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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Filme sobre Thatcher supera armadilhas


No história recente, poucas figuras públicas deixaram mais evidentes as ambiguidades e contradições entre questões de gênero e política do que Margaret Thatcher.

Numa sociedade caracteristicamente conservadora, sua ascensão de filha de pequenos comerciantes a primeira-ministra da Grã-Bretanha – e, daí, a uma das principais lideranças mundiais de seu tempo - a torna, por si só, um símbolo da emancipação feminina, dos novos papeis e das potencialidades de ascensão e de representação social da mulher no século XX. Para o bem ou para o mal, credencia-se, em decorrência, como um ícone feminista.

Por outro lado, seus quase 12 anos no poder marcam o momento de afirmação do neoliberalismo sem freios, do enfraquecimento do Estado, do desmanche dos sindicatos e da legislação trabalhista, com gravíssimas consequências sociais para os pobres e para a classe trabalhadora – algumas delas perdurando até nossos dias. É impossível para um humanista ou para qualquer pessoa que preze mais os seres humanos do que o mercado de capitais avaliar como positivo o legado de sua liderança.

É precisamente ante o dilema acima referido que se depara a produção franco-britânica A Dama de Ferro, a cargo de Phyllida Lloyd, consagrada diretora inglesa de ópera.  Antes do filme ser rodado, ela declarou que a intenção era contar a história de Thatcher a partir de um ponto de vista feminista e concentrado na figura humana da retratada, incluindo uma incursão pelos seus anos recentes, reclusa, senil e acometida de demência.

O resultado surpreendente positivamente. O filme, que não se limita a retratar superficialmente o que há de controverso em relação a Margaret Thatcher, deixa claro os danos que o thatcherismo causou à sociedade britânica, seja através profunda insensibilidade social da administradora ou do seu envolvimento entusiasmado no dispendioso e desnecessário derramamento de sangue nas Malvinas.

Colabora sobremaneira para tal feito um roteiro inteligente - a cargo de Abi Morgan -, que contextualiza essas questões tanto através da fala de personagens (“o maior desemprego desde 1930, o mais baixo volume de produção industrial desde 1920”), quanto de trechos de telejornais (reais ou fictícios), além do recurso a impressionantes sequências documentais (onde se vê, por exemplo, um enorme contingente  policial tentando em vão conter a fúria da multidão que protesta contra a repressão às greves).

É evidente que, em se tratando de um produto audiovisual para o grande público, há simplificação, falta de detalhamento e mesmo uma certa condescendência para com a retratada, decorrentes de sua humanização como personagem. Ainda assim, o resultado não é nada ingênuo politicamente.

O esforço relativamente bem-sucedido em conciliar a visão feminista e a avaliação crítica das políticas thatcheristas ajuda a explicar a recepção fria que a obra teve na Inglaterra - pois, por um lado, tal retrato, devido aos efeitos benevolentes da citada humanização da personagem, tende a desagradar os críticos de Thatcher; e, por outro lado, a abordagem crítica sem meias-tintas de sua atuação política tende a contrariar àqueles que a apoiam ou com ela simpatizam. De concreto, pessoas dos círculos próximos à ex-governante protestaram, em entrevistas à imprensa inglesa, pelo que consideram invasão de privacidade alegadamente promovida pelo filme ao retratar sua senilidade.


Meryl Streep, como a Thatcher idosa e sofrendo de demência, tem uma daquelas atuações impressionantes que me fazem defender – a sério – a ideia de que ela deveria ser decretada hors-concours nas premiações para melhor atriz. Já como a "Dama de Ferro" de meia-idade, vivendo sua ascensão e queda como primeira-ministra, embora também ofereça uma performance superlativa em termos de empostação de voz, modo de olhar e gestual de mãos e braços, ressenti-me tanto da ausência, na composição da personagem, de um certo modo de caminhar típico de Thatcher (que pode ser visto em vídeos da época e que a atriz só reproduz ao final do filme), quanto de uma expressão facial mais encruada e maquiavélica (foto à direita), em comparação com a expressão clean e sutilmente cínica de Streep (que evidentemente tem um rosto bem mais bonito que o da ex-primeira-ministra). Mas tais observações, vistas em relação ao todo da atuação, não passam de detalhes, baseados em uma expectativa inflacionada de reprodução do real a qual a própria Streep por vezes parece induzir.

Colabora para a performance de La Streep – que declarou reiteradas vezes ter profundas divergências políticas com Thatcher, mas grande interesse em sua trajetória enquanto mulher - o impressionante trabalho de maquiagem (única categoria, além da de atriz, pela qual o filme é indicado ao Oscar). Mereceria destaque também a atuação de Harry Lloyd como o jovem Denis Thatcher – o marido empresário que colaborou decisivamente para que a jovem Thatcher fosse aceita nos altos círculos ingleses, foi seu companheiro por décadas e com quem, em seus delírios senis, a Margaret idosa dialoga.

As qualidades que permitem fazer uma avaliação positiva da produção, ao longo do texto citadas, estão longe de fazer de The Iron Lady um grande espetáculo cinematográfico. Mas o fato de, no conservadorismo social e cinematográfico vigente, o filme conseguir escapar com galhardia e incisividade da armadilha de glorificar a personagem retratada - e ainda oferecer mais uma grande performance de uma dama da interpretação - não é um feito a ser menosprezado.


(Fotos retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

PT, Kassab e os limites da realpolitik


A governabilidade, no sistema político brasileiro, pluripartidário e em grande medida dependente das casas legislativas – de um modo tal que há cientistas políticos que falam em “presidencialismo parlamentarista” - praticamente impõe a costura de alianças cuja elasticidade, via de regra, extrapola consideravelmente a faixa do espectro político no qual o partido vencedor das eleições se situa.

A experiência histórica demonstra que a recusa na composição de alianças mais abrangentes tende a reduzir dramaticamente o raio de ação do governante ou mesmo engessá-lo. O caso mais grave talvez seja o da presidência Jânio Quadros – abortada por fatos que decorrem diretamente de sua reação ao sentir-se manietado por não gozar de maioria no Congresso. Ainda hoje, em que pese o recurso (muitas vezes abusivo) a medidas provisórias, sem tal maioria, conquistada nas urnas ou atingida eventualmente por meio de conchavos, o presidente corre o risco de se tornar presa do parlamento e incapaz de imprimir uma marca à sua administração.


Salto social
É dentro dessa lógica inescapável que se situa a aliança, em âmbito federal, comandada pelo PT, a qual teve lugar com a primeira presidência Lula. Por mais que nela a muitos cause repulsa a presença de velhos coronéis da política – cujo símbolo máximo é José Sarney -, ilude-se quem acha que sem o apoio parlamentar do PMDB e dos demais partidos que compõem com o governo teriam sido efetivadas as principais políticas que deram uma cara nova ao país na última década, notadamente as grandes reformas sociais operadas por tal aliança, por meio das quais quase 40 milhões de cidadãos e cidadãs deixaram a pobreza e a miséria foi substancialmente reduzida, com perspectiva de ser erradicada no curto prazo.

Trata-se, como ora reconhecido internacionalmente, de uma notável realização social, inconcebível e alegadamente inexequível há pouco mais de uma década, e que por si só evidencia a falácia dos que - à direita e à esquerda - se recusam a ver diferenças entre a administração petista e a peessedebista que a precedeu.

Em entrevista ao Estadão, o pré-candidato do PT à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, disserta precisamente sobre os pontos acima referidos, sublinhando a importância da composição de alianças no modelo pluripartidário em voga, ressaltando as conquistas socioeconômicas da aliança federal capitaneada pelo PT e - inquirido sobre a possível aproximação com Kassab - afirmando que o fundamental é que “alianças tem que ser pautadas de tal maneira a não comprometer o objetivo do processo”.


Excesso de pragmatismo
Trata-se de uma meia-verdade. Pois os limites entre as necessidades ditadas pela realpolitik e a possibilidade de perda da identidade político-ideológica podem vir a ser muito tênues. O próprio Gramsci, principal teórico da questão da hegemonia, embora defensor, a priori, da constituição de alianças, não só as condiciona à existência, mínima que seja, de um denominador comum programático e à manutenção da possibilidade de realização de políticas que levem ao menos a um avanço em direção aos objetivos políticos originais, mas sublinha a importância crucial de se avançar em termos político-ideológicos.

Ora, inexiste denominador comum programático entre PT e Kassab (como, aliás, salienta o Diretório Municipal do PT/SP); tal aliança significa algo entre a abdicação de uma plataforma expressamente político-ideológica e sua revisão conservadora, e uma questão fundamental se coloca: que avanço político-ideológico se pode esperar da aliança com uma figura que se caracterizou, à frente da Prefeitura, pela promoção, em pleno século XXI, de políticas eugenistas, por atuar como coadjuvante do PSDB na promoção da violência oficial contra os cidadãos, pela agressividade no trato com os críticos, pela negligência das demandas sociais e pela pusilanimidade oportunista (“PSD não será de direita, não será de esquerda, nem de centro”)?

Fiar-se tão-somente em uma pragmática de resultados, negligenciando os princípios éticos, como ora fazem Haddad e setores do PT, pode mostrar-se ou não eleitoralmente danoso – mas, o que é certo e muito mais grave, deve colaborar para agravar o esvaziamento ideológico de nossa sociedade e para corroborar, com o carimbo de um partido tido como de centro-esquerda e de massas, para a corroboração da tipificação do universo da política como amoral ou mesmo perverso.


Questões para o futuro
O menosprezo à ideologia é hoje palpável não só no alto comando mas entre a militância petista – e é, na modesta opinião deste blogueiro, a mais perigosa das ameaças ao futuro do partido.

O pragmatismo – administrativo ou eleitoral - tem sido, até o momento, a única resposta que setores de militância petista tem dado a críticas consistentes em relação a medidas como a privatização dos aeroportos e o namoro do PT paulista com Kassab – críticas estas advindas de militantes, aliados, ex-aliados e do próprio campo da esquerda. Essa recusa insolente pode cobrar um preço alto: a questão, aqui, não é se um eventual pacto com Kassab vai ou não fazer com que a aliança comandada pelo partido vença as eleições – o que pode até acontecer -, mas os flancos que o partido está abrindo, a curto e médio prazo, ao renunciar a bandeiras históricas e ao ameaçar aliar-se com quem até ontem representava o antipetismo. No mínimo, perderá quadros valiosos, como já vem acontecendo.

Mas mesmo o pragmatismo que tem marcado o debate tem prestado pouca atenção a duas questões fundamentais, com as quais o eleitor vai se defrontar caso se efetive a aliança com Kassab:
1) Se o PT quer se apresentar, na capital paulista, como uma alternativa ao demotucanato, como fazê-lo se aliando justamente a uma figura política que ven sendo, por muito tempo e até ontem de manhã, um dos símbolos da hegemonia demotucana em São Paulo e de muito do que o PT combate?
2) Qual o limite, para a centro-esquerda, de relativização dos valores éticos e ideológicos, e a partir de que ponto, ao adotar esse relativismo, ela mimetiza valores conservadores, os relativiza enquanto tais, e com o conservadorismo se confunde?
A resposta a tais questões pode não só definir o rumo imediato do PT em São Paulo, mas ter, no médio prazo, consequências de monta para o partido e para o país.


(Foto retirada daqui)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Os Descendentes e o cinema neo-humanista


O grande trunfo de Os Descendentes (The Descendants, 2011) é voltar-se para o retrato de pessoas comuns, abordando seu cotidiano, dramas e contradições com acento tragicômico – mas sem jamais apelar para o sarcástico de filmes como Beleza Americana ou de diretores como Todd Solontz (Bem-vindo à Casa de Bonecas; Felicidade).

Alexander Payne – dos ótimos A Confissão de Smith, com Jack Nicholson, e Sideways, com Paul Giamatti – é um diretor de outra cepa, que assimilou como poucos de seus conterrâneos as lições do neo-realismo italiano sobre a importância da observação do cotidiano, da criação de sentidos epifânicos através do realismo, da câmera como “seguidora” do protagonista. Dotado de um talento ímpar para gerar significações valendo-se principalmente da dinâmica interna da imagem - algo bem raro hoje em dia - e de um aguçado sentido da estética e da ética contemporâneas, vem se firmando, ao lado de nomes como Iñárritu, Kiarostami e Walter Salles como um dos diretores mais representativos do neo-humanismo no cinema.

Na era da edição frenética, em que as pesquisas mostram que as novas gerações, educadas na gramática visual MTV, tendem a dispersar sua atenção se as tomadas duram mais de sete segundos, a montagem de Descendentes - concebida por Payne e realizada por Kevin Tent, indicado ao Oscar-, sem jamais soar arrastada, preserva o delicado equilíbrio entre a dinâmica interna da sequência e sua duração, de modo a potencializar a geração de sentidos.

Tais qualidades são especialmente propícias a essa produção norte-americana, cujo tema central é a crise – pessoal, familiar, de masculinidade – de um advogado sovina, representante legal de sua enorme família em um negócio de terras, que, não bastasse defrontar-se com a esposa Liza à beira da morte por conta de um acidente, descobre que ela o traía e planejava o divórcio. A dificuldade para lidar com seus sentimentos – os quais nunca explicita – e para manter-se equilibrado o suficiente para administrar tal situação, somada à conflituosa relação com suas duas filhas – uma adolescente, outra prestes a ingressar na puberdade, ambas também vivenciando dilemas emocionais -, formam o substrato dramático da narrativa.

Em termos formais, a fotografia trabalha em baixo contraste a luz intensa do Havaí, de forma que mesmo o solar e o luminoso predominantes adquirem um quê de sóbrio e, às vezes, melancólico, sendo que as nuances pontuais de iluminação tendem a privilegiar o humano (faces, sobretudo) ante o peculiar esplendor da paisagem havaiana, que no mais das vezes não é realçada.

Ainda assim, colabora para dotar o filme de um certo exotismo a escolha do arquipélago havaiano como locação, dadas a a ambiência praiana típica e a mescla da cultura local – no vestir-se, na comida, nas expressões idiomáticas e, sobretudo na música (que serve de trilha sonora) – e norte-americana – a língua, sobretudo, mas também os códigos de conduta, como a indefectível niceness da esposa do amante de Liza. É questionável, porém, até que ponto tal ambiência realmente se insere dramaturgicamente na trama – como em Lost in Translation, de Sofia Coppola - ou se não passa de um penduricalho artificial a evidenciar o esgotamento do cânone e, numa manjada estratégia cinematográfica pós-moderna, a adicionar um tempero camp à trama.

A novata Shailene Woodley, como a filha adolescente que rompera com a mãe por flagrá-la com o amante, oferece uma performance só aparentemente discreta, cujo valor está justamente nas sutilezas - e que lhe valeram, até agora, nos EUA, quatro prêmios regionais e dois nacionais, incluindo o prestigioso National Board of Review, o prêmio nacional da crítica. Indicada ao Globo de Ouro, junta-se a Tilda Swinton, protagonista de Precisamos Falar sobre o Kevin, como uma das injustiçadas do Oscar 2012.

Já George Clooney, na pele do advogado sovina Matt King, ganhou o Golden Globe e pode levar também o Oscar, mas sua atuação está longe de oferecer as nuances interpretativas de que atores como Sean Penn e Anthony Hopkins são capazes e que um personagem tão complexo, em uma situação tão instável e conflituosa, demandaria. O máximo que consegue é expressar a dificuldade em administrar a contradição entre a raiva e a frustração interiores e a necessidade de manter as aparências e o autocontrole - além de, próximo ao final, permitir o vislumbre da chama de grandeza humana que pulsa no interior desse personagem dilacerado. Talvez grande parte do impacto de sua atuação advenha da surpresa em constatar que um galã como Clooney soa convincente na pele de um homem em plena phalic failure, traído pela esposa e ao mesmo tempo condoído e impotente ante sua morte, incapaz de funcionar como pai, um ser humano aparentemente bem-sucedido, mas que olha para trás e vê que o só o que fez na vida foi trabalhar e guardar dinheiro.

E é precisamente o modo sensível – mas nunca, jamais piegas – com que Payne conduz tais dilemas, e a profunda ressonância que o drama desse homem, de suas filhas e dos que orbitam em torno dessa família encontra na vida real cotidiana que faz com que Os Descendentes, mesmo sem ser um grande filme, mereça ser visto. Difícil sair do cinema impune e esquecê-lo na primeira esquina.


(Fotos retiradas, respectivamente, daqui e dali)




quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De greves e golpismos

O direito à greve é uma conquista dos trabalhadores que levou séculos para ser obtido e que demandou muitos embates ideológicos e físicos, muito sangue derramado, para se concretizar, no início exclusivamente – porém de modo não universal – em setores em que as relações de produção dependiam muito de mão-de-obra, notadamente o industrial.

Ainda assim, nessa trajetória marcada por variadas táticas de persuasão e pressão, de lado a lado, entre trabalho e capital, e por calorosos debates – como o que opôs Marx e o anarquista Bakunin, defensor da greve geral -, é só na segunda metade do século XX, no bojo da instauração dos Direitos Humanos universais, que o direito à greve se consolida e se difunde para além do mundo ocidental desenvolvido.

Tal histórico ajuda a entender tanto porque o poder de pressão das greves quanto o protagonismo público dos sindicatos – uma força política central, em boa parte do mundo, durante a maior parte do século XX – entram, de maneira geral, em crise a partir do final dos anos 80, quando coincidem a instauração do neoliberalismo e o salto qualitativo da revolução da tecnologia digital e da robótica, fazendo com que, respectivamente, os universos financeiros e midiáticos passassem a dominar a arena pública e centenas de milhões de empregos fossem substituídos pela automação.


Sindicalismo, Estado e Política
No Brasil, houve, desde as primeiras greves do início do século XX, comandadas por imigrantes italianos anarquistas, uma forte confluência entre sindicalismo e política, exemplificada particularmente por dois momentos históricos distintos: o primeiro no hiato 1931-1964, em que, após tomar corpo sob auspícios estatais (sindicatos oficiais, criação do imposto sindical) na era getulista, enfrenta altos e baixos, se amplia, diversifica e intensifica sua ação nas décadas seguintes, até ser brutalmente reprimida pela ditadura – que, já em 1964, teve os líderes sindicais entre seus primeiros alvos.

Já a insurgência dos metalúrgicos de São Bernardo dos Campos nos anos 1970 vai demarcar justamente a confluência entre a luta trabalhista e o combate à ditadura. Seguida pela greve na Companhia Siderúrgica Nacional, na década seguinte, viria a exercer profunda influência na vida política do país, estando na raiz tanto da fundação do PT – partido que surge da aliança entre classe trabalhadora e intelectualidade, como o demonstram o fato de que sua primeira ficha de inscrição foi assinada pelo crítico de arte Mário Pedrosa  e que contava com o apoio de luminares uspianos, como Antonio Cândido – quanto do surgimento de Luiz Inácio Lula da Silva como figura nacional, que logo se tornaria emblemática da “nova esquerda” (dentro de uma perspectiva que compreende uma figura como Leonel Brizola como pertencente à “velha esquerda” que fora derrotada pela ditadura).

Essa confluência entre luta antiditadorial e movimentos grevistas talvez ajude a explicar porque consolidou-se, nos meios progressistas, uma certa tolerância ao recurso à greve mesmo por categorias profissionais que a Constituição vigente considera impedidas de exercê-lo, como é o caso dos policiais militares.


Greve sim, banditismo não

O movimento protagonizado pela PM baiana nos últimos dias, no entanto, extrapola os limites do tolerável por caracterizar-se não como uma paralisação legítima, mas por atentar contra o próprio instituto da greve, extrapolando-o a favor um verdadeiro banditismo praticado com fardas e armas oficiais, “tocando o terror” contra os cidadãos. Parafraseando Chico Buarque, “chama o ladrão, chama o ladrão”.

Agrava ainda a mais o problema a comprovação de que as suspeitas sobre a orquestração politiqueira do movimento são reais e têm graves implicações políticas – como se pôde constatar em reportagem vinculada ontem, no Jornal Nacional, cujo inaudito vigor jornalístico não disfarça o esforço de livrar a cara dos partidos conservadores, responsabilizando a oposição à esquerda.

Claro está que a documentada orquestração vai além de uma em si questionável estratégia interestadual para deflagração de greves em outros estados, como forma de pressionar o Congresso pela votação da PEC 300 (que estabelecerá o piso nacional da categoria); seu objetivo precípuo – e inconfessável, pois situado fora dos limites legais da democracia representativa - é, na verdade,minar politicamente a presidência de Dilma Rousseff , responsabilizando o governo estadual por um “crescente” caos na segurança pública provocado pela propagação de greves da PM em vários estados da federação.

Antes de analisar esses graves fatos, é preciso examinar responsabilidades e erros estratégicos dos governos estadual e federal na condução do caso, não só porque, como observa o professor e blogueiro Chico Bicudo, não cheira bem a “tentativa de blindar e de santificar o governador Jaques Wagner, só porque ele é do PT” e devido ao fato de que ocultá-los não é saudável para a democracia e a verdade histórica, mas para que não venham a se repetir. .


Reação morosa
“Velho amigo de Wagner desde a primeira campanha presidencial de Lula, em 1989”, o neste caso insuspeito Ricardo Kotscho aponta que o governador baiano foi imprudente em, estando certamente informado da possibilidade de greve, não só não ter agido a contento, mas ter abandonado o estado para incorporar-se à comitiva da viagem oficial de Dilma a Cuba – uma falha que se agrava quando se leva em conta que, como lembra Kotscho, a própria origem de Wagner é o sindicalismo. Além disso, mesmo quando de volta à capital, seu tempo de reação foi claramente inferior àquele demandado pela urgência da situação.

Assim, “a sensação que fica é de uma mistura de soberba com descaso e desdém, algo como 'vamos empurrar com a barriga, não vai dar em nada, deixa estar para ver como é que fica'”, assinala Bicudo. Agrava tal impressão a amnésia seletiva em relação à greve da PM promovida pelo partido em 2001, quando era oposição, e a insistência em jogar na conta do carlismo a conta dos revezes na segurança pública. A esse respeito, em artigo significativamente intitulado "ACM já morreu",  pergunta a jornalista Cynara Menezes:

“Que a polícia baiana é truculenta, todo mundo sabe. O problema é fazer pouco ou nada para mudar isso. Até quando os petistas, no poder no Estado há cinco anos, irão dizer que qualquer questão envolvendo a Polícia Militar é resultado dos desmandos de Antonio Carlos Magalhães? Chega de governar olhando o retrovisor.”
Convém ainda frisar que, ao contrário do que a militância chapa-branca nas redes sociais quer fazer crer, a comprovação da manipulação politiqueira e de má-fé da greve da PM não anula as falhas de Wagner na administração do processo.  Parafraseando e wxpandindo o provocativo convite à reflexão com o qual Chico Bicudo encerra seu referido post, já imaginaram se a a PM paulista entrasse em greve e Geraldo Alckmin reagisse do modo errático como Jaques Wagner reagiu, o que estaríamos escrevendo nos blogs e redes sociais?


Ausência de malícia
Embora a rigor correta e bem-intencionada, é preciso também tecer algumas considerações acerca da conduta do governo federal no caso, já que ela acabou por colocá-lo em uma posição vulnerável, a mercê de golpes abaixo da linha da cintura (ou seja, que jogam às favas qualquer republicanismo) das oposições e da maior parte da mídia e, em decorrência, presa de um jogo de manipulação da opinião pública.

Pois a ânsia do governo Dilma em evitar reveses eleitorais para o aliado acabou por chamar para si parte considerável da responsabilidade pela resolução do conflito. É louvável que tenha agido com presteza no cumprimento do dever de fornecer segurança a uma população momentaneamente sujeita não somente à inação das forças policiais estaduais, mas a atitudes criminosas por estas protagonizadas.

Faltou, no entanto, tato político para impedir  que o envolvimento de tropas federais se transformasse, aos olhos do público, em obrigação de assumir o ônus da situação – e de todos os erros, desmandos, hesitações e retrocessos a ela inerentes.  

Trata-se de duas coisas distintas, já que, constitucionalmente, o comando das polícias militares e civis pertence à esfera estadual. No entanto, o crônico problema de comunicação do governo federal, o excesso de declarações - incluindo, como observou Walter Maierovitch, "um ministro da Justiça que diz obviedades ('não serão admitidos crimes e violências') (...) e um penduricalho denominado Secretaria Nacional de Segurança Pública" -, somados à manipulação dos fatos por uma mídia corporativa que, no mais das vezes, age como partido de oposição, facilitou tremendamente a tarefa partidário-midiática de jogar a bomba no colo de Dilma Rousseff.

Tal operação colocou o governo em uma posição potencialmente frágil, a partir da qual a geração de crises de segurança pública em âmbito – e, teoricamente, sob responsabilidade – estadual pode vir a atingi-lo pesadamente. É precisamente essa vereda que os partidos de oposição à direita  - auxiliados por um partido que se diz de esquerda mas atua como linha-auxiliar da pior direita - dão mostras de querer explorar, apostando numa escalada de movimentos grevistas das PMs estaduais e confiantes na falta de conhecimento popular sobre o pacto federativo.


O fator militar
O incitamento ao terrorismo de forças policiais militares contra a população e contra alianças políticas eleitas é incompatível com a democracia. É em nome do Estado Democrático de Direito – e não do mandato do partido X ou do partido Y – que é urgente que o governo Dilma Rousseff lance mão, com determinação, dos recursos legais e executivos cabíveis para por fim não apenas ao ato de banditismo ocorrido na Bahia, mas da conspiração golpista de âmbito nacional que, instrumentalizando a peculiar posição institucional da PM, se delineia a partir da ação – fora dos limites da democracia representativa - tanto da direita quanto da esquerda que a direita adora.

Se greve e política são indissociáveis, no caso do movimento dos PMs baianos - bem como da corrente ameaça de paralisação de seus colegas fluminenses - ao fator greve (de um serviço público essencial) vem a se somar o potencialmente explosivo fator militar – o que evidencia, uma vez mais, a necessidade de desmilitarização da polícia, como defendi em post recente).

Convém, ainda, nunca esquecer que, no Brasil, o fator sindical e a sublevação militar estiveram no cerne das motivações que depuseram o último presidente a ousar medidas progressistas, antes de ser deposto pelo golpe de estado que deu início a uma longuíssima e tenebrosa noite política.

Eram, certamente, outros tempos. Mas, particularmente neste caso, é prudente levar em conta a experiência histórica, pois a apropriação, pelas forças oposicionistas, do às duras penas conquistado direito de greve como meio de concretizar desejos golpistas contra um governo democraticamente eleito demonstra, de forma cabal, que é preciso agir com determinação para que aos erros pregressos não seja dada a oportunidade, ainda que farsesca, de repetição.


(Foto da primeira greve geral no Brasil, em 1917, retirada daqui)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O retorno à privatização

O leilão para a concessão, à iniciativa privada, pelo prazo médio de 25 anos, dos aeroportos de Cumbica (SP), Viracopos (SP) e Brasília (DF) - agendado para a próxima segunda-feira (06/02) na BM&fBovespa - marca a retomada, pelo governo federal, da privatização como política setorial de Estado e reacende o debate público sobre um tema com profundas ressonâncias na vida socioeconômica brasileira das últimas décadas.

Abordadas inicialmente por Aloysio Biondi – um jornalista econômico com tal grau de independência e expertise que foi capaz de identificar, no calor da hora, de forma documentada e em detalhes, o descalabro que foi a privatização da era FHC –, tais consequências, examinadas amiúde em textos em sua maioria acadêmicos e desconhecidos mesmo de leitores interessados no tema, voltaram ultimamente ao debate público - graças, sobretudo, ao livro A Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Jr. (Geração Editorial, 2011), que tem promovido uma ainda tímida mas efetiva revisão das consequências da privatização dos anos 90.

Trata-se de um empreendimento essencial para que possamos não apenas melhor entender nosso passado – bem como temas essenciais como a relação entre capital, mídia e a propagação de concepções valorativas sobre os âmbitos público e privado -, mas para evitar repetir graves erros. Porém, como estes não se restringem aos resultados da privatização promovida pelo governo peessedebista – sendo, na verdade, inerentes à concepção ideológica de Estado que gerou o boom das privatizações, da qual decorrem -, é necessário expandir a análise para além do retrato de seus temerosos resultados, contextualizando-a em termos históricos, econômicos e culturais.


New World Order
O modelo de privatização do Estado tal como mundialmente difundido a partir da primeira metade dos anos 90 deriva diretamente do chamado Consenso de Washington – uma cesta de dez medidas originalmente concebidas, por economistas do setor financeiro, como receituário a ser adotado (ou imposto aos) países latino-americanos como forma de, através de ajustes macroeconômicos, padronizar suas economias e, alegadamente, permitir sua “inserção” na (ou, em muitos casos, absorção pela) “nova ordem econômica mundial” liderada pelos EUA e caracterizada pelo capitalismo tecnofinanceiro.

Nesse cenário, encerra-se não somente a repartição binária do poder mundial pré-Queda do Muro de Berlim, mas a era do sistema econômico mundial acordado em Bretton Woods (ou seja, em que a cotação das moedas nacionais em relação ao dólar, e desta em relação ao preço do ouro, pretensamente funcionaria como uma âncora entre a economia real e a financeira). O capitalismo, então, se reifica em um modelo sem lastro monetário, com predomínio do financeiro sobre a economia real e no qual têm papel preponderante as tecnologias de informação e a telecomunicação digital em tempo real. É este o sistema econômico mundial sob o qual temos vivido nos últimos 20 e poucos anos.

Naturalmente, sem os contrapesos que a competição entre capitalismo e socialismo impunha, tal sistema implica, em termos sociais, na redução - ou, a depender de fatores geopolíticos, mesmo no fim – do Estado de Bem-Estar Social que assegurara, ao longo do século XX, as maiores conquistas trabalhistas e sociais da história da humanidade. Tal abandono se dá em prol de uma “nova ordem” em que o Estado daria lugar ao protagonismo do setor financeiro e de megas corporações forjadas a partir de sucessivas fusões empresariais, num modelo altamente nocivo à economia real e ao mundo social do trabalho. Decorrência óbvia dessa dinâmica, o consumo como gerador de cidadania e a criminalização da pobreza completam o quadro dantesco.

Das dez medidas propostas pelo Consenso de Washington – disciplina fiscal, corte de gastos públicos, reforma tributária, juros e dólar regulados pelo mercado, abolição de barreiras ao comércio exterior e ao investimento estrangeiro em economias nacionais, desregulamentação do mercado de trabalho, respeito aos direitos autorais, e privatização do Estado -, esta última foi não somente a mais visível e impactante das políticas adotadas, como o próprio termo que a designa passou a ser utilizado como uma referência sumária às políticas de orientação neoliberal.


O papel da mídia
A privatização foi “vendida” à população de boa parte do mundo como uma panaceia: por um lado, enxugaria os gastos estatais; por outro, abasteceria os cofres públicos com a receita das vendas das empresas e dos serviços gerenciados pelo Estado. Um autêntico Ovo de Colombo! Ao menos foi assim que a mídia corporativa, em bloco, de forma incessante e sem permitir a menor dissonância (a internet não havia ainda se popularizado) a propagou.

Nessa nova conformação, passam a existir razões tanto estruturais quanto de confluência de interesses econômicos que explicam porque a mídia corporativa torna-se não só uma defensora precípua do neoliberalismo, mas parte constitutiva desse capitalismo infotelefinanceiro que tem na cartilha neoliberal sua base ideológica: legitimá-lo e retroalimentá-lo significa, na prática, aumentar continuamente a importância e agregar valor material à própria mídia (tanto de seu produto-informação quanto enquanto estrutura).

Antonio Rubim, no artigo "A contemporaneidade como Idade Mídia" sugere que essa nova dinâmica capitalista implica na revisão do papel dos aparelhos de reprodução midiática na clássica divisão marxista entre estrutura e superestrutura, já que, incrustada, como parte constituinte, no próprio aparelho reprodutor do sistema econômico, a mídia não pertenceria mais exclusivamente ao segundo termo da equação.

Talvez isso soe um tanto abstrato, mas o importante é constatar que o papel da mídia em corroborar o receituário neoliberal e em fornecer-lhe autenticidade ideológica está hoje não só bem documentado, mas analisado - eventualmente com primor - por dezenas de autores. Ao internauta não familiarizado com o tema, basta, talvez, a leitura do artigo “O Globalismo como neobarbárie”, do professor brasileiro Muniz Sodré (um dos ótimos textos críticos sobre globalização oferecidos pela coletânea Por Uma Outra Comunicação (Record, 2003), organizada por Dênis de Moraes).

No curto texto, Sodré, a partir da constatação de que “todo fenômeno social de largo alcance gera (…) uma prática discursiva pela qual se montam e se difundem as significações necessárias à aceitação generalizada do fenômeno”, traça uma verdadeira genealogia e uma análise do modus operandi dos agentes midiáticos encarregados de fornecer uma retorica de legitimação ao neoliberalismo. Adotando o mercado como paradigma, essa “elite logotécnica”, atuando no ãmbito das formações ideológicas, adota uma lógica discursiva segundo a qual “a economia de mercado é traduzida como resultado de uma natureza eterna e imutável do homem”, fornecendo “uma base não-meritória para justificar a desigualdade” e colocando as demandas sociais em segundo plano ante a sacrossanta auto-regulação do mercado.

Deriva precisamente desse “cadinho de cultura” o protagonismo midiático de jornalistas (e protojornalistas) econômicos que hoje continuam em evidência nas corporações midiáticas e cuja linha de atuação consiste em negar-se a reconhecer qualquer avanço na economia que não derive do receituário neoliberal. Esses analistas simbólicos – muitos dos quais atuam "simultaneamente" na imprensa, na TV, no rádio e na internet – são alguns dos principais responsáveis, por um lado, pela fixação e naturalização, no senso comum, do modelito neoliberal, privatista e anti-Estado como o único válido; e, por outro, pelo terrorismo midiático contra a adoção de qualquer medida que divirja de tal paradigma.

Ventríloquos do grande capital, do mercado e da plutocracia midiática, formam, há décadas, a linha de frente da oposição aos avanços sociais e à verdadeira democratização do país. Gozam, ainda, de acesso a um contingente enorme do público, mas, após a popularização da internet e o fenômeno da blogosfera política e das redes socais, são volta e meia contraditos e desmascarados publicamente. Reinaram, porém, nos anos 90, tendo sido fundamentais para articular e propagar a ideologia que sustentou, ante o público, a urgência e inescapabilidade das privatizações dos anos FHC.



Novilíngua tucana
A novilíngua da privatização tucana era direta, técnica e alvissareira: prometia trocar o inchado, letárgico e ineficaz Estado brasileiro pela eficiência implacável das gestões metódicas; relegar o ideologismo fanático e descriterioso pelo tecnicismo científico e (acredite quem quiser) a-ideológico; substituir os barnabés caipiras, pançudos e insolentes, sangue-sugas das tetas do Estado, por funcionários asseados, adestrados e risonhamente submetidos aos rigores da hierarquia, da disciplina e do relógio de ponto.

Falar é fácil, mas a realidade foi bem outra. O destino dado às receitas obtidas pela privatização do Estado brasileiro na era FHC permanece – ou ao menos permanecia, até a publicação de A Privataria Tucana – um mistério. De qualquer modo e ao contrário do que fora apregoado, ele nunca serviu para a liquidação ou mesmo amortização de nossa dívida externa – muito pelo contrário: o Brasil que FHC entregou a Lula devia R$20,8 bilhões e a razão da dívida pública sobre o PIB era de 60,6%; no governo Lula, o Brasil passou de devedor a credor do FMI (a quem emprestou U$10 bi) e a relação dívida pública/PIB caiu para 41,4%. Em resumo: a privatização, no Brasil, foi um grande engodo.

Em decorrência, é óbvio que, após as privatizações dos anos 90, tampouco o Estado, desprovido de suas gorduras, tornou-se mais eficiente, e não só porque não há eficiência que resista à falta de giz para escrever na lousa ou ao breu resultante de lâmpadas que não se acendem (porque a conta de energia elétrica não foi paga) – mas pelo fato que a aposentadoria massiva de recursos humanos, promovida pelo hoje canonizado Bresser Pereira, fez o índice de médicos por paciente e de professores por aluno cair a níveis muito abaixo dos que são internacionalmente aceitáveis. (Em post a ser publicado em breve, analisaremos de forma mais aprofundada a questão do trabalho e dos serviços públicos no Brasil sob os efeitos de sua privatização.)

O resto é história. Contada em pouquíssimos livros, renegada pela imprensa, mas de plena lembrança nos corações, mentes e bolsos dos brasileiros, da classe média para baixo, que vivenciaram o negro quarto de século que separa a adoção do Consenso de Washington e sua substituição por um modelo que, embora conservando parte considerável das orientações neoliberais (como na atuação do Banco Central, na priorização do setor financeiro, na manutenção dos contratos terceirizados de obras e serviços ou no modelo de incentivo estatal à cultura), passou, a um tempo, a promover a ascensão socioeconômica dos estratos menos favorecidos e a apostar na expansão tanto do Estado quanto do mercado interno como propulsores da economia – três premissas que contrariam frontalmente os dogmas neoliberais.

No entanto – e após não apenas manter mas aprofundar os citados resquícios de neoliberalismo que caracterizaram o governo Lula – a administração Dilma, ao regredir, através do Ministério da Cultura, na política relativa aos direitos autorais e ao retomar a política de privatização do Estado, reinsere na agenda, no momento de maior crise internacional do modelo neoliberal, dois dos principais itens do Consenso de Washington, perdendo uma oportunidade histórica de marcar uma posição progressista, de minar ainda mais o modelo hegemônico e de oferecer alternativas próprias e não conservadoras ao domínio político-ideológico.


Novilíngua petista
Ao contrário do vocabulário neoliberal tucano, a ora corrente novilíngua da administração federal petista em relação às privatizações é dissimulada e sussurrante. A insistência em termos como “concessão” e “controle do Estado” - cuja efetividade não supera o jogo de palavras - procura mitigar a contradição de estar promovendo uma política administrativa a qual, a exemplo da maioria de seus eleitores, o petismo sempre rejeitou (e, convém lembrar, cujas acusações de uso pelos adversários peessedebistas serviram de arma eleitoral nos últimos pleitos presidenciais).

Mas, se na forma as privatizações tucana e petista diferem, na essência implicam em uma premissa em comum: a crença na incapacidade do Estado (e, em decorrência, em seus servidores) de realizar, com a excelência e a presteza necessária, as obras demandadas pelo país.

Assim, premido, por um lado, segundo a ANAC, pelo aumento exponencial de passageiros aéreos que a própria ascensão socioeconômica promovida pelo governo Lula engendrou, e, por outro, pelo temor de não cumprir os prazos requeridos pela Copa e pela Olimpíada que o Brasil em breve sediará, o governo Dilma Rousseff valida e corrobora a visão do Estado brasileiro como um ente incompetente, incapaz de operar com a destreza e expertise que grandes eventos esportivos mundiais demandam, colocando-o, simbólica mas efetivamente, em uma posição hierarquicamente inferior em relação à iniciativa privada. É no mínimo contraditório que tal política seja promovida por um governo que afirma estar ora a realizar uma revolução na – atenção para a significativa apropriação de um slogan marqueteiro tucano - “gestão do Estado”, a qual alegadamente otimizaria a atuação do funcionalismo público e o funcionamento da máquina estatal.

Retornando, em uma perspectiva crítica, às ideias de Sodré, parece necessário reconhecer que, se o apoio militante da mídia aos pressupostos neoliberais mesmo durante os governos Lula e Dilma foi, de fato, um obstáculo de difícil transposição à articulação e à difusão de uma prática discursiva que desse conta do modelo mezzo neoliberal, mezzo pós-keynesiano em vigência em tais administrações petistas – e que colaborasse para aprimorá-lo -, a insistência destas em não confrontarem o establishment neoliberal acaba por evidenciar o esvaziamento ideológico da política que tal recusa promove.

Este é, em si, um dos aspectos mais retrógrados e, a médio prazo, potencialmente mais danosos à evolução do debate público no Brasil, pois ao invés de avançar em direção contrária e para além do conteúdo programático neoliberal, os setores ditos progressistas e de centro-esquerda ora no poder preferem mimetizar o conservadorismo, endossá-lo e com ele se confundir, correndo o risco de, ao tornar-se ideologicamente indistinguível aos olhos dos eleitores, abrir caminho para a oposição conservadora.


Retrocesso conservador
Com a privatização, o governo Dilma, além de fortalecer tremendamente a posição da mídia corporativa, fornece subsídios que revalidam a posição a priori falaciosa daqueles que acham que há mínimas diferenças entre os métodos e estratégias tucanos e petistas e que a disputa entre PT e PSDB não passa de uma luta pelo poder, sem um verdadeiro embate de conteúdos programáticos, ideologias e propostas, e dos muitos que consideram que falta à aliança petista coragem e/ou vontade política para assumir uma posição político-ideológica, difundi-la e defendê-la, como forma de promover o avanço da cidadania e das lutas político-sociais.

Reforça e acelera, ainda, a impressão - perceptível desde a votação de Marina Silva no segundo turno presidencial e hoje fácil e amplamente detectável - de que é necessário superar o (para alguns, falso) binarismo "petismo versus peessedebismo" e buscar uma terceira opção que resgate e assuma, de forma clara e como tais, valores da esquerda. Basta uma mínima dose de realismo político para se aperceber que, na atual configuração político-eleitoral, tais premissas, por não apresentarem a mínima possibilidade de viabilização eleitoral no curto e médio prazo, significam, em última análise, o fortalecimento das forças conservadoras. Pois o retrocesso privatista ora promovido pela "centro-esquerda" no poder agrava e acelera fissuras em seu próprio campo e, às vésperas dos pleitos municipais e em um momento em que ela encontra-se muito fragilizada, dá aval ideológico-programático a demandas históricas da oposição conservadora.

Assim, parece mais do que justificado que muitos – entre os quais este blogueiro – recebam com ceticismo, desalento e temor o retorno à privatização ora levado a cabo pelo governo Dilma.

Um pensador cujas ideias, embora sob intenso bombardeio há um século, a realidade teima, de quando em quando, em revalidar, afirma que o passado só se repete como farsa. Oxalá esteja, uma vez mais, certo. Mas, dado os resultados sociais da privatização no Brasil e no mundo, nos últimos 25 anos, parece lícito questionar a necessidade de tais medidas neste momento e arguir se não estaria o governo Dilma dando um perigoso – e talvez irreversível - passo atrás.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dilma em Cuba

A visita da presidente Dilma Rousseff a Cuba, embora oficialmente priorize o incremento das relações comerciais entre os dois países, traz consigo uma forte e incontornável carga simbólica, a qual a mídia trata de manipular de acordo com seus próprios interesses político-ideológicos.

Dentre tantos exemplos possíveis, uma demonstração cabal de como se dá tal processo foi dada na abertura do Jornal das 10 - principal programa noticioso da mais ideologicamente carregado dos veículos jornalísticos da TV brasileira, a Globo News.

Na edição de ontem, logo após anunciar a viagem de Dilma a Cuba e o alegado objetivo comercial da empreitada, Eduardo Grillo, o âncora do telejornal, sublinhou: “mas as atenções estão voltadas para como Dilma tratará os direitos humanos na ilha” (cito de memória: as palavras talvez não tenham sido exatamente estas, mas o sentido era esse).


Fala a Anistia Internacional
Do jornalismo espera-se fidelidade aos fatos, e não culto às mitologias. E o fato, como notado pelo notável jornalista que é Lúcio de Castro, é que a Anistia Internacional, “que de forma alguma pode ser apontada como conivente com Cuba, (muito pelo contrário)”, atesta, em parece emitido em abril de 2011 e divulgado em três idiomas em seu site, que “no continente americano, o país que menos viola os direitos humanos ou que melhor os respeita é Cuba”.

Isso não que dizer, evidentemente, que as violações dos direitos humanos na ilha, por serem, segundo a Anistia Internacional, menores do que na grande maioria dos países da região, devam ser toleradas. Evidencia, no entanto, que a imagem de Cuba como a violadora-mór de tais direitos é falsa e expressa, em última análise, o ódio dos que não se conformam com a perpetuação de um enclave socialista no quintal dos EUA e num mundo bovinamente regido pelas regras ditadas pelo grande capital.

Tem mais: “o mesmo informe dá conta de que 23 dos 27 países que votaram por sanções contra Cuba por violações dos direitos humanos são apontados pela própria Anistia como violadores muito maiores do que Cuba nos direitos humanos”.  Acrescente-se que, ao contrário do que ocorre em Cuba, há crianças de rua nesses países e a educação e a saúde são, em geral, historicamente precárias. Sem falar no fato que o socialmente cruel boicote a Cuba – este sim uma violação flagrante de direitos humanos – foi convocado e praticamente imposto pelo mais belicoso dos países.


Fatos para quê?
Ocorre porém que o jornalismo que as corporações comunicacionais ora praticam no Brasil não está nem aí para os fatos.  Se com estes se ocupasse, se empenharia em exigir declarações sobre direitos humanos dos mandatários brasileiros em viagens aos EUA de Abu Ghraib, dos voos secretos, das prisões e torturas terceirizadas, dos genocídios no Oriente Médio, de Guantánamo (o monumento aos direitos humanos que o presidente Obama ia fechar e cuja foto ilustra este post).

Ou, para ficar em um exemplo bem mais próximo: se tivesse um pingo da ética e do “padrão Globo de qualidade” que vive a alardear, a Globo News não só teria fornecido uma cobertura condizente das gravíssimas violações de direitos humanos praticadas pela PM paulista, em Pinheirinho, sob as ordens de Geraldo Alckimin, como a esta dissimulada figura pública estaria dirigindo suas questões acerca de direitos humanos.

(Como sabemos, o que tem acontecido no canal é exatamente o contrário, da cobertura omissa da brutalidade da polícia e do Estado contra civis à tentativa antidemocrática e antijornalística de Mônica Waldvogel de calar as vozes que as denunciam.)


Tiro pela culatra
O esforço da mídia brasileira para pautar a viagem oficial de Dilma foi enorme (como pode-se facilmente conferir pesquisando as  tags “Dilma Cuba Direitos Humanos” no Google), mas acabou virando-se contra o feiticeiro. As declarações feitas hoje pela presidente na ilha equivalem, no âmbito da política externa, aos irrespondíveis jabs verbais que desferiu contra o senador Agripino Maia (DEM-RN), quando este a acusou de mentir sob tortura.

Após, através da menção a Guantánamo, aludir às violações dos EUA aos direitos humanos, Dilma fez a seguinte declaração sobre o tema: 
- Quem atira a primeira pedra tem telhado de vidro. Nós, no Brasil, temos o nosso. Então, eu concordo em falar de direitos humanos dentro de uma perspctiva multilateral. Não podemos achar que direitos humanos é uma pedra que você joga só de um lado para o outro. Ela serve para nós também.
Alguns vão achar, com razão, que falar não basta. Mas é preciso reconhecer que as palavras da presidente puseram a nu a falácia e o descritério dos direitos humanos seletivos comumente adotados pela mídia no Brasil.


(Foto de Guantánamo retirada daqui)

domingo, 29 de janeiro de 2012

A democracia segundo o Estadão

À medida em que as eleições deste ano se aproximam, vai se tornando evidente que a mídia corporativa tende não apenas a continuar sua campanha em prol do demotucanato, mas a atuar efetivamente como oposição, seja através da abordagem editorializada dos fatos políticos, seja por meio das opiniões e análises que emite.

Editorial publicado hoje pelo Estadão é exemplar desse processo em que busca influenciar o eleitor e se credenciar como fornecedora de suporte ideológico das forças políticas que apoia. Até agora o mais incisivo artigo opinativo sobre as eleições na capital paulista (e sua relação com os cenários municipal e estadual), o texto transcende os limites da opinião jornalística para transformar-se numa verdadeira chamada à ação da oposição ao petismo.

Já o título do artigo ("Hoje a capital, amanhã o estado") traz implícita a referência a um indesejável acontecimento  potencial, a uma ambição futura - em uma palavra, a uma ameça. Em suas linhas finais, tendo ficado explícita que tal ameaça é a eventual vitória de Fernando Haddad (PT/SP) no pleito paulistano, o Estadão deixa qualquer escrúpulo de lado e convoca os demotucanos à ação: "Se existe uma oposição no País, está na hora de seus líderes pensarem seriamente nisso. E agir".

E por que a escolha democrática do candidato petista pelos eleitores paulistanos se afigura tão temível para o Estadão? Após uma ginástica verbal das mais hercúleas, o editorialista do jornal, em um período que resumo todo o artigo, revela a lógica (sic) que justifica (sic) seus temores: "Um dos fundamentos do regime democrático é a possibilidade de alternância no poder no âmbito federal, que está ameaçado pela perspectiva de o lulopetismo estender seus domínios ao que de mais politicamente significativo ainda lhe falta: a cidade e o Estado de São Paulo".

Vamos por partes: em, primeiro lugar, é no mínimo curiosa (e no máximo desonesta intelectual e jornalisticamente) a operação que procura restringir ao âmbito federal o revezamento no poder como algo que seria imprescindível à democracia, deixando estados e municípios de fora. Desprovido de racionalidade ou lógica, tal estratagema traz à tona o casuísmo e o maniqueísmo torpe da premissa.

Estes se tornam ainda mais evidentes quando se leva em conta que, não por coincidência, o PSDB e o DEM - partidos com os quais a imprensa paulista de ordinário se alinha - estão no poder há duas décadas no estado e (com exceção da administração Marta Suplicy) no município. Por outro lado - e com o perdão pela obviedade - é também significativo que o inimigo que o jornalão quer combater - a aliança partidária federal capitaneada pelo PT - encontra-se, graças a livre escolha popular, pela terceira vez consecutiva a cargo da administração federal.

Para além do raso proselitismo partidário que, disfarçado de opinião bem-intencionada e fundamentada, perpassa o artigo, é a própria premissa central  do texto que não se sustenta. E por dois motivos: primeiro, porque não há, efetivamente (nem haveria, com a eventual vitória de Haddad em São Paulo), nenhum obstáculo à possibilidade de alternância do poder no âmbito federal. Pois havendo eleições, há tal possibilidade.

Segundo, porque o que interessa efetivamente ao jornal difundir - que tal alternância é um bem em si mesma, que é necessária pois constituiria prova de democracia sadia, e que estaria ameaçada por novas eleições que mantivessem (ou, nos âmbitos municipal e estadual, colocassem) o PT no poder - não passa de wishful thinking da plutocracia midiática paulista (e das forças políticas que apoia).

Pois, ao contrário do que afirma o editorial de hoje do Estadão, a ocorrência de revezamento no poder não é, necessariamente, uma qualidade da democracia. A ciência política contemporânea substituiu essa premissa factual, descontextualizada e restrita às cores partidárias dos mandatos políticos por critérios mais objetivos e ligados à concepção, estruturação e aos modos de exercício da democracia eleitoral. O que se deve observar é, segundo tal escola, se as eleições são limpas, se são disponibilizadas informações suficientes ao eleitor (no que se refere à atuação governamental e da oposição e ao funcionamento da própria eleição), se a Justiça Eleitoral funciona, se a mídia é pluralista, desconcentrada e mantém um bom grau de independência em relação ao poder político-econômico, se há livre fiscalização internacional dos pleitos, se os mecanismos de voto e de apuração são confiáveis e a vontade do eleitor é soberana, entre outros quesitos. Cumpridas tais exigências, é perfeitamente lícito e democrático que se decida por manter uma determinada força político-partidária no poder por quantas vezes os eleitores decidirem.

Porém, no afã de sacar do poder as forças contra as quais se coloca, a grande imprensa - numa postura que contraria a deontologia básica do jornalismo - não se limita a servir de linha auxiliar dos partidos que apoia, ecoando o denuncismo vazio que, na falta de um projeto para o país, vem praticando na última década. Em estágio pré-falimentar e contaminada pelo desespero serrista, a plutocracia midiática paulista vai mais além: ousa querer ditar regras e criar mitos que venham a condicionar a democracia brasileira, de modo a distorcê-la e, em decorrência, inibi-la. Não passarão!


(Imagem retirada daqui)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O retorno de Lula

Em uma semana em que a violenta ação da PM paulista no Pinheirinho concentrou a atenção - e a justa indignação - de tantos brasileiros que ainda preservam um sentido de honra cívica, passou relativamente despercebida a retomada da agenda pública por parte do ex-presidente Lula. Trata-se, porém, de um retorno repleto de significações.

A viagem a Brasília para a posse dos novos ministros da Educação (Aloizio Mercadante) e da Ciência e Tecnologia (Marco Antonio Raupp), para a qual o ex-presidente pediu autorização médica, se deu em pleno tratamento contra o câncer (do qual recebeu 16 das 33 sessões diárias de radioterapia previstas), o que não apenas demonstra seu empenho pessoal em participar do evento, mas evidencia uma certa urgência em fazê-lo.

O retorno voluntário de Lula cumpre uma tripla função: em primeiro lugar, ao corroborar as escolhas ministeriais de sua sucessora, ser por ela homenageado e, de novo visual, a seu lado fotografado, mina a estratégia da mídia corporativa de desvincular Dilma de seu antecessor e padrinho político - estratégia esta que atingiu o ápice na semana passada, com as pesquisas de aprovação popular de Dilma recebendo um tratamento altamente editorializado. Neste, dez entre dez matérias jornalísticas fingiam desconhecer que o bom resultado da atual presidenta em seu primeiro ano como mandatária correlaciona-se, em larga medida, à herança lulista, assim como o não tão bom resultado do primeiro ano da Presidência de Lula refletia a crise herdada da administração FHC.

A segunda - e principal - função da aparição pública de Lula é chamar a atenção pública para o ex-ministro da Educação Fernando Haddad, prestigiando-o e saudando o seu legado. Como se sabe, Lula tem sido, mais do que um fiador, um lutador pela candidatura de Haddad à Prefeitura de São Paulo. Confia, certamente, em um legado administrativo marcado não apenas pela revalorização da educação e dos educadores e na expansão física e multiplicação de unidades universitárias e de ensino técnico, mas numa vultosa - e inédita - política de inclusão educacional que quebrou barreiras classistas e raciais. 

É fato que, numa perspectiva nacional, a excelência do legado de Haddad está, no atual governo, sendo maculada pela constatação de que Dilma não está efetivamente honrando o reiterado compromisso de priorizar a educação, com o contingenciamento excessivo de verbas adiando a contratação de professores qualificados para as universidades federais, cujas novas unidades (e no âmbito do ProUni) dependem hoje, em larga medida, de professores substitutos ou temporários, com qualificação inferior e aviltantes contratos de trabalhos. Porém é incerto que a mancha de tal retrocesso repercuta em âmbito municipal e respingue no candidato Haddad.


Como corrobora a visita que fez, no mesmo dia, ao ator Reynaldo Gianecchini (que também se encontrava em tratamento contra câncer no mesmo hospital), o terceiro objetivo de Lula parece ser justamente criar fatos que o permitam, não obstante a má vontade midiática, manter-se em evidência. Trata-se de uma ação calculada, pois a mídia corporativa, de forma geral, desde o fim do seu governo demonstra o pendor de relegar o ex-presidente a uma espécie de ostracismo jornalístico temperado de maniqueísmo - ou seja, destacando o negativo e relegando os aspectos positivos legados por sua administração. O recolhimento a que Lula se viu obrigado para tratar da saúde acabou facilitando tremendamente tal estratégia.

Mas o recreio chegou ao fim: Lula, um mestre da comunicação política, está de volta à ribalta. Em decorrência, a campanha eleitoral de 2012  - que se afigura de alta relevância para o xadrez presidencial de 2014 -, agora sim, indubitavelmente começou.


(Foto cabeçalho: Ailton de Freitas/Fonte. Foto com Gianecchini: Ricardo Stuckert/Fonte)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Violência mostra esgotamento do modelo policial


Em um intervalo de dois dias a polícia militar protagonizou cenas de brutal violência em três diferentes estados brasileiros: em Teresina (PI), a repressão aos jovens que protestam contra o aumento da passagem dos ônibus municipais reviveu cenas típicas de ditaduras, com a polícia do governador Wilson Martins (PSB) e do prefeito Elmano Férrer (PTB) demonstrando despreparo e sadismo, como pode-se constatar no vídeo abaixo.


O impasse, que completa uma semana, é grave e crescem os relatos de agressão gratuita por parte das forças oficiais (sendo que um policial declarou lamentar estar de folga justamente no dia em que seus companheiros de corporação “quebraram os estudantes”).

Os episódios de hoje prefiguram um massacre com mortes que certamente ocorrerá caso não se intervenha, com bom senso, na situação.

Na menos difundido dos episódios, Vitória (ES) foi palco hoje de mais violência oficial – de novo, contra manifestantes que protestavam contra aumento das tarifas dos coletivos. Trata-se da repetição - por enquanto em menor escala - do tipo de episódio violento que teve lugar há seis meses na capital capixaba, sem que o resto do país tenha se dando conta de tais abusos. Na ocasião, os estudantes reagiram à violência com uma bela e pacífica manifestação.

Há dois pontos em comum entre as manifestaçõess de Teresina e de Vitória:
  1. Demonstram que, ao menos para parcelas da população, os sucessivos aumentos de preços, que vêm disparando desde o final do governo Lula e tornam a inflação não-oficial (mas real) incomensuravelmente maior do que a oficial, tornaram-se insuportáveis – e a um ponto tal que há disposição para correr riscos físicos na luta para evitá-los
  1. Em ambos, a mídia corporativa dos dois estados faz vistas grossas à violência - chegando a omiti-la - e tanto apoia o aumento das passagens quanto procura legitimar a ação policial.
Por fim, há a São Paulo demotucana, onde a violência policial é tão rotineira quanto os congestionamentos e os altos índices de poluição do ar, e que, nesta semana, vem oferecendo tal triste espetáculo em dose dupla: na despropositada ação policial na USP (que propiciou mais uma evidência de racismo e despreparo da PM paulista) e na populista e agora oficialmente suspeita repressão à Cracolândia.



Repensar o modelo
Esses três graves episódios, em pontos diferentes do Brasil, evidenciam, uma vez mais, a necessidade de repensar o modelo de ação policial no país. As polícias militares que a ditadura legou à sociedade civil já deram mostras mais do que suficientes de que não combinam com uma moderna sociedade democrática, a qual o Brasil aspira ser.

É um fato que os policiais são mal pagos e mal treinados – e que se faz, com frequência, uso politico (e politiqueiro) das forças policiais. Mas tais constatações já não são suficientes para consubstanciar uma plataforma de mudanças sem que se altere o atual modelo, pois as PMs, por sua própria história e natureza corporativa, têm reincidindo no vício da truculência e do encobertamento. As pesquisas sobre a visão que a população tem das forças policiais corrobora que, aos olhos de quem deveria servir e proteger, é essa a denegrida imagem que hoje a PM desfruta.

Não se pode ficar preso eternamente a esse paradigma. As reformas, para um dia o Brasil ter forças policiais que combinem efetividade no combate ao crime com imagem positiva com a população, estabelecendo uma relação baseada na confiança e no trato civilizado, têm de ser, necessariamente, profundas.

A democracia, paradoxalmente, ao requerer a manutenção da violência nas mãos do Estado, impinge que as forças policiais não sejam privatizadas (o que, de resto, não seria minimamente desejável) e continuem sob o comando das autoridades eleitas. Isso não impede, no entanto, a sua urgente desmilitarização e profissionalização

É preciso, o quanto antes, planejar e executar meios para promover a transição entre as polícias militares e uma nova corporação profissional não-militar e com uma formação profissional que inclua não apenas o necessário preparo para as situações de confronto, mas uma formação humanística que assegure um comportamento de acordo com os tratados de direitos humanos dos quais o país é signatário.

Trata-se de uma tarefa de décadas, mas que o Brasil precisará executar se pretende realmente um dia ser, de fato, uma democracia avançada.


(Foto de Breno Cavalcanti retirada daqui)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A indiazinha e a blogosfera

Não há dúvidas de que a situação dos índios no Brasil - e, a bem da verdade, em boa parte do mundo - é periclitante. Objetos de um extermínio continuado, vítimas de preconceito, os povos que originalmente habitavam nossa terra, mesmo quando já na situação de isolamento e extinção em que ora se encontram, jamais puderam usufruir efetivamente dos direitos que as novas legislações lhes asseguram.

Suas terras são com frequência invadidas e saqueadas, e se tornaram rotineiros os casos de enfrentamento armado, emboscadas e assassinatos. Na briga surda entre progresso e natureza, entre o grande capital versus a preservação dos povos indígenas, a demarcação de suas reservas recua cada vez mais e a mortandade de suas crianças ostenta índices assustadores.

Embora o grosso da sociedade brasileira possivelmente desconheça essa realidade - e efetivamente não esteja nem aí para a questão indígena -, esse quadro de penúria tem despertado a atenção dos setores mais avançados, notadamente entre jovens, ecologistas e defensores dos direitos humanos.

Assim, causou naturalmente comoção a notícia de que uma criança de oito anos, da tribo dos awá, teria sido queimada viva por madeireiros, no Maranhão. A crueldade de tal ato, o sadismo, o sofrimento que teria sido impingido à vítima geraram uma reação em cadeia nas redes sociais e na blogosfera.

Não obstante tal fenômeno evidenciar uma saudável capacidade de se indignar e protestar, ele acabou dando margem a versões fantasiosas, sem bases em fatos, que chegaram a mencionar a identificação do corpo carbonizado e a descrever o prazer sádico dos madeireiros ao praticar tal ato.

Isso, por sua vez, deu margem a uma exploração maniqueísta do que era, até então, apenas um boato - exploração esta que, no mais das vezes, mal disfarçava sua intencionalidade política: jogar a bomba no colo do governo federal. Assim procedendo, sem nenhuma cautela jornalística, desprezando fatos, apurações e preferindo apostar no pior - tudo por interesses políticos - setores da blogosfera se igualaram à mídia corporativa que tanto criticam,

Ademais, criaram uma situação paradoxal: muitos daqueles que de maneira mais intensa se autoproclamavam defensores dos povos indígenas apostavam no brutal sofrimento de uma indiazinha de oito anos como forma de legitimar seus interesses político-ideológicos (e sua fome pelo brilho virtual efêmero).

Quem, como os blogueiros Luiz Carlos Azenha e  Maria Frô, ousou apontar a carência de fatos, a necessidade de mais evidências e o excesso de prognósticos baseados em ouvi-dizer, só faltou ser linchado nas redes sociais.

Pois bem. Hoje, a Funai divulga um relatório no qual conclui tratar-se de um boato e nega a existência de um corpo carbonizado. É suficiente para se descartar a possibilidade que o assassinato tenha ocorrido? É claro que não. Mas é mais um indício de que não havia - e não há - elementos que comprovem tratar-se de um fato. E, assim como fazemos com a mídia corporativa, seria recomendável que a blogosfera adotasse o pressuposto ético de não se deixar balizar por suposições e boatos, mas tão-somente por fatos.

De forma similar, assim como cobramos da mídia corporativa que admita publicamente seus erros, aguardamos que os setores da blogosfera que se precipitaram e divulgaram uma suposição como se de fato se tratasse - nela baseando seus ataques a outros blogueiros e a determinados entes políticos -, venham a público admitir que se precipitaram.

Isso não tornaria a situação dos índios menos graves nem tiraria o ônus dos poderes responsáveis, mas sublinharia as diferenças éticas entre a blogosfera e a mídia corporativa, que nesse caso por momentos se tornaram indistintas. A aposta no boato e no ouvi-dizer só colabora para o discurso midiático segundo o qual a internet seria um não confiável "território de ninguém" - o que, em decorrência, enfraquece a blogosfera enquanto ente comunicacional.


(Foto de Josefa retirada daqui)


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Cracolândia, Estado e Barbárie

É legítimo que cidadãos cobrem do poder público o direito constitucional de ir e vir. A afirmação acaciana se justifica: no centro de São Paulo, no entorno da Cracolândia, tal direito esteve, na última década, permanentemente ameaçado pela ação de pequenos marginais e de viciados fora de si, capazes de fazer qualquer coisa para saciar a fissura por mais uma pedra de crack.

Não idealizemos, em nome de um pseudo-esquerdismo generoso em liberalidade mas curto em realismo, ora em voga, a figura do viciado em crack: ao contrário do usuário de maconha e mesmo do de cocaína - que consegue, em muitos casos, conciliar o uso mais ou menos frequente da droga e uma vida produtiva -, pesquisas diversas reiteram que o viciado em crack, devido à velocidade de desenvolvimento do vício e do alheamento que o efeito da droga provoca, tende a tornar-se, em pouco tempo, socialmente não funcional, com a capacidade produtiva e os bens materiais sacrificados em nome da busca pela próxima dose.

A formação da Cracolândia foi o reflexo coletivo desse processo individual: grupos cada vez maiores de viciados, sem lar, emprego ou assistência do Estado, juntando-se nas imediações da Estação da Luz e, posteriormente, nos arredores de Santa Efigênia, para comprar e fumar crack, dia e noite.

Os comerciantes e dos moradores da região os designam por "noiados", devido ao fato de que, finda as pedras de crack do dia, saem pelas ruas centrais em bandos, completamente chapados e fissurados por mais uma dose, aterrorizando e assaltando quem quer que se ponha em seu caminho. Quem, como este blogueiro, já vivenciou isso de perto - e não de ouvir falar - sabe que se trata de um deprimente e assustador espetáculo, que evidencia a urgência de se atacar o problema, seja para restituir a dignidade e a cidadania desses dependentes químicos, seja para reassegurar o direito de ir e vir e a integridade física dos demais cidadãos.

Há, ainda, um terceiro motivo para que se encaminhe uma solução aceitável para a questão da cracolândia: a recuperação do centro de São Paulo e sua reinserção no circuito cultural da cidade. Historicamente relevante, com relativamente poucos mas importantes atrativos arquitetônicos, etílico-gastronômicos e culturais - e, a despeito de sua deteriorização evidente, conservando ainda um certo charme -, a região tem um enorme potencial para ser revitalizada e, a exemplo do que aconteceu, em âmbito internacional, com o centro de outras grandes metrópoles, tornar-se atrativo para o público da própria cidade e para o turismo interno e externo.

Portanto, feitas tais constatações, delineiam-se dois pontos defendidos por este artigo: 1) é necessário agir para acabar com a Cracolândia; 2) É legítima aspiração a que a região central de São Paulo volte a ser segura, culturalmente relevante e frequentável inclusive à noite e aos finais de semana.

 Dor e sofrimento
A questão que se coloca é que ambos os processos teriam, necessariamente, de se dar de forma democrática, e com respeito aos anseios, necessidades e direitos todos os cidadãos, inclusive aqueles despossuídos e/ou viciados em drogas.

Não é, obviamente, o que se observa na truculenta ação repressiva desencadeada sob as ordens do governador Geraldo Alckmin (PSDB/SP) do prefeito Gilberto Kassab (PSD/SP). A anunciada tática de impingir "dor e sofrimento" aos viciados, não os deixando sequer dormir ou mesmo descansar, como forma de forçá-los a procurar tratamento é uma flagrante violação dos direitos humanos, cuja gravidade certamente despertará reações internacionais.

Além da costumeira truculência e do menosprezo dos demotucanos pelos pobres e marginalizados, há, nessa estratégia, evidentes objetivos eleitoreiros. Como assinala o blogueiro Chico Bicudo, Kassab "abre o ano eleitoral jogando para a plateia conservadora (que, no caso de São Paulo, não é pequena), abrigada em suntuosos camarotes de luxo, e de onde "observa" a realidade (em geral com empáfia e egoísmo)". Basta uma espiada nas redes sociais para constatar o quanto certos estratos paulistas apoiam entusiasticamente a estratégia "esfola-e-mata" aplicada contra os “craqueiros”.

Mais: embora valendo-se tão-somente da repressão violenta, tal operação não só se adianta ao programa federal de assistência aos moradores de rua - o chamado Consultório de Rua, com equipes móveis -, cuja visibilidade quer apagar, como coloca a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direito Humanos da Presidência da República, em uma saia justa: se cumprir suas funções institucionais e reagir contra as violações praticadas pela operação "dor e sofrimento" ficará com o ônus de ter impedido o combate ao crack na cidade.

Há de se considerar, ainda, as denúncias - reiteradas por dezenas de comerciantes da região central - de que tanto a inação oficial quanto ao inchaço da Cracolândia nos últimos três anos quanto o súbito e brutal ímpeto em destruí-la atendem a interesses específicos que grandes corporações imobiliárias, muito próximas a Kassab, tem na região.

Assim, a ação policial desumana que ora muitos paulistas aplaudem – entusiasticamente ou com um silêncio cúmplice - não só oculta questionáveis estratégias eleitoreiras e suspeitos interesses comerciais, como afigura-se potencialmente ineficaz, dado que - como até policiais envolvidos na operação têm admitido – pode até manter o centro cosmeticamente higienizado, mas tende a espalhar o problema pelos bairros vizinhos, perpetuando-o.


(Foto de Adriano Vizoni, retirada daqui)