.
Não estou com isso querendo dizer, com o perdão da simplificação, que a universidade deva rebaixar seus alegados padrões de excelência para dialogar com a sociedade, mas defendendo uma maior abertura a outras linhagens intelectuais e abordagens não tão repetitivas e menos desinteressantes ao debate cultural do que as vigentes sob o domínio proto-religioso do pós-estruturalismo. Pois é certo que há temas à mancheia com potencial de atrair parcelas da sociedade sendo desenvolvidos no interior da academia - e é evidente também que há maneiras diversas e interessantes de abordá-los com excelência acadêmica e estimulando tal diálogo. Porém, no viciado esoterismo pós-moderno que ora vige, a conjunção dos dois fatores tem sido extremamente rara.
Para além dessa questão especificamente teórica, há, ainda, para a universidade pública, o dilema entre interagir com a sociedade (que a sustenta) sem deixar-se cooptar pelo mercado – particular e justificadamente delicado no campo das chamadas “ciências humanas”. As dificuldades naturalmente impostas por tal dilema não justificam, no entanto, o hermetismo e o isolamento deliberado a que se assiste, e que não derivam exclusivamente dos efeitos da presente estruturação do ensino superior impingida pela burocracia acadêmica, mas também de seus usos e costumes internos. Assim, no minueto acadêmico, sobram salameleques e pompas; faltam incisão, pungência e, sobretudo, diálogo crítico com a sociedade.
Futuro incerto
O cenário que se desenha para o futuro parece intensificar o hermetismo e o isolamento (ou o reverso deste: a cooptação acrítica): as pós-graduações em Humanidades, por exemplo, vivenciam, há mais de uma década, um processo viciado de esvaziamento intelectual e onanismo teoricista. Capacidade analítica, cultura geral e bagagem literária pouco importam nesse cenário. Conta escolher, nesta ordem, uma “base teórica” que impressione (de preferência com a vanguarda francesa pós-pós-estruturalista de moda) e achar um tema up-to-date que nela se encaixe (quanto mais abstrato e apartado da realidade, melhor: com um projeto que analise os templates dos sites ucranianos de times de futebol de botão você tem uma chance enorme de entrar no mestrado; com outro que examine as referências sócio-econômicas nas letras de músicas produzidas pela nova geração do samba carioca suas chances se aproximam de zero).
Esvaziado os pendores críticos, sob o império do tecnicismo, das metas e prazos cada vez mais reduzidos, do teoricismo como um valor em si, “o sistema como um todo está montado para eliminar toda toda originalidade, qualquer coisa que inflame minimamente, qualquer coisa excitante, qualquer coisa extravagante”, como observa Camille Paglia, falando de um contexto estrangeiro mas que,descontados os fatores materiais, é cada vez mais o nosso (a propósito, eu sugeriria a qualquer pessoa interessada no tema que lesse a “Carta aberta aos estudantes de Harvard”, que a autora fez publicar em 1994. É um retrato acabado da universidade brasileira hoje). Seria o retorno, uma vez mais, de nossa incapacidade crítica de copiar de que falava Paulo Emílio Salles Gomes, em versão acadêmica e em pleno século XXI?
Quais serão as conseqüências dessa assepsia crítica para a formação das novas gerações de pensadores? Não há razões para otimismo.
domingo, 13 de setembro de 2009
Um almoço entre Rio e SP
O permanente estado de espanto-quase-choque em que tenho sido mantido, nos últimos 16 meses (desde que voltei ao Brasil e a São Paulo), pelos atos da dupla Serra-Kassab quase fez com que eu esquecesse das mazelas do Rio de Janeiro.
Explico: vou ao Rio quase todas as semanas, para jornadas intensas de trabalho, pesquisa e estudo, mas que trazem em seu bojo o contato com a atmosfera acadêmica mais relax dos fluminenses, além de, eventualmente, alguns finais de noite deliciosos.
Assim, e embora eu esteja ciente dos desmandos de Cabralzinho e Maia, criou-se, no meu íntimo, uma espécie de falsa dicotomia, em que São Paulo seria a terra do protofascismo serrista e o Rio o éden onde jorra o leite e o mel.
Fui acordado desse transe hipnótico durante um almoço, enquanto degustava o delicioso medalhão ao molho madeira do Universidade do Chopp, em Niterói. Na TV, Márcio Gomes (que é a antítese do carioca e a figura-síntese do jornalismo yuppie) e outra apresentadora, simpática como um sabonete mas cujo nome não guardei, apresentavam o RJ TV.
Primeiro veio uma reportagem, mais longa do que o habitual, sobre a greve dos professores estaduais. A manipulação é tão evidente que é preciso ser Eremildo, o Idiota, para não percebê-la: a locutora introduz, em palavras poucas e que nada de essencial explicam, a greve, enfatizando sua duração. Corte para o “sofrimento dos alunos”, que não têm aulas e, em seguida, para o Secretário Estadual de Educação, que, em seu gabinete e metido num terno cheio de firulas, fala por longos minutos, afirmando não estar aberto a negociações – um democrata inato, como se vê.
Ouvir o outro lado? A apresentadora-sabonete, com cara de quem lambeu sabão, limita-se a ler uma brevíssima declaração do representante do sindicato dos professores – uns 3 segundos, se tanto. Não é preciso ser especialista em Análise do Discurso para perceber a assimetria no tratamento dos dois pólos em disputa.
Até porque, hoje em dia, essa gramática televisiva parece estar evidente para muitos. Tão logo a matéria acabou, uma senhora vestida com simplicidade e sem apresentar nenhum cacoete acadêmico ou exibição de veleidades intelectuais, fez um discurso desvelando, para espanto dos comensais, tintin por tintin a situação dos professores que o “jornalismo” recém-praticado ocultara. (Era professora do depto. de Pedagogia da UFF, vim a saber depois).
Mas a matéria omitia informações ainda mais graves. Ocorrera violência e acusação de emprego exagerado da força pelos policiais encarregados de reprimir a passeata que os professores promoveram no centro do Rio no dia anterior – e que acabou com uma prisão e bombas lançadas contra os que protestavam. Essas informações o RJ TV sonegou a seus telespectadores (mas você pode lê-las aqui), assim como também não informou o dado essencial de que os professores estaduais do Rio estão há 13 anos sem aumento salarial.
Mas não para por aí. O almoço, saboroso ao paladar mas indigesto à mente, reservava ainda mais exemplos de bom jornalismo: uma longa reportagem mostrava o que o telejornal chamava de “os problemas” de Madureira - mais exatamente, de seu famoso mercadão popular, onde um repórter que faz a linha extrovertido/cara-de-pau, chato como um pernilongo, comanda o show de moralismo raso, digo, o jornalismo de utilidade pública da prestativa emissora.
Ele entrevista – melhor seria dizer inquere - uma senhora que tira seu ganha-pão das cadeiras e lixeiras de plástico que vende. Seu crime? Sua mercadoria não se limita ao espaço da barraca, ocupando meio palmo de calçada. O repórter insiste tanto com a coitada por conta dessa grave violação do espaço urbano – ameaçando, como a típica pequena autoridade, que logo passearia com o administrador regional pelo mercado - que, confesso, me causou vergonha alheia. Pensei no simpático povo de Madureira, berço do samba e das feijoadas da Portela, tendo que aturar aquele pentelho.
Como já posso ter escrito em algum lugar deste blog, acho o grande compositor e cantor Caetano Veloso uma zebra quando abre a boca para fazer outra coisa que não cantar. Mas reconheço que, ainda assim, ele tem seus momentos. Sobre jornalismo, ele cunhou uma frase definitiva: “devemos ler os jornais psicologicamente”. Note, caro(a) leitor(a), que ele não se referiu a terceiras intenções, subtextos ou interesses dissimulados – mas à necessidade de desvelamento dos mecanismos inconscientes de produção da notícia.
Trata-se de um referencial essencial para chegarmos à razão de ser de minha crítica às matérias do RJ TV aqui citadas: elas são a expressão de um mecanismo de compensação. Impedida, por razões óbvias – que vão de suas alianças político-econômicas à violência urbana que já vitimou até mesmo seus jornalistas no passado – de retratar os problemas reais do Rio de Janeiro, a Globo vinga-se de sua própria incompetência e de seu rabo preso elegendo bodes expiatórios, como professores - uma das categorias profissionais mais sistematicamente aviltadas neste país - e a pobre coitada que se utiliza de alguns centímetros de calçada para ganhar a vida. Eis a essência do neoudenismo: desierarquizar problemas, enfatizando os falsos para que encubram os verdadeiros, em relação aos quais se omite.
Ao final do almoço, enquanto saboreava o quindim que o simpático restaurante franqueia aos clientes, meditava: são duas faces de uma mesma moeda, o protofascismo paulista e o neoudenismo fluminense – ambos perpassados por uma mídia omissa e que os estimula. Até quando?
Explico: vou ao Rio quase todas as semanas, para jornadas intensas de trabalho, pesquisa e estudo, mas que trazem em seu bojo o contato com a atmosfera acadêmica mais relax dos fluminenses, além de, eventualmente, alguns finais de noite deliciosos.
Assim, e embora eu esteja ciente dos desmandos de Cabralzinho e Maia, criou-se, no meu íntimo, uma espécie de falsa dicotomia, em que São Paulo seria a terra do protofascismo serrista e o Rio o éden onde jorra o leite e o mel.
Fui acordado desse transe hipnótico durante um almoço, enquanto degustava o delicioso medalhão ao molho madeira do Universidade do Chopp, em Niterói. Na TV, Márcio Gomes (que é a antítese do carioca e a figura-síntese do jornalismo yuppie) e outra apresentadora, simpática como um sabonete mas cujo nome não guardei, apresentavam o RJ TV.
Primeiro veio uma reportagem, mais longa do que o habitual, sobre a greve dos professores estaduais. A manipulação é tão evidente que é preciso ser Eremildo, o Idiota, para não percebê-la: a locutora introduz, em palavras poucas e que nada de essencial explicam, a greve, enfatizando sua duração. Corte para o “sofrimento dos alunos”, que não têm aulas e, em seguida, para o Secretário Estadual de Educação, que, em seu gabinete e metido num terno cheio de firulas, fala por longos minutos, afirmando não estar aberto a negociações – um democrata inato, como se vê.
Ouvir o outro lado? A apresentadora-sabonete, com cara de quem lambeu sabão, limita-se a ler uma brevíssima declaração do representante do sindicato dos professores – uns 3 segundos, se tanto. Não é preciso ser especialista em Análise do Discurso para perceber a assimetria no tratamento dos dois pólos em disputa.
Até porque, hoje em dia, essa gramática televisiva parece estar evidente para muitos. Tão logo a matéria acabou, uma senhora vestida com simplicidade e sem apresentar nenhum cacoete acadêmico ou exibição de veleidades intelectuais, fez um discurso desvelando, para espanto dos comensais, tintin por tintin a situação dos professores que o “jornalismo” recém-praticado ocultara. (Era professora do depto. de Pedagogia da UFF, vim a saber depois).
Mas a matéria omitia informações ainda mais graves. Ocorrera violência e acusação de emprego exagerado da força pelos policiais encarregados de reprimir a passeata que os professores promoveram no centro do Rio no dia anterior – e que acabou com uma prisão e bombas lançadas contra os que protestavam. Essas informações o RJ TV sonegou a seus telespectadores (mas você pode lê-las aqui), assim como também não informou o dado essencial de que os professores estaduais do Rio estão há 13 anos sem aumento salarial.
Mas não para por aí. O almoço, saboroso ao paladar mas indigesto à mente, reservava ainda mais exemplos de bom jornalismo: uma longa reportagem mostrava o que o telejornal chamava de “os problemas” de Madureira - mais exatamente, de seu famoso mercadão popular, onde um repórter que faz a linha extrovertido/cara-de-pau, chato como um pernilongo, comanda o show de moralismo raso, digo, o jornalismo de utilidade pública da prestativa emissora.
Ele entrevista – melhor seria dizer inquere - uma senhora que tira seu ganha-pão das cadeiras e lixeiras de plástico que vende. Seu crime? Sua mercadoria não se limita ao espaço da barraca, ocupando meio palmo de calçada. O repórter insiste tanto com a coitada por conta dessa grave violação do espaço urbano – ameaçando, como a típica pequena autoridade, que logo passearia com o administrador regional pelo mercado - que, confesso, me causou vergonha alheia. Pensei no simpático povo de Madureira, berço do samba e das feijoadas da Portela, tendo que aturar aquele pentelho.
Como já posso ter escrito em algum lugar deste blog, acho o grande compositor e cantor Caetano Veloso uma zebra quando abre a boca para fazer outra coisa que não cantar. Mas reconheço que, ainda assim, ele tem seus momentos. Sobre jornalismo, ele cunhou uma frase definitiva: “devemos ler os jornais psicologicamente”. Note, caro(a) leitor(a), que ele não se referiu a terceiras intenções, subtextos ou interesses dissimulados – mas à necessidade de desvelamento dos mecanismos inconscientes de produção da notícia.
Trata-se de um referencial essencial para chegarmos à razão de ser de minha crítica às matérias do RJ TV aqui citadas: elas são a expressão de um mecanismo de compensação. Impedida, por razões óbvias – que vão de suas alianças político-econômicas à violência urbana que já vitimou até mesmo seus jornalistas no passado – de retratar os problemas reais do Rio de Janeiro, a Globo vinga-se de sua própria incompetência e de seu rabo preso elegendo bodes expiatórios, como professores - uma das categorias profissionais mais sistematicamente aviltadas neste país - e a pobre coitada que se utiliza de alguns centímetros de calçada para ganhar a vida. Eis a essência do neoudenismo: desierarquizar problemas, enfatizando os falsos para que encubram os verdadeiros, em relação aos quais se omite.
Ao final do almoço, enquanto saboreava o quindim que o simpático restaurante franqueia aos clientes, meditava: são duas faces de uma mesma moeda, o protofascismo paulista e o neoudenismo fluminense – ambos perpassados por uma mídia omissa e que os estimula. Até quando?
(Imagem retirada daqui e manipulada digitalmente)
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Obra-prima deliciosa: "Up - Altas Aventuras"
Designação que só deve ser aplicada em casos muito raros, a qualificação de Up como obra-prima no título do post não é vã: um dos melhores filmes norte-americanos dos últimos tempos é um desenho animado que conta a história improvável de um velho de 78 anos, derrotado e à espera da morte chegar após perder a esposa, e de um garoto pentelho, gorducho e que fala como uma matraca, cujo sonho de escoteiro é ser nomeado "grande explorador".
Porém, como veremos a seguir, dessa premissa minúscula resulta um grande filme, que traz não apenas um contundente subtexto político-social mas um roteiro que dosa com primor desenvolvimento narrativo, significação e emoção em doses superlativas [o post contém spoilers; se não quer saber o que acontece no filme, não o leia].
Cinema e imaginário social
As relações entre imaginário cinematográfico e sociedade nos EUA são mais complexas e profundas do que à primeira vista sugerem. No turbilhão de emoções que a excelente animação Up – Altas Aventuras oferece, talvez tenha passado despercebido à grande parte dos espectadores as implicações sociais últimas de um dos clímaxes dramáticos do filme: quando, perto do final, o protagonista – o velho rabugento Carl Fredricksen - perde de vez sua casa e é consolado pelo garotinho Russell mais ou menos no seguintes termos: “sua casa se foi, mas sua vida continua”. Num momento em que milhares de americanos perdem seus lares graças à crise deflagrada pelo rombo das hipotecas, o cinema cumpre seu papel de trazer ilusão e esperança.
É a história se repetindo como farsa: o filme produzido pela Disney e dirigido por Pete Docter (o mesmo de Monstros S.A.) traz ecos não apenas dos filmes “colonialistas” de aventura dos anos 30 – cujo personagem-símbolo é Tarzan – mas, notadamente, paga um tributo às comédias de Frank Capra, com seu elogio ao “homem comum” e sua mensagem otimista que encantou milhões de norte-americanos em meio à Depressão dos anos 30. Não que haja semelhanças à primeira vista aparentes entre Fredricksen e os inesquecíveis personagens vividos por James Stewart: na verdade, o passar dos anos e a dor pela perda da mulher criaram uma couraça no protagonista de Up, ocultando o personagem capriano, que só virá à tona como tal ao final do filme.
À outra importante referência do passado são dadas conotações políticas: piloto aventureiro e ídolo de infância de Fredricksen, o personagem Charles F. Muntz é claramente inspirado em Charles Augustus Lindbergh, primeiro homem a cruzar o Atlântico em vôo solitário, em 1927 e, como tal, herói popular nos EUA. As semelhanças não se limitam ao nome: o avião de Lindbergh chamava-se “The Spirit of St Louis” e, como o bigodinho e as maneiras de Muntz sugerem, o primeiro foi acusado de apoiar o nazismo. Assim, a transformação de Muntz em vilão na segunda parte do filme parece embutir uma dupla mensagem política: a recusa a ideologias totalitárias e a heróis individualistas e aristocratas. O subtexto anti-elite e pró-"homem comum" se evidencia, ainda, tanto no conflito entre Fredrickson e Muntz quanto no embate entre o cão Dug e o arrogante líder dos cachorros que falam.
Uma das razões para que a maior parte de tais significações histórico-sociais da trama tendam a passar desapercebidas pela maior parte das platéias é a grande capacidade de envolvimento emocional do filme, que oferece doses embriagantes de aventura, comédia, suspense e drama, capazes de agradar uma ampla gama de espectadores – de garotinhos que mal sabem ler a idosos que mal podem andar – como o inusitado par central retratado na tela -, passando por jovens de todas as idades.
Gargalhadas e lágrimas
Perdão pelo clichê, mas, nesse caso mais do que em qualquer outro, ele se justifica: a história do ranzinza Fredricksen, que após perder a mulher - e com ela as esperanças de realizar os sonhos de aventura que sempre alimentaram juntos -, vê sua rotina de velho à espera da morte alterada pela ambição imobiliária ao redor e pela chegada do tal pirralho hiperativo - lançando-se, em desespero, a uma viagem que o trará novos dilemas e desafios inesperados -, é um pungente chamado à juventude, a erguer-se após os nocautes da vida, a buscar o último sopro de vida mesmo que esta, após quase oitenta anos, esteja para se extinguir. Ou seja, desafios que, mais cedo ou mais tarde, uma ou múltiplas vezes, todos nós tendemos a confrontar. Eis a grandeza do filme: travestido de divertimento infantil, ele é uma pungente reflexão sobre a vida, que não negligencia a tragédia, mas preserva o humor.
Se a grande tradição da comédia americana passa, há décadas, por uma grave crise cujos acertos eventuais – Uma Linda Mulher, Legalmente Loira – soam como exceções que confirmam a regra, a animação tem dado provas – com títulos como Wall-E, A Era do Gelo e A Noiva Cadáver – de ter herdado tanto o espírito ousado que caracterizou o auge da referida tradição quanto a capacidade de entreter e de divertir que é sua razão de existir – com a vantagem, no caso dos desenhos, de promover num mesmo filme, com ganho, um mix com outros gêneros cinematográficos.
Não que, do ponto de vista puramente técnico, Up (que pode ser visto em 3-D em alguns cinemas) alcance a excelência state of the art da modalidade animação: algumas cenas com os personagens no exterior de naves em movimento apresentam problemas de angulação e de continuidade – nada que comprometa a fruição do espetáculo, mas produzem alguma estranheza. Isso poderia ser posto na conta do delírio criativo predomiannte, não fosse o fato de a trama, embora totalmente inverossímil e fantasiosa, jamais deixar de se situar nos limites do realismo formal.
Cico Anysio brilha como Fredricksen
Sempre prefiro assistir a versões legendadas dos filmes. No caso de Up, porém, recomendaria enfaticamente a versão dublada, na qual Chico Anysio tem uma excepcional performance como Fredricksen. Ele não apenas utiliza de forma precisa a voz - amoldada à perfeição ao personagem - para sugerir uma gama de emoções que vão da rabugice à terna emoção, passando pela urgência e pela tristeza reprimida, mas faz uso de recursos extra-vocálicos como sons guturais, de respiração, de suspiros e gemidos para compor um retrato vívido do velho rabugento. Na adolescência, eu tive um grande amigo, chamado Pê e com o qual infelizmente perdi contato, que costumava dizer que mesmo que a Macondo de García Márquez não existisse tal e qual no romance, ela existia em alguma dimensão, como projeção mental/espiritual de todos as pessoas que leram Cem Anos de Solidão. O Fredricksen de Chico Anysio soa como se tivesse a mesma qualidade: aparentemente uma criatura de desenho animado, ele é tão crível que parece exister, não necessariamente com as mesmas feições físicas, em alguma dimensão, tamanha a dose de humanidade que lhe empresta seu magnífico dublador.
Embora se trata essencialmente de um divertimento familiar, Up tem o mérito de jamais infantilizar o público, ao contrário do que é usual em Hollywood. Trata de temas difíceis, como a morte, a velhice, a perda da inocência, mas o faz com humor e sensibilidade, sem cair na pieguice. É um filme que faz rir, vibrar, chorar. Um dos maiores acertos do cinema norteamericano nos últimos tempos.
Porém, como veremos a seguir, dessa premissa minúscula resulta um grande filme, que traz não apenas um contundente subtexto político-social mas um roteiro que dosa com primor desenvolvimento narrativo, significação e emoção em doses superlativas [o post contém spoilers; se não quer saber o que acontece no filme, não o leia].
Cinema e imaginário social
As relações entre imaginário cinematográfico e sociedade nos EUA são mais complexas e profundas do que à primeira vista sugerem. No turbilhão de emoções que a excelente animação Up – Altas Aventuras oferece, talvez tenha passado despercebido à grande parte dos espectadores as implicações sociais últimas de um dos clímaxes dramáticos do filme: quando, perto do final, o protagonista – o velho rabugento Carl Fredricksen - perde de vez sua casa e é consolado pelo garotinho Russell mais ou menos no seguintes termos: “sua casa se foi, mas sua vida continua”. Num momento em que milhares de americanos perdem seus lares graças à crise deflagrada pelo rombo das hipotecas, o cinema cumpre seu papel de trazer ilusão e esperança.
É a história se repetindo como farsa: o filme produzido pela Disney e dirigido por Pete Docter (o mesmo de Monstros S.A.) traz ecos não apenas dos filmes “colonialistas” de aventura dos anos 30 – cujo personagem-símbolo é Tarzan – mas, notadamente, paga um tributo às comédias de Frank Capra, com seu elogio ao “homem comum” e sua mensagem otimista que encantou milhões de norte-americanos em meio à Depressão dos anos 30. Não que haja semelhanças à primeira vista aparentes entre Fredricksen e os inesquecíveis personagens vividos por James Stewart: na verdade, o passar dos anos e a dor pela perda da mulher criaram uma couraça no protagonista de Up, ocultando o personagem capriano, que só virá à tona como tal ao final do filme.
À outra importante referência do passado são dadas conotações políticas: piloto aventureiro e ídolo de infância de Fredricksen, o personagem Charles F. Muntz é claramente inspirado em Charles Augustus Lindbergh, primeiro homem a cruzar o Atlântico em vôo solitário, em 1927 e, como tal, herói popular nos EUA. As semelhanças não se limitam ao nome: o avião de Lindbergh chamava-se “The Spirit of St Louis” e, como o bigodinho e as maneiras de Muntz sugerem, o primeiro foi acusado de apoiar o nazismo. Assim, a transformação de Muntz em vilão na segunda parte do filme parece embutir uma dupla mensagem política: a recusa a ideologias totalitárias e a heróis individualistas e aristocratas. O subtexto anti-elite e pró-"homem comum" se evidencia, ainda, tanto no conflito entre Fredrickson e Muntz quanto no embate entre o cão Dug e o arrogante líder dos cachorros que falam.
Uma das razões para que a maior parte de tais significações histórico-sociais da trama tendam a passar desapercebidas pela maior parte das platéias é a grande capacidade de envolvimento emocional do filme, que oferece doses embriagantes de aventura, comédia, suspense e drama, capazes de agradar uma ampla gama de espectadores – de garotinhos que mal sabem ler a idosos que mal podem andar – como o inusitado par central retratado na tela -, passando por jovens de todas as idades.
Gargalhadas e lágrimas
Perdão pelo clichê, mas, nesse caso mais do que em qualquer outro, ele se justifica: a história do ranzinza Fredricksen, que após perder a mulher - e com ela as esperanças de realizar os sonhos de aventura que sempre alimentaram juntos -, vê sua rotina de velho à espera da morte alterada pela ambição imobiliária ao redor e pela chegada do tal pirralho hiperativo - lançando-se, em desespero, a uma viagem que o trará novos dilemas e desafios inesperados -, é um pungente chamado à juventude, a erguer-se após os nocautes da vida, a buscar o último sopro de vida mesmo que esta, após quase oitenta anos, esteja para se extinguir. Ou seja, desafios que, mais cedo ou mais tarde, uma ou múltiplas vezes, todos nós tendemos a confrontar. Eis a grandeza do filme: travestido de divertimento infantil, ele é uma pungente reflexão sobre a vida, que não negligencia a tragédia, mas preserva o humor.
Se a grande tradição da comédia americana passa, há décadas, por uma grave crise cujos acertos eventuais – Uma Linda Mulher, Legalmente Loira – soam como exceções que confirmam a regra, a animação tem dado provas – com títulos como Wall-E, A Era do Gelo e A Noiva Cadáver – de ter herdado tanto o espírito ousado que caracterizou o auge da referida tradição quanto a capacidade de entreter e de divertir que é sua razão de existir – com a vantagem, no caso dos desenhos, de promover num mesmo filme, com ganho, um mix com outros gêneros cinematográficos.
Não que, do ponto de vista puramente técnico, Up (que pode ser visto em 3-D em alguns cinemas) alcance a excelência state of the art da modalidade animação: algumas cenas com os personagens no exterior de naves em movimento apresentam problemas de angulação e de continuidade – nada que comprometa a fruição do espetáculo, mas produzem alguma estranheza. Isso poderia ser posto na conta do delírio criativo predomiannte, não fosse o fato de a trama, embora totalmente inverossímil e fantasiosa, jamais deixar de se situar nos limites do realismo formal.
Cico Anysio brilha como Fredricksen
Sempre prefiro assistir a versões legendadas dos filmes. No caso de Up, porém, recomendaria enfaticamente a versão dublada, na qual Chico Anysio tem uma excepcional performance como Fredricksen. Ele não apenas utiliza de forma precisa a voz - amoldada à perfeição ao personagem - para sugerir uma gama de emoções que vão da rabugice à terna emoção, passando pela urgência e pela tristeza reprimida, mas faz uso de recursos extra-vocálicos como sons guturais, de respiração, de suspiros e gemidos para compor um retrato vívido do velho rabugento. Na adolescência, eu tive um grande amigo, chamado Pê e com o qual infelizmente perdi contato, que costumava dizer que mesmo que a Macondo de García Márquez não existisse tal e qual no romance, ela existia em alguma dimensão, como projeção mental/espiritual de todos as pessoas que leram Cem Anos de Solidão. O Fredricksen de Chico Anysio soa como se tivesse a mesma qualidade: aparentemente uma criatura de desenho animado, ele é tão crível que parece exister, não necessariamente com as mesmas feições físicas, em alguma dimensão, tamanha a dose de humanidade que lhe empresta seu magnífico dublador.
Embora se trata essencialmente de um divertimento familiar, Up tem o mérito de jamais infantilizar o público, ao contrário do que é usual em Hollywood. Trata de temas difíceis, como a morte, a velhice, a perda da inocência, mas o faz com humor e sensibilidade, sem cair na pieguice. É um filme que faz rir, vibrar, chorar. Um dos maiores acertos do cinema norteamericano nos últimos tempos.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Repensando a universidade brasileira - 1a Parte
O blog inicia hoje uma série de 4 posts sobre a universidade brasileira, buscando discutir seus problemas e, à medida do possível, especular soluções. Eles não serão publicados em sequência, mas semanalmente, e priorizam o enfoque no setor público do ensino superior, com eventuais incursões por seu correspondente privado - que, inchado à elefantíase, passa por sua maior crise.
São muitos os problemas da universidade brasileira (leia aqui post de Hugo Albuquerque sobre a questão). Na minha visão pessoal, acima de todos está a questão da corrupção nos concursos públicos para professores e para ingresso nas pós-graduações – e por esta razão o tema inaugura a série.
Corrupção? Sim, corrupção, pois trata-se, com uma frequência inacreditável, de certames vergonhosos, em que conluios, laços de panelagem e troca de favores ditam a escolha dos escolhidos, em detrimento da meritocracia e em prejuízo do interesse dos alunos, demonstrando, ainda, total desrespeito para com candidatos – muitas vezes desempregados - que, crendo se tratar de disputas honestas, gastam o que não podem e viajam às vezes milhares de quilômetros para delas tomar parte.
Que membros da suposta elite intelectual do país se prestem a tal pantomina é algo a se lamentar profundamente, que depõe contra a própria dimensão ética de sua capacidade como educador, mas não necessariamente motivo de espanto. No início de minha carreira jornalística, participando, com um grupo de repórteres, de uma entrevista com o advogado e já então ex-Secretário da Segurança do Rio de Janeiro Nilo Batista para a revista Caros Amigos, indaguei-lhe acerca de sua opinião a respeito das denúncias de prática de tortura pela polícia. Ele deu uma resposta qualquer que me pareceu evasiva e eu, na petulância típica da juventude, retruquei, de forma um tanto insolente (pois todos demonstravam um excessivo respeito pelo entrevistado e isso estava me incomodando) se ele não estaria sendo conivente com os abusos policiais. Sua resposta, que nunca mais esqueci, me forneceu uma das chaves para se pensar a realidade brasileira desde então (cito de cabeça):
- "Meu caro, no Brasil os políticos são corruptos, os empresários são corruptos, a mídia é corrupta... Por que razão você acha que a polícia deixaria de sê-lo?" – e daí em diante discorreu, como seria de se esperar, sobre a necessidade de mudar esse estado de coisas.
Mas o que me interessa reter, por ora, é o grau de capilaridade da corrupção no Brasil implicado na resposta, e desfazer a renitente ilusão de que os sabios e sensatos homens de letras que respondem por nosso ensino superior estariam a salvo dessa praga. (Alguns, poucos, estão. Não basta.)
O próprio minueto acadêmico o qual os professores universitários estão acostumados a dançar – com “caro colega” pra cá e “prezada professora” pra lá, com a luta por verbas no melhor estilo saco de gatos, e com o desprezo pelo ensino na graduação e atenção concentrada na pós (como um deputado que ignora seus eleitores mas bajula seus financiadores) – emula os usos e costumes da classe política brasileira que tanto nos envergonha, tratando-se por Vossa Senhoria até quando xingam a mãe do interlocutor.
O caso dos concursos para professor é especialmente problemático porque, mesmo quando alguns dos candidatos preteridos tomam ciência de que se trata efetivamente de um logro eles receiam denunciá-lo, por dois motivos principais: o primeiro é o medo de retaliação e de “queimarem o filme” junto à instituição e aos membros da banca.
O segundo é a dificuldade extrema para se obter provas da falcatrua. Embora “transparência” seja a palavra mais repetida por nove entre dez bancas, não passa, no mais das vezes, de truque de retórica – já que, na grande maioria dos casos, só com mandato judicial é possível pôr vistas nas planilhas todas com as notas (e em documentos que explicitem os critérios de avaliação para todas as etapas do certame – mesmo porque estes raramente existem). Pior: simplesmente não há como questionar as notas dadas às aulas didáticas – que geralmente são o item cujas notas têm maior “peso” na avaliação -, já que não há a obrigatoriedade de que elas sejam gravadas, o que corresponde a um verdadeiro convite à corrupção, incluindo o mapa com as indicações de por onde praticá-la.
Assim, não é incomum que candidatos com notas médias durante todo o concurso recebam a avaliação máxima (ou quase isso) na prova de aula didática, enquanto aqueles que tiraram notas acima de 9 nas provas escritas e na análise de currículo, recebem algo entre 5 ou 6 – uma mudança que seria aceitável se acontecesse muito de vez em quando (denotando, imaginemos, nervosismo do candidato), mas não quando se torna quase um padrão dos concursos sob suspeitas.
Há casos em profusão ilustrando a dimensão do problema. A universidade no interior do Rio Grande do Sul em que o doutor com especialidade na sub-área do concurso foi preterido por um recém-graduado que nem à área pertencia (sendo que o edital – que é tratado como papel pintado e não como documento oficial por várias universidades - exigia mestrado na área); a faculdade no interior da Bahia que foi utilizada como trampolim por um grupo ligado a uma universidade maior, para a qual todos os aprovados no concurso se transferiram menos de um semestre depois; as denúncias em sequência que, quando envolvem candidatos bem-nascidos, têm chegado aos telejornais locais fora do eixo Rio-SP; e uma incalculável mas certamente volumosa quantidade de candidatos – a maioria nas pós-graduações ou no desemprego - que sabem ter sido lesadas mas que não tiveram coragem ou meios de contestar o certame na Justiça.
Isso nos leva a outro problema: o desinteresse da maior parte do corpo docente pela resolução urgente do problema da corrupção nos concursos, não apenas porque se submeter a tal processo fez parte da ascensão profissional do próprio professor e, assim, ele tende a “naturalizar” sua adoção, mas porque confrontar tal sistema significaria entrar em conflito com o establishment acadêmico e com os demais colegas, cujas fichas já estão jogadas para os próximos concursos.
Outro dado complicador é que os alunos são, de ordinário, mantidos mais ou menos apartados do processo e os pós-graduandos – talvez os mais capacitados para funcionar como contrapeso moralizante –, cientes do funcionamento de tais esquemas, estão por demais submetidos ao jugo dos donos dos feudos acadêmicos, e temem, justificadamente, por seu futuro na universidade.
Propostas
São muitos os problemas da universidade brasileira (leia aqui post de Hugo Albuquerque sobre a questão). Na minha visão pessoal, acima de todos está a questão da corrupção nos concursos públicos para professores e para ingresso nas pós-graduações – e por esta razão o tema inaugura a série.
Corrupção? Sim, corrupção, pois trata-se, com uma frequência inacreditável, de certames vergonhosos, em que conluios, laços de panelagem e troca de favores ditam a escolha dos escolhidos, em detrimento da meritocracia e em prejuízo do interesse dos alunos, demonstrando, ainda, total desrespeito para com candidatos – muitas vezes desempregados - que, crendo se tratar de disputas honestas, gastam o que não podem e viajam às vezes milhares de quilômetros para delas tomar parte.
Que membros da suposta elite intelectual do país se prestem a tal pantomina é algo a se lamentar profundamente, que depõe contra a própria dimensão ética de sua capacidade como educador, mas não necessariamente motivo de espanto. No início de minha carreira jornalística, participando, com um grupo de repórteres, de uma entrevista com o advogado e já então ex-Secretário da Segurança do Rio de Janeiro Nilo Batista para a revista Caros Amigos, indaguei-lhe acerca de sua opinião a respeito das denúncias de prática de tortura pela polícia. Ele deu uma resposta qualquer que me pareceu evasiva e eu, na petulância típica da juventude, retruquei, de forma um tanto insolente (pois todos demonstravam um excessivo respeito pelo entrevistado e isso estava me incomodando) se ele não estaria sendo conivente com os abusos policiais. Sua resposta, que nunca mais esqueci, me forneceu uma das chaves para se pensar a realidade brasileira desde então (cito de cabeça):
- "Meu caro, no Brasil os políticos são corruptos, os empresários são corruptos, a mídia é corrupta... Por que razão você acha que a polícia deixaria de sê-lo?" – e daí em diante discorreu, como seria de se esperar, sobre a necessidade de mudar esse estado de coisas.
Mas o que me interessa reter, por ora, é o grau de capilaridade da corrupção no Brasil implicado na resposta, e desfazer a renitente ilusão de que os sabios e sensatos homens de letras que respondem por nosso ensino superior estariam a salvo dessa praga. (Alguns, poucos, estão. Não basta.)
O próprio minueto acadêmico o qual os professores universitários estão acostumados a dançar – com “caro colega” pra cá e “prezada professora” pra lá, com a luta por verbas no melhor estilo saco de gatos, e com o desprezo pelo ensino na graduação e atenção concentrada na pós (como um deputado que ignora seus eleitores mas bajula seus financiadores) – emula os usos e costumes da classe política brasileira que tanto nos envergonha, tratando-se por Vossa Senhoria até quando xingam a mãe do interlocutor.
O caso dos concursos para professor é especialmente problemático porque, mesmo quando alguns dos candidatos preteridos tomam ciência de que se trata efetivamente de um logro eles receiam denunciá-lo, por dois motivos principais: o primeiro é o medo de retaliação e de “queimarem o filme” junto à instituição e aos membros da banca.
O segundo é a dificuldade extrema para se obter provas da falcatrua. Embora “transparência” seja a palavra mais repetida por nove entre dez bancas, não passa, no mais das vezes, de truque de retórica – já que, na grande maioria dos casos, só com mandato judicial é possível pôr vistas nas planilhas todas com as notas (e em documentos que explicitem os critérios de avaliação para todas as etapas do certame – mesmo porque estes raramente existem). Pior: simplesmente não há como questionar as notas dadas às aulas didáticas – que geralmente são o item cujas notas têm maior “peso” na avaliação -, já que não há a obrigatoriedade de que elas sejam gravadas, o que corresponde a um verdadeiro convite à corrupção, incluindo o mapa com as indicações de por onde praticá-la.
Assim, não é incomum que candidatos com notas médias durante todo o concurso recebam a avaliação máxima (ou quase isso) na prova de aula didática, enquanto aqueles que tiraram notas acima de 9 nas provas escritas e na análise de currículo, recebem algo entre 5 ou 6 – uma mudança que seria aceitável se acontecesse muito de vez em quando (denotando, imaginemos, nervosismo do candidato), mas não quando se torna quase um padrão dos concursos sob suspeitas.
Há casos em profusão ilustrando a dimensão do problema. A universidade no interior do Rio Grande do Sul em que o doutor com especialidade na sub-área do concurso foi preterido por um recém-graduado que nem à área pertencia (sendo que o edital – que é tratado como papel pintado e não como documento oficial por várias universidades - exigia mestrado na área); a faculdade no interior da Bahia que foi utilizada como trampolim por um grupo ligado a uma universidade maior, para a qual todos os aprovados no concurso se transferiram menos de um semestre depois; as denúncias em sequência que, quando envolvem candidatos bem-nascidos, têm chegado aos telejornais locais fora do eixo Rio-SP; e uma incalculável mas certamente volumosa quantidade de candidatos – a maioria nas pós-graduações ou no desemprego - que sabem ter sido lesadas mas que não tiveram coragem ou meios de contestar o certame na Justiça.
Isso nos leva a outro problema: o desinteresse da maior parte do corpo docente pela resolução urgente do problema da corrupção nos concursos, não apenas porque se submeter a tal processo fez parte da ascensão profissional do próprio professor e, assim, ele tende a “naturalizar” sua adoção, mas porque confrontar tal sistema significaria entrar em conflito com o establishment acadêmico e com os demais colegas, cujas fichas já estão jogadas para os próximos concursos.
Outro dado complicador é que os alunos são, de ordinário, mantidos mais ou menos apartados do processo e os pós-graduandos – talvez os mais capacitados para funcionar como contrapeso moralizante –, cientes do funcionamento de tais esquemas, estão por demais submetidos ao jugo dos donos dos feudos acadêmicos, e temem, justificadamente, por seu futuro na universidade.
O que fazer ante tal situação? Vou elencar 4 sugestões, da mais comezinha e inexplicavelmente ainda não adotada às de mais difícil implementação. Ficaria contente se os leitores utilizassem a caixa de comentários para sugerir outras:
- Criação de uma espécie de Corregedoria do MEC dedicada exclusivamente a supervisionar concursos, desde sua elaboração, passando por sua aplicação e pela investigação de denúncias acerca dos resultados, com garantia de sigilo para o denunciante;
- Obrigatoriedade de que as provas de aula didática de todos os candidatos sejam gravadas em vídeo, com captação de som;
- Divulgação pública de todos os documentos relativos aos concursos;
- Criação, a médio prazo, de uma nova sistemática de concursos, federalizada, em que a classificação nacional dos candidatos por área e sub-área determinasse a ordem de escolha: a universidade em que querem lecionar seria escolhida obedececendo à classificação.
Estou plenamente ciente de que esta última proposta fere a autonomia de cada universidade. Mas, em nome do fim da vergonhosa corrupção nos concursos públicos, considero que está mais do que na hora de questionar esse privilégio imerecido e mal utilizado, que funciona como cobertura para procedimentos eticamente inaceitáveis.
(Imagem retirada daqui)
domingo, 6 de setembro de 2009
Humor e racismo
Este post trata de um tema delicado e que mobiliza, com o perdão do oxímoro, ódios apaixonados. Ele examina, de forma pontual, a relação entre humor e racismo nos dias atuais, buscando a máxima independência analítica possivel e, portanto, evitando certos discursos em voga, que são muito bonitos no papel mas cuja efetividade em termos de práticas sociais ainda precisa ser comprovada.
Em outras palavras: a análise pretende se ater aos fatos e não a um wishful thinking politicamente correto cujas intenções últimas eu compartilho, embora, por razões que deixarei claro ao longo do texto, tenha sérias dúvidas quanto a algumas de suas premissas – e, mais ainda, em relação a seus resultados objetivos. Por se tratar de um tema delicado e inflamável, peço aos leitores e leitoras que tiverem a paciência de me acompanhar ao longo do texto que se certifiquem de que sou mesmo merecedor das pedras, antes de atirá-las.
A internet e o humor
O ponto de partida para a análise é o crescente mal-estar que piadas de cunho racistas têm despertado nos setores mais esclarecidos da sociedade, do qual a reação à pretensa piada de Danilo Gentili (que, há cerca de um mês, “tuitou” a seguinte mensagem: “Agora, no Telecine, o filme 'King Kong', um macaco que, depois de ir para a cidade, pega uma loira. Quem ele pensa que é? Jogador de futebol?”) do CQC, foi exemplar.
Utilizando-se das novas ferramentas de comunicação na internet, esses setores resolveram dar uma espécie de “basta” ao humor que se utiliza de forma derrisória de estereótipos racistas, sexistas e expressivos de preconceitos de forma geral.
A partir sobretudo dessa reação, uma espécie de lema passou a ser insistentemente repetido através da internet, como o demonstra, por exemplo, um tweet colhido ao léo, enviado no último sábado por @flabrito: “Não, piadas racistas, xenófobas, sobre terrorismo, assassinatos e maus-tratos de animais não são engraçadas”.
De lemas e de fatos
Trata-se de uma afirmação cujas premissas são genuina e verdadeiramente compartilhadas por muitas pessoas e, como tal, espelha um posicionamento ideológico de determinados setores da sociedade – posicionamento este que se alia, por um lado, ao desenvolvimento do que Norberto Bobbio vê como uma etapa avançada na batalha pelos direitos humanos e, por outro lado, a uma visão que identifica um processo de retroalimentação do racismo através do humor preconceituoso.
Suas genuinidade e implicações polítcas não fazem, contudo, que a afirmação seja um dado histórico incontestável. Na verdade, pelo contrário: uma análise fria e desapaixonada dos fatos tenderia a constatar que a existência – e a persistência ao longo do tempo - de tantas piadas racistas e xenófobas denota que, para muitos e há tempos, elas são – e, pior, continuam sendo - engraçadas. Afinal, se não houvesse quem delas risse, haveria poucas piadas a respeito de tais temas e elas tenderiam a diminuir ao longo do tempo. Infelizmente, não é isso que ocorre – e a mesma internet que dá voz a essas parcelas da sociedade que querem estancar as vertentes racistas e preconceituosas do humor tornou-se, por outro lado, o principal repósitório e incubadora das piadas que têm raça, gênero e preconceitos como tema (e, veja bem, não estamos falando de nichos minoritários, mas de sites de humor com altíssima audiência e que estão, há muito, no top 10 da internet brasileira).
Ignorar esse fato e seguir repetindo um mantra que pode ser belo, coberto das melhores intenções e totalmente “do bem”, mas que não corresponde à prática social efetiva - como o presente estatuto do politicamente correto tem feito -, é incorrer em um grave erro tácito de ação política: ignorar os fatos. E a história desconhece exemplos de ações políticas bem-sucedidas baseadas em diagnósticos falsos.
Repete-se, assim, no Brasil contemporâneo, um dos graves problemas com o construcionismo social made in USA, cujos preceitos estão por trás dessa forma de militância politicamente correta ora em voga (com 3 décadas de atraso, como de praxe nas relações entre metrópole e colônia): apostar tão-somente em marcos regulatórios socialmente impostos , de cima para abaixo, ignorando tanto pressupostos psicanalíticos específicos, strictu sensu – como o estudo desenvolvido por Freud em Jokes and Their Relation to the Unconscious e seus desdobramentos na psicologia coletiva moderna - quanto as implicações genéricas, metafóricas de mecanismos reativos à repressão, notadamente o conceito de “retorno do oprimido”.
Os EUA e a mídia
A cultura popular industrial afigura-se terreno fértil para a análise das consequências de tal miopia. Tomemos, pois, como exemplo, a produção contemporânea de filmes e séries norte-americanas. Com maior vigor a partir de fins dos anos 80, movimentos organizados de defesa dos gays e dos negros passaram a fazer ingerências junto aos grandes estúdios de Hollywood visando coibir representações depreciativas e obter maior e mais qualificada presença de seus representados nos filmes. O resultado foi, inicialmente e por um bom período, positivo, talvez menos em relação a questões de gênero do que raciais, mas neste âmbito proporcionou resultados palpáveis, com a ascenção profissional e econômica de gerações de astros negros e, pela primeira vez, sua presença frequente e distinção eventual nas principais premiações do cinema e da TV (sendo que Denzel Washington, Halle Berry, Cuba Gooding Jr. e Jamie Foxx estão entre os multipremiados).
Porém o que acontece hoje em dia? O politicamente correto tornou-se, ele mesmo, mais do que um tema de humor, o fio que perpassa toda uma linhagem de comédia, que tem em Sacha Baron Cohen um de seus ícones maiores, mas de forma alguma o único. Mesmo nas comédias mais pedestres – como em Se Beber Não Case (The Hangover, Todd Philips, EUA, 2009) , em cartaz no Brasil - estabeleceu-se um procedimento-padrão para driblar as restrições impostas pelo establishment do politicamente correto e reforçar preconceitos: elas são explicitamente enunciadas pela trama, artifício que funciona a um tempo como um sinal de que serão desrespeitadas e um salvo-conduto para transcendê-las sem constrangimentos.
É esse mesmo mecanismo que sustenta uma das vertentes do humor de House, a série com o médico tão brilhante quanto rabugento que é um fenômeno mundial de audiência. O politicamente correto é não apenas desprezado, mas sua própria superação cumpre um duplo papel: é em si um tema de piada e uma desculpa para tornar as piadas de cunho racista (ou preconceituosas) ainda mais livres de qualquer contingência imposta pela moral vigente (como se observa inúmeras vezes não só em relação a Foreman, o médico vivido por Omar Epps, mas particularmente - e com uma virulência poucas vezes vista na TV - contra o personagem de Cole “Big Love”, o mórmon candidato a médico na quarta das até agora seis temporadas da série).
Ou seja, o politicamente correto tem se tornado, paradoxalmente e cada vez mais, um elemento de intensificação do racismo na produção audiovisual. Trata-se, metaforicamente, do retorno do oprimido de que nos fala Freud, puro, escarrado e, como pelo fundador da psicanálise previsto, mais forte e insidioso.
Sem saídas fáceis
Como sair desse impasse? Deve-se deixar que o humor baseado em preconceitos e discriminação circule livremente? Decerto que não. A militância anti-racismo na internet pode funcionar efetivamente como uma estratégia de convencimento a médio prazo? Talvez. O contra-ataque na forma de piadas que têm como alvo estereótipos ligados aos poderes dominantes é válido como estratégia? Na minha opinião pessoal, sim. Poucas assuntos são mais potencialmente engraçados do que figuras do autoritarismo patriarcal e conservador (pense em José Serra).
Porém não tenho a pretensão de ter a resposta para tão complexa questão. Não posso deixar de registrar, no entanto, que , como já colocado anteriormente, ignorar fatos quando se trata de se desenhar uma estratégia para um objetivo político é burrice – e eventualmente uma burrice contra-producente, como o presente status da representação social na produção audiovisual norte-americana o demonstra.
É o que ocorre no Brasil atual, em relação a essa relação entre humor e preconceitos: fica-se um grupo de pessoas bem-intencionadas de um lado, afirmando que piadas racistas e/ou homofóbicas não têm graça; e, do outro lado, outro grupo, ao que tudo indica numericamente maior, consumindo diariamente piadas do tipo produzidas pelos principais sites de humor. Mesmo correndo o risco de sofrer o destino do mensageiro do rei que é imolado por trazer más notícias, tal estado de coisas me leva a constatar que a atual estratégia de combate ao humor politicamente incorreto não está funcionando.
Que há formas mais inteligentes de se criticar o racismo - e com humor - o clip abaixo reproduzido não deixa dúvidas.
Em outras palavras: a análise pretende se ater aos fatos e não a um wishful thinking politicamente correto cujas intenções últimas eu compartilho, embora, por razões que deixarei claro ao longo do texto, tenha sérias dúvidas quanto a algumas de suas premissas – e, mais ainda, em relação a seus resultados objetivos. Por se tratar de um tema delicado e inflamável, peço aos leitores e leitoras que tiverem a paciência de me acompanhar ao longo do texto que se certifiquem de que sou mesmo merecedor das pedras, antes de atirá-las.
A internet e o humor
O ponto de partida para a análise é o crescente mal-estar que piadas de cunho racistas têm despertado nos setores mais esclarecidos da sociedade, do qual a reação à pretensa piada de Danilo Gentili (que, há cerca de um mês, “tuitou” a seguinte mensagem: “Agora, no Telecine, o filme 'King Kong', um macaco que, depois de ir para a cidade, pega uma loira. Quem ele pensa que é? Jogador de futebol?”) do CQC, foi exemplar.
Utilizando-se das novas ferramentas de comunicação na internet, esses setores resolveram dar uma espécie de “basta” ao humor que se utiliza de forma derrisória de estereótipos racistas, sexistas e expressivos de preconceitos de forma geral.
A partir sobretudo dessa reação, uma espécie de lema passou a ser insistentemente repetido através da internet, como o demonstra, por exemplo, um tweet colhido ao léo, enviado no último sábado por @flabrito: “Não, piadas racistas, xenófobas, sobre terrorismo, assassinatos e maus-tratos de animais não são engraçadas”.
De lemas e de fatos
Trata-se de uma afirmação cujas premissas são genuina e verdadeiramente compartilhadas por muitas pessoas e, como tal, espelha um posicionamento ideológico de determinados setores da sociedade – posicionamento este que se alia, por um lado, ao desenvolvimento do que Norberto Bobbio vê como uma etapa avançada na batalha pelos direitos humanos e, por outro lado, a uma visão que identifica um processo de retroalimentação do racismo através do humor preconceituoso.
Suas genuinidade e implicações polítcas não fazem, contudo, que a afirmação seja um dado histórico incontestável. Na verdade, pelo contrário: uma análise fria e desapaixonada dos fatos tenderia a constatar que a existência – e a persistência ao longo do tempo - de tantas piadas racistas e xenófobas denota que, para muitos e há tempos, elas são – e, pior, continuam sendo - engraçadas. Afinal, se não houvesse quem delas risse, haveria poucas piadas a respeito de tais temas e elas tenderiam a diminuir ao longo do tempo. Infelizmente, não é isso que ocorre – e a mesma internet que dá voz a essas parcelas da sociedade que querem estancar as vertentes racistas e preconceituosas do humor tornou-se, por outro lado, o principal repósitório e incubadora das piadas que têm raça, gênero e preconceitos como tema (e, veja bem, não estamos falando de nichos minoritários, mas de sites de humor com altíssima audiência e que estão, há muito, no top 10 da internet brasileira).
Ignorar esse fato e seguir repetindo um mantra que pode ser belo, coberto das melhores intenções e totalmente “do bem”, mas que não corresponde à prática social efetiva - como o presente estatuto do politicamente correto tem feito -, é incorrer em um grave erro tácito de ação política: ignorar os fatos. E a história desconhece exemplos de ações políticas bem-sucedidas baseadas em diagnósticos falsos.
Repete-se, assim, no Brasil contemporâneo, um dos graves problemas com o construcionismo social made in USA, cujos preceitos estão por trás dessa forma de militância politicamente correta ora em voga (com 3 décadas de atraso, como de praxe nas relações entre metrópole e colônia): apostar tão-somente em marcos regulatórios socialmente impostos , de cima para abaixo, ignorando tanto pressupostos psicanalíticos específicos, strictu sensu – como o estudo desenvolvido por Freud em Jokes and Their Relation to the Unconscious e seus desdobramentos na psicologia coletiva moderna - quanto as implicações genéricas, metafóricas de mecanismos reativos à repressão, notadamente o conceito de “retorno do oprimido”.
Os EUA e a mídia
A cultura popular industrial afigura-se terreno fértil para a análise das consequências de tal miopia. Tomemos, pois, como exemplo, a produção contemporânea de filmes e séries norte-americanas. Com maior vigor a partir de fins dos anos 80, movimentos organizados de defesa dos gays e dos negros passaram a fazer ingerências junto aos grandes estúdios de Hollywood visando coibir representações depreciativas e obter maior e mais qualificada presença de seus representados nos filmes. O resultado foi, inicialmente e por um bom período, positivo, talvez menos em relação a questões de gênero do que raciais, mas neste âmbito proporcionou resultados palpáveis, com a ascenção profissional e econômica de gerações de astros negros e, pela primeira vez, sua presença frequente e distinção eventual nas principais premiações do cinema e da TV (sendo que Denzel Washington, Halle Berry, Cuba Gooding Jr. e Jamie Foxx estão entre os multipremiados).
Porém o que acontece hoje em dia? O politicamente correto tornou-se, ele mesmo, mais do que um tema de humor, o fio que perpassa toda uma linhagem de comédia, que tem em Sacha Baron Cohen um de seus ícones maiores, mas de forma alguma o único. Mesmo nas comédias mais pedestres – como em Se Beber Não Case (The Hangover, Todd Philips, EUA, 2009) , em cartaz no Brasil - estabeleceu-se um procedimento-padrão para driblar as restrições impostas pelo establishment do politicamente correto e reforçar preconceitos: elas são explicitamente enunciadas pela trama, artifício que funciona a um tempo como um sinal de que serão desrespeitadas e um salvo-conduto para transcendê-las sem constrangimentos.
É esse mesmo mecanismo que sustenta uma das vertentes do humor de House, a série com o médico tão brilhante quanto rabugento que é um fenômeno mundial de audiência. O politicamente correto é não apenas desprezado, mas sua própria superação cumpre um duplo papel: é em si um tema de piada e uma desculpa para tornar as piadas de cunho racista (ou preconceituosas) ainda mais livres de qualquer contingência imposta pela moral vigente (como se observa inúmeras vezes não só em relação a Foreman, o médico vivido por Omar Epps, mas particularmente - e com uma virulência poucas vezes vista na TV - contra o personagem de Cole “Big Love”, o mórmon candidato a médico na quarta das até agora seis temporadas da série).
Ou seja, o politicamente correto tem se tornado, paradoxalmente e cada vez mais, um elemento de intensificação do racismo na produção audiovisual. Trata-se, metaforicamente, do retorno do oprimido de que nos fala Freud, puro, escarrado e, como pelo fundador da psicanálise previsto, mais forte e insidioso.
Sem saídas fáceis
Como sair desse impasse? Deve-se deixar que o humor baseado em preconceitos e discriminação circule livremente? Decerto que não. A militância anti-racismo na internet pode funcionar efetivamente como uma estratégia de convencimento a médio prazo? Talvez. O contra-ataque na forma de piadas que têm como alvo estereótipos ligados aos poderes dominantes é válido como estratégia? Na minha opinião pessoal, sim. Poucas assuntos são mais potencialmente engraçados do que figuras do autoritarismo patriarcal e conservador (pense em José Serra).
Porém não tenho a pretensão de ter a resposta para tão complexa questão. Não posso deixar de registrar, no entanto, que , como já colocado anteriormente, ignorar fatos quando se trata de se desenhar uma estratégia para um objetivo político é burrice – e eventualmente uma burrice contra-producente, como o presente status da representação social na produção audiovisual norte-americana o demonstra.
É o que ocorre no Brasil atual, em relação a essa relação entre humor e preconceitos: fica-se um grupo de pessoas bem-intencionadas de um lado, afirmando que piadas racistas e/ou homofóbicas não têm graça; e, do outro lado, outro grupo, ao que tudo indica numericamente maior, consumindo diariamente piadas do tipo produzidas pelos principais sites de humor. Mesmo correndo o risco de sofrer o destino do mensageiro do rei que é imolado por trazer más notícias, tal estado de coisas me leva a constatar que a atual estratégia de combate ao humor politicamente incorreto não está funcionando.
Que há formas mais inteligentes de se criticar o racismo - e com humor - o clip abaixo reproduzido não deixa dúvidas.
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
A solução para o problema da mídia
O escritor Jonathan Swift, ante a proliferação incessante de petizes relegados à miséria em sua Irlanda natal, concebeu uma fórmula simples e eficaz para, de uma só tacada, solucionar de vez a grave questão social da infância e combater o flagelo da fome. Tratava-se de "uma modesta proposta" por meio da qual as hordas de remelentos que povoavam Dublin, levadas ao forno, transformar-se-iam em tenro e nutritivo alimento para uma população vitimada pela peste e pela fome.
O que a sacada desse ironista que está entre as maiores influências de Machado de Assis nos ensina? Que a um grave problema que mentes estreitas querem resolver pelos meios convencionais não se deve, na verdade, contrapôr soluções, quase sempre de difícil aplicação e de longo prazo – ao invés disso, o problema deve ser objetiva e cirurgicamente eliminado. Ou seja, a solução para o problema, muitas vezes, não é solucioná-lo, mas eliminá-lo.
Por exemplo: no caso em questão, a solução convencional seria buscar alterar as relações capitalistas irlandesas de modo a prover alimento para essa pivetada maltrapilha que tem a mania irritante de ter fome. Trata-se de uma solução que, di$pendio$a, não interessa aos homens bons, como diria nosso irrepreensível mentor, professor Hariovaldo Almeida Prado, pois, ainda por cima, pode acostumar mal as crianças (pense em ditados como “não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar”, “a esmola mata de vergonha ou vicia o cidadão” e outros brandidos pelos imparciais colunistas políticos de nossa briosa imprensa quando analisam o bolsa-família, digo, bolsa-esmola).
Mas saiamos do passado daquela terra de bêbados e de religiosos se digladiando entre si e voltemos ao presente de um país que não tem nada disso e que prima pela seriedade e lisura na administração dos bens públicos e privados: o Brasil. Um problema recorrente desta terra ensolarada, salve, salve, teus risonhos lindos copos têm mais flores (apud Vanusa) tem sido, há tempos, a “grande mídia”, entidade maléfica que a tudo distorce e corrompe.
Pois bem, qual a solução que as pessoas curtas em espírito e em inteligência têm apresentado para esse problema? Perigosos radicais, como o sr. Idelber Avelar – cujas insanas declarações incluem a afirmação de que prefere ser limpador de bunda de lutador de sumô a jornalista - querem simplesmente acabar com a mídia; radicais menos perigosos – como este blogueiro e o sr. Leandro Fortes, que trabalha no pasquim marrom Carta Capital -, ingênuos que são, querem reformá-la e reconstruí-la em novas bases.
Pergunto, meus dois caros leitores, o que há de errado com essas pseudo-soluções que, à guisa de resolver o problema, só procrastinam (u-hu!) sua solução? Hein? ...Elas não o eliminam, meus caros!
Pensemos: a “grande imprensa” se sustenta em bases materiais – ou seja, precisa de (muito) dinheiro para sobreviver. Quem provém o vil metal para essa súcia de mercadores de notícias? As pessoas suficientemente idiotas – e abonadas – para, em plena era da internet, comprar papel pintado e encadernado. Quem são esses seres bizarros? A classe média (clique aqui para ser apresentado a esse bando de energúmenos e ao texto que inspirou este post), sobretudo uma sub-espécie da canalha que comentadores irresponsáveis, suspeitos de ligação com o terrorismo basco, chamam de #classemerdiawanabe.
Portanto, doravante, deixemos a “grande mídia” para lá. A tarefa que se nos impõe, como panacéia, é eliminar a classe média – e, inspirados em Swift, ainda lucrarmos com isso, vendendo seus cabelos para o Helianda Hair Coffure (!) e seus restos para adubar a terra onde a “grande mídia” será sepultada. Dois coelhos com uma cajadada só!
O que a sacada desse ironista que está entre as maiores influências de Machado de Assis nos ensina? Que a um grave problema que mentes estreitas querem resolver pelos meios convencionais não se deve, na verdade, contrapôr soluções, quase sempre de difícil aplicação e de longo prazo – ao invés disso, o problema deve ser objetiva e cirurgicamente eliminado. Ou seja, a solução para o problema, muitas vezes, não é solucioná-lo, mas eliminá-lo.
Por exemplo: no caso em questão, a solução convencional seria buscar alterar as relações capitalistas irlandesas de modo a prover alimento para essa pivetada maltrapilha que tem a mania irritante de ter fome. Trata-se de uma solução que, di$pendio$a, não interessa aos homens bons, como diria nosso irrepreensível mentor, professor Hariovaldo Almeida Prado, pois, ainda por cima, pode acostumar mal as crianças (pense em ditados como “não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar”, “a esmola mata de vergonha ou vicia o cidadão” e outros brandidos pelos imparciais colunistas políticos de nossa briosa imprensa quando analisam o bolsa-família, digo, bolsa-esmola).
Mas saiamos do passado daquela terra de bêbados e de religiosos se digladiando entre si e voltemos ao presente de um país que não tem nada disso e que prima pela seriedade e lisura na administração dos bens públicos e privados: o Brasil. Um problema recorrente desta terra ensolarada, salve, salve, teus risonhos lindos copos têm mais flores (apud Vanusa) tem sido, há tempos, a “grande mídia”, entidade maléfica que a tudo distorce e corrompe.
Pois bem, qual a solução que as pessoas curtas em espírito e em inteligência têm apresentado para esse problema? Perigosos radicais, como o sr. Idelber Avelar – cujas insanas declarações incluem a afirmação de que prefere ser limpador de bunda de lutador de sumô a jornalista - querem simplesmente acabar com a mídia; radicais menos perigosos – como este blogueiro e o sr. Leandro Fortes, que trabalha no pasquim marrom Carta Capital -, ingênuos que são, querem reformá-la e reconstruí-la em novas bases.
Pergunto, meus dois caros leitores, o que há de errado com essas pseudo-soluções que, à guisa de resolver o problema, só procrastinam (u-hu!) sua solução? Hein? ...Elas não o eliminam, meus caros!
Pensemos: a “grande imprensa” se sustenta em bases materiais – ou seja, precisa de (muito) dinheiro para sobreviver. Quem provém o vil metal para essa súcia de mercadores de notícias? As pessoas suficientemente idiotas – e abonadas – para, em plena era da internet, comprar papel pintado e encadernado. Quem são esses seres bizarros? A classe média (clique aqui para ser apresentado a esse bando de energúmenos e ao texto que inspirou este post), sobretudo uma sub-espécie da canalha que comentadores irresponsáveis, suspeitos de ligação com o terrorismo basco, chamam de #classemerdiawanabe.
Portanto, doravante, deixemos a “grande mídia” para lá. A tarefa que se nos impõe, como panacéia, é eliminar a classe média – e, inspirados em Swift, ainda lucrarmos com isso, vendendo seus cabelos para o Helianda Hair Coffure (!) e seus restos para adubar a terra onde a “grande mídia” será sepultada. Dois coelhos com uma cajadada só!
(Imagem retirada daqui)
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