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sábado, 23 de julho de 2011

Amy e a sociedade da insatisfação permanente

Ainda que soe chocante tal afirmação, seria inexato dizer que o anúncio da morte de Amy Winehouse surpreendeu as pessoas – as inúmeras e frequentes recaídas, as rehabs mil, e o estado físico e psicológico da cantora sugeriam que esse seria um fim provável, ainda que talvez não se esperasse que ocorresse tão cedo.

Mas o fato choca, é claro, pelo que diz sobre os tempos atuais, sobre a interrogação que nos lança a respeito do que nos transformamos enquanto sociedade, sobre a banalidade da vida em uma era em que o consumo de tudo – bens materiais, drogas, fama, embelezamento artificial – tem de ser intenso e insaciável, mesmo que o preço a pagar seja a própria vida.


Comparações
Nas redes sociais, neste momento, chovem comparações entre a cantora e a tríade de jovens mártires da contracultura formada por Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix – os “meus heróis morreram de overdose” a que se refere Cazuza, outro que cedo nos deixou.

Ainda que as drogas tenham desempenhenhado um papel fundamental em todas essas mortes (incluindo a de Amy, mesmo que a causa mortis venha a ser outra), não parece uma comparação procedente: as mortes dos três músicos dos anos 60 derivam de um mergulho tão desmedido quanto apaixonado num novo modo de vida, anticapitalista, comunitário, em que a primazia do econômico e do racional desse lugar ao cósmico, ao energético, ao intuitivo. E é justamente como meio de intensificação de manifestação destas forças (hoje novamente subvalorizadas) que as drogas - como “expansoras da consciência”, segundo o mote do “papa do LSD”, Timothy Leary -, tiveram então um papel central.



The dream is over
A tragédia maior da morte da tríade de músicos deriva, portanto, justamente da desmistificação não só do poder social das drogas, mas, em um nível muito mais profundo, da evidência da inviabilidade do projeto contracultural de transformação do mundo que Janis, Jimi e Morrison representavam.

“O sonho acabou”, decretaria John Lennon algum tempo depois, relegando os anos 60 – que o crítico neomarxista Fredric Jameson definiu como um período marcado por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural” - a objeto de culto de jovens de todas as idades, saudosos do que não viveram.

Porém, ainda que os neocons torçam o nariz e que os mais sensíveis se espantem com a comercialização de camisetas de grife com a face de Che Guevara estampada, o legado dos anos 60 permanece como força ideológica e política, como eventos tão díspares como a campanha presidencial de Obama e as novas relações trabalhistas adotadas por algumas das mais avançadas e bem-sucedidas empresas do mundo o demonstram.


Sob a marca do efêmero
O triste fim de Amy Winehouse, cantora de talento evidentíssimo, voz e técnica vocal únicas e excepcional presença de palco, pertence a outro âmbito, o do niilismo e da falta atual de perspectivas, no marco da passagem de “de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada”, na qual, ante a satisfação de um desejo, a recompensa do ego é tão fugaz que, mal consumado, outra demanda é imediatamente colocada, e assim sucessivamente – como diagnostica Vladimir Safatle, em sua releitura de Lacan. Amy, vida e morte, é só a parte visível de um amplo e preocupante fenômeno, cuja principal vítima é a juventude.

Deriva dessa toada a talvez mais chocante constatação ante a morte da cantora: faz só oito anos que, discretamente, o álbum Frank foi lançado, e três que o sensacional Back in Black chegou às lojas, transformando-a definitivamente em um fenômeno midiático, arrebatando legiões de fãs e fazendo com que seu visual fosse copiado por adolescentes de todo o planeta.

Talvez seja por isso que, embora Amy Winehouse nos deixe aos 27 anos de idade, a impressão é a de que morre uma adolescente. O que traz toda a sensação de desperdício e de necessidade de reflexão social que uma tal perda acarreta.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Meia-noite em Paris, meio-dia na alma

A fase internacional de Woody Allen, que se inicia com o thriller classudo Match Point, logo após uma trilogia de filmes que representou o ponto mais baixo de sua carreira, evidencia, a um tempo, uma capacidade única de abordar com leveza e humor temas universais e, a despeito de seu cosmopolitismo – ou justamente por causa dele-, uma percepção aguda e irônica das particularidades dos locais-temas de suas novas produções, sejam Paris, Barcelona (Vicky Cruistina Barcelona) ou Londres (além de Match Point, a subvalorizada comédia Scoop e o surpreendente Você vai conhecer o homem dos seus sonhos).

Com seu novo filme, Meia-noite em Paris, ocorre, porém, algo mais: como evidenciam os deslumbrantes cinco minutos iniciais – compostos de tomadas plásticas da cidade-luz, de dia, à noite, de grandes bulevares e de pequenas vielas, de cartões-postais e de endereços anônimos, sempre sob um jazz orquestral dos anos 20 – a cidade de Paris é a principal personagem do filme.

Para dar conta de tão fascinante tema, o diretor promove uma incursão estética, sentimental e cultural à capital francesa, em diálogo, a um tempo, com a riqueza de seu passado e com a unicidade de seu fascínio eterno.

Para tanto, a exemplo do que fizera em Rosa Púrpura do Cairo e em Desconstruindo Harry, o diretor novaiorquino vale-se do fantástico. Pois, a partir do momento em que um escritor californiano em crise, Gil (um surpreendentemente sóbrio Owen Wilson), perdido e ébrio numa madrugada parisiense, embarca num calhambeque Peugeot, é transferido para o passado dos seus sonhos, onde passa a conviver com Scott Fitzgerald, a disputar o amor de uma parisiense com Hemingway, a ter seus escritos revistos por Gertrude Stein e a manter diálogos surreais com os jovens Man Ray, Buñuel e Dali (papel no qual Adrien Brody quase rouba a cena, confirmando o grande ator que é).

Ao contrário do que ocorre com alguma frequência em se tratando de Woody Allen, as piadas de Meia-noite em Paris não soam como sketches postiços adaptados à trama, mas retiram sua graça de elementos a ela próprios (como quando Gil sugere a Buñuel um filme no qual os personagens, convidados para um jantar, não conseguissem deixar a casa do anfitrião – sugestão a qual o futuro diretor de O Anjo Exterminador reage com atônita perplexidade).

Woody confirma, uma vez mais, seu incrível faro para boas atrizes no auge do sex appeal, habilidade que se evidenciara em sua carreira diversas vezes antes, com Mira Sorvino em Poderosa Afrodite, com Charlize Theron em Celebridades, Drew Barrymore em Todos dizem eu te amo e, sobretudo, com Demi Moore e Elisabeth Shue em Desconstruindo Harry. Em Meia-noite em Paris a escolhida é Rachel McAdams (de Sherlock Holmes e Díário de uma paixão), a fútil e esnobe noiva de Gil, a quem a câmera enfoca com avidez fetichista, incluindo uma tomada politicamente incorreta para flagrar o derrière da moça e seu rebolado ao caminhar.

Item sempre em destaque nos filmes de Woody, a música, onipresente, é quase uma protagonista a mais em Meia-noite em Paris. Seja no interior da trama (diegética), com Cole Porter ao piano ou Josephine Baker cantando, seja na trilha sonora que vai de Lucienne Boyer a charlestons; nos típicos acordeons da música popular francesa, em guitarras que promovem uma fusão do flamenco com o jazz, ou nas versões solo e orquestrais deste, a impressão que se tem é de uma seleção refinada do melhor da música produzida na Paris do início do século XX, em diálogo, contraponto ou reforço com o universo das imagens.













Em relação a estas, os que ainda alimentavam saudades do grande Carlo Di Ponti, responsável pelos filmes melhor fotografados de Woody – incluindo Todos dizem eu te amo, primeira incursão do diretor novaiorquino por cenários parisienses – têm agora um motivo de alento: a direção de fotografia do iraniano Darius Khondji (A Praia; Delicatessen; Beleza Roubada) dialoga com a tradição pictórica francesa e aposta em cores quentes – laranja e amarelo, notadamente - para a iluminação de rostos e corpos, de forma a destacá-los de um segundo plano escuro e”frio”, com tons predominantes de marrom e verde. O resultado é uma sinfonia visual de alto nível, que atinge seu ponto mais alto na ronda noturna de Gil e da musa dos vanguardistas Adriana (Marion Cottilard, cuja atuação é irregular).

Meia-noite em Paris é um filme para ser visto de bem com a vida, de preferência a dois, para, tal qual os personagens no filme, sair do cinema e continuar vivendo a atmosfera de romantismo e efervescência que Paris evoca e que contagia a todos na tela.


(Imagens retiradas,m respecrtivamente, de 1, 2, 3, 4, 5, 6)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Crise na Europa: alerta para Dilma

A expansão e o agravamento da crise econômica na Europa, com desemprego galopante, recrudescimento da xenofobia e perspectiva de caos social ante os efeitos do receituário neoliberal deveriam servir, no Brasil, como um alerta aos rumos do governo Dilma Rousseff.


Capitalismo midiático
A mídia corporativa permanece atrelada ao projeto neoliberal ao qual aderiu desde que o muro de Berlim ruiu, numa aliança que transcende qualquer fervor ideológico e encontra sua justificativa no fato de o receituário derivado do Consenso de Washington priorizar a multiplicação do capital em detrimento do atendimento a demandas sociais. E mídia e capital, nos dias de hoje, fazem parte de uma simbiose cuja finalidade principal é o acúmulo de poder e de divisas.

Esse posicionamento da mídia gera vicissitudes significativas, impeditivas do exercício do bom jornalismo: em termos de cobertura internacional, significa uma chancela ao receituário recessivo, defensor do Estado mínimo, forjado pelo neoliberalismo, bem como o esforço para desqualificar entes políticos que neste não se enquadrem ou a ele se oponham.


Vozes do mercado
A cobertura que a Rede Globo tem fornecido em relação à crise na Grécia é altamente ilustrativa a esse respeito: o povo, a protestar violentamente nas ruas contra o que entende como uma afronta a seus direitos, é tratado como um ingênuo: "Será que eles sabem o que vai acontecer se a Grécia der o calote?", pergunta Leilane Neubarth, antes de um daqueles seres engravatados e seriíssimos que personificam o mercado assegurar que, independentemente da decisão do parlamento grego (que a semana passada aprovou o tal plano econômico) os bancos e o FMI já haviam se decidido a "ajudar a Grécia". Trata-se de uma "ajuda" que reduz em dois terços as aposentadorias e viola direitos constitucionais, mas isso não é mencionado.

Agora é Portugal quem tem seus títulos da dívida pública rebaixados, por uma agência de classificação de risco, para a categoria “junk” – ou seja, lixo, na tradução sem hipocrisia de Rodrigo Viana. Embora noticie com gravidade tal rebaixamento, a mídia corporativa, uma vez mais, deixa de fazer sua obrigação e “se esquece” de questionar o porquê dessas mesmas agências não terem previsto a crise das hipotecas nos EUA, que levou tantos investidores à bancarrota e está no cerne da presente crise econômica mundial, e nem porque os próprios EUA, que há dezenas de meses não conseguem sair do buraco em que se meteram, a despeito de um estrilho teatral, continuam a receber bons graus de investimento.

A mídia não o faz, desnecessário dizer, porque tanto quanto tais agências de classificação de risco são uma criação do próprio mercado financeiro - em aliança com os países ricos -, para imposição de seus próprios ditames, os meios de comunicação se transformaram, nas últimas décadas, em correia de transmissão do financismo internacional, instrumentalizado para, como observa Muniz Sodré, naturalizar, difundir e assegurar a hegemonia da economia neoliberal de mercado.


Outro mundo é possível?
Enfrentar os grandes grupos de mídia e buscar soluções que preservem direitos humanitários para a crise de endividamento de economias nacionais, contrapondo-se assim à ditadura do pensamento único que as corporações financeiro-midiáticas tentam impingir, são, portanto, medidas imprescindíveis na agenda da esquerda mundial.

É preciso levar em conta tais fatores para contextualizar corretamente a decepção que o governo Dilma vem causando a setores cada vez mais volumosos da esquerda brasileira. Pois, herdeira e continuação de um governo que, em plena crise econômica mundial, ousou ir na contramão e postar na expansão do crédito, na ampliação dos programas sociais e no fortalecimento do Estado, esperava-se da mandatária que comandasse, tanto no contexto nacional quanto no âmbito de sua liderança internacional, o aprofundamento de um modelo alternativo ao neoliberalismo.


Promessas ao léu
Trata-se de uma possibilidade perdida, pois o que se vê, de fato, é uma inação condescendente aos desígnios do mercado, traduzida em uma série significativa de incompatibilidades entre promessas e ação:

  1. Ao contrário do que foi prometido em campanha, sacrifícios no orçamento para atingir superávits tão volumosos quanto desnecessários;
  2. Ao contrário do que foi prometido em campanha, a volta das privatizações, agora acompanhada da moda – estranhíssima em uma democracia – dos contratos sigilosos;
  3. Ao contrário de uma campanha que prometia prioridade à educação, a contenção de despesas relativas às novas universidades federais, abastecidas de professores temporários com salários de substitutos e direitos trabalhistas precários, ao invés dos mestres e doutores que estudaram anos e anos para cumprir tal função;
  4. Diferentemente do prometido em campanha (e exaustivamente repetido pelo ministro Paulo Bernardo), um PNBL fajuto, feito com internet móvel “onde não for possível instalar internet fixa” e sem possibilidade efetiva de controle (e punição em caso de não-cumprimento do previsto) por conta do governo. Ou seja, perfeitamente de acordo com as premissas que os neoliberais adoram: tudo na mão da iniciativa privada e sem possibilidade de intervenção do Estado.

Governo de centro-esquerda?

Nesse cenário, Dilma Rousseff permanece impassível enquanto a oposição e os setores mais conservadores da mídia praticam o costumeiro jogo de derruba-ministros. O que muitos vêem de forma positiva, como uma postura cool e finamente discreta da presidente, tem, na verdade, gerado um vácuo e um silêncio que vêm sendo espertamente ocupados por vozes do mercado financeiro, que voltaram a ter, hoje em dia, o protagonismo midiático do qual desfrutaram até o final do primeiro governo Lula.

Ou seja, a hegemonia discursiva já está de novo na mão do neoliberalismo - resta saber, levando em conta que setores crescentes do funcionalismo público acenam com protestos e greves, se e o que Dilma vai fazer quando a insatisfação crescente dos que a apoiaram vier à tona: se dizer a que, enfim, o seu governo alegadamente de centro-esquerda veio, ou fechar com o conservadorismo velho de guerra que deu o tom de seu primeiro e decepcionante semestre à frente do país.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Voltamos a ser um país engraçado

Uma das mudanças mais perceptíveis no governo Dilma é que o Brasil voltou a ser um país engraçado. Na era Lula, com os 35 milhões retirados da pobreza e a ascensão visível de uma nova classe média, com o Pré-sal, as Olimpíadas e a Copa, aquela tendência tão nossa de apelarmos para o cômico como forma de sublimar nossas mazelas parecia ter mitigado.

A maledicência contra o país, a certeza da superioridade do primeiro mundo (encarnada no anacrônico Manhattan Connection), o culto à vergonha de ser brasileiro pareciam, enfim, restritos à mídia corporativa que sempre os cultivou.

Uma nova possibilidade de país parecia se desenhar à nossa frente, permitindo que nos livrássemos de vez do que Nelson Rodrigues chamou de nosso “complexo de vira-latas” e, destarte, abrindo mão do subterfúgio da ironia.

Comunista ruralista
Agora, não. Votamos a ser um país tão engraçado que temos até um comunista ruralista! - e que consegue a façanha de relatar um Código Florestal em que as principais vítimas são justamente as florestas.

O debate mais hilário a assomar à arena pública talvez tenha sido o fuzuê sobre o tal livro didático. Foi (tem sido) muito engraçado ver gente que se esmera obsessivamente para escrever corretamente, fiel à norma culta, defendendo, por fanatismos políticos, que seria correto cunhar “os livro” e “nóis fumo”. O dia em que essa gente for coerente com suas ideias e passar a escrever desse tal jeito, como defende que seja certo, aí dará para levar a sério seus argumentos.


Risonhas leniências
Mas o que há de mais engraçado nesse risonho Brasil atual é, na minha opinião, a argumentação da turma que defende Palocci. “Qual é o crime?”, perguntam teatralmente, “Ele declarou tudo à Receita Federal!”, atenuam, como se fosse normal que um sujeito que saiu pelas portas do fundo da vida pública ganhasse em um ano dezenas de milhões de reais, grande parte durante a campanha eleitoral – em que, como membro central da equipe da candidata vencedora, tinha livre acesso a dados sigilosos da economia.

Ora, distraídos indignados, o crime do qual se suspeita é de tráfico de influência, e em qualquer país sério do mundo o acusado, em tais circunstâncias, se licenciaria do cargo para comprovar sua alegada inocência, ao invés de levar o governo (quero dizer, as florestas e os gays) às cordas.


Amarga ironia
Os gays? Ah, sim, pois o Brasil tornou-se uma república tão histriônica que até a presidente, do alto de seu cargo, se dispõe a vetar pessoalmente desenhinhos animados educativos porque eles poderiam ferir a sensibilidade moral de um poderoso grupo de religiosos. Religiosos cuja moral, quando se trata de poder e capital, é bem menos sensível.

Exemplos como o acima deixam claro que o retorno do Brasil à categoria de país engraçado não produz como efeito nem aquele riso solto e espontâneo - estilo Ronald Golias no auge - nem aquele sorriso de sagacidade malandra suscitado pelas crônicas de Aldir Blanc. Numa era em que até os humoristas, num surto arrivista de autopromoção, adotam temas como estupro e campos de concentração, o Brasil destila um humor do tipo “rindo pra não chorar”, tragicômico, que pode vir a se tornar uma não-ironia abissal quando se constata que o atual governo fora eleito, sobretudo, para dar continuidade àquele país promissor da Era Lula.

Aí é que nos damos conta de que, no risonho Brasil atual, os palhaços somos nós.


(Foto do palhaço Carequinha retirada daqui)

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Governo Dilma: derrotas consecutivas evidenciam necessidade de mudanças

Ao final de fevereiro, surpreendido, a um tempo, pela guinada neoliberal na seara econômica e pela súbita obsessão em cooptar a classe média conservadora que recém a rejeitara nas urnas, publiquei aqui dois textos – que acabaram tendo uma repercussão muitíssimo maior do que eu poderia imaginar - manifestando minha decepção com o governo Dilma e comunicando o meu desligamento da chamada blogosfera progressista, com o anúncio de que a participação militante seria substituída por uma abordagem jornalística.

De lá para cá, diminuí os posts do blog, como disse que faria, e, nas últimas semanas, um pouco por fastio e desencanto, outro tanto porque estive extremamente ocupado, trabalhando, poupei meus poucos mas estimados leitores de qualquer opinião sobre o atual governo.

Os acontecimentos recentes, no entanto, exigem que o silêncio seja interrompido.


Quadro precocemente deteriorado
Passados cinco meses, permanece o economicismo de cunho neoliberal que prejudica a setores essenciais – leia-se, destacadamente, educação - em prol das demandas do mercado financeiro. E, em decorrência, avultam questões como a suspensão dos concursos federais, o anúncio de privatizações em áreas estratégicas, o retrocesso no MinC e as sucessivas confusões do MEC.

Convém sublinhar que, quase na metade do primeiro ano de mandato, não é mais possível, nem honesto, atribuir tais percalços a um governo diletante, como alguns insistem em fazer.

Se, como vinhámos alertando, tais fatores já eram mais do suficientes para levar ao questionamento dos rumos que um governo alegadamente centro-esquerda estava tomando, dois graves episódios recentes tornaram tal necessidade inadiável: a fragorosa derrota do governo na votação do Código Florestal seguida, já no dia seguinte, do cancelamento, por Dilma Rousseff, da distribuição do kit da campanha anti-homofobia prestes a ser posta em prática pelo MEC.

Ambos episódios evidenciam o que é, a meu ver, um problema nodal da atual adminsitração: a ausência de uma coordenação política a efetivamente fazer o meio-campo entre o Executivo e as casas legislativas. No caso específico da aprovação de itens inaceitáveis do Código Florestal, os quais claramente beneficiam os ruralistas em detrimento do bem social e que Dilma promete vetar, esse foi um fator precípuo, tanto em uma maior interlocução com o relator Aldo Rebelo quanto – cujo comportamento pré-votação demandaria que fosse marcado de perto – quanto, sobretudo, uma ação coordenada com os demais líderes da base governista.


Chantagem não
O caso do kit anti-homofobia – que reacionários como Bolsonaro apelidaram de “kit-gay” –, embora passível de ser revertido a médio prazo, parece-me ainda mais grave, por evidenciar não apenas a violação do princípio de que o Estado brasileiro é laico, mas por claramente constituir uma tentativa bem-sucedida de chantagear o governo, ameaçando atirar o novamente suspeito Palocci aos leões caso um conjunto de vídeos didáticos, bem-feitos (confira aqui), dedicado a combater a homofobia e evitar o bullying fosse distribuído à rede escolar.

Não é intenção deste artigo especular se Palocci tem ou não culpa no cartório ou qual seria a medida ideal a ser tomada pelo governo para tirar do centro da sala o bode que lá a mídia depositou.


Três questões
Mas duas questões se mostram inevitáveis: uma é que, a despeito de Dilma frequentar festas na Folha e fazer omeletes com Ana Maria Braga, a mída continua mais que disposta a colocar bodes na sala presidencial - e a presidenta precisa, urgente, traçar uma estratégia para lidar com tal disposição midiática e/ou com tais bodes.

As outras se dão na forma de pergunta, retórica mas para ser pensada: quantos hectares de mata virgem vale Palocci? Quantos ataques de homofobia e quantas almas sensíveis atormentadas pelo fantasma do bullying justificam a permanência de um tecnocrata que, ao final, não fez falta aos melhores momentos do governo Lula?

Refém de uma realpolitik muito elástica
Por fim, para encerrar esta breve reflexão, é preciso observar que causa ainda mais perplexidade a constatação de que a dupla derrota governista se dá em um momento no qual a direita brasileira sofre uma de suas maiores crises históricas, com o desfalecimento do DEM e o acirramento das disputas internas no PSDB, pondo em risco a unidade do principal partido de oposição, já enfraquecido por três derrotas eleitorais consecutivas nas eleições presidenciais.

Assim, com o recuo abrupto de Dilma no caso do kit anti-homofobia, e dado os resultados infrutíferos das articulações governistas que precederam as votações do Código Florestal, a impressão que fica, como aponta a blogueira Amanditas, é que o governo se encontra refém de suas próprias alianças, num ajuste de interesses tão díspares que as demandas de centro-esquerda tendem, na prática, a sumir do horizonte

Na bela Carta Aberta aos Petistas que Milton Temer fez hoje publicar, orbita justamente em torno da descaracterização de um programa de centro-esquerda em prol do mercadismo o seu alerta de que, como visto recentemente na Espanha, a direita reacionária brasileira não precisará de outro golpe militar para voltar ao poder.

Trata-se de algo a meditar e a levar os setores da esquerda que insistem em um conformismo chapa-branca, acatando as decisões governamentais como se sagrads fossem, a tomar uma posição mais ativa, pressionando o governo de Dilma para que ele cumpra o que prometeu.

domingo, 15 de maio de 2011

Quando era dureza ser de esquerda...

Houve um tempo em que era duro ser de esquerda.

Éramos barbados, sofridos e, pior, quase nunca ganhávamos eleições. Vira e mexe, confundiam-nos com os hippies e até com mendigos (vi uma vez tentarem dar uma esmola ao Plínio Marcos, que, com uma barba enorme e de havaianas, vendia seus livros na rua; ele reagiu furioso).

Como, por muitas décadas, ser de esquerda significava ser socialista ou comunista (portanto ateu e comedor de criancinhas) era quase uma heresia anunciar-se como tal em público. Senhoras se benziam, cavalheiros mudavam de calçada. Pra não dar bandeira, o negócio era embrulhar o Livro Vermelho do Mao com a capa do Eram os Deuses Astronautas e ir tocando a vida.

Por falar em tocar a vida, era um tempo em que as pessoas de esquerda, em sua maioria, eram (ou se consideravam) intelectuais, e, portanto, iam ao bar, não à praia – e jamais às academias de ginástica. Frequentá-las seria desmoralização total:

- “Autocrítica, companheiro, olha essa preocupação burguesa com a beleza física”.

Quem estipulou essa de que intelectual bebe, ao invés de ir à praia, foi o Jaguar, cartunista, bebedor contumaz, e editor d’O Pasquim, o jornal que os esquerdistas liam em êxtase, convencidos de que eram tão inteligentes quanto o pessoal que lá escrevia.

Era um tempo em que os meio intelectual, meio de esquerda frequentavam aqueles bares meio ruins que o Antônio Prata imortalizou numa crônica serelepe. Na época não existiam esses botecos chiques nem esses festivais de comida de boteco, que prometem tira-gostos divinos mas exigem que todos eles tenham como ingredientes determinada marca de maionese e um desses salgadinhos de pacote que imitam nachos – o que acaba transformando a ida ao boteco num insólito confronto com uma espécie de nouvelle cuisine perisqueira, com o Sushi de Mignon Marinado concorrendo com as Trouxinhas de carne seca com camembert e pimenta-de-dedo. Salvai-nos, São Moacyr Luz!

Mas, se os botecos pioraram, em compensação ser de esquerda ficou bem mais fácil. Pra começar, exceção feita à minoria de prefeituras e estados governados pelo PSDB, em nossos protestos não precisamos mais enfrentar cavalaria, porrada e gás lacrimogêneo.

Basta nos refestelaremos confortavelmente numa poltrona made in China, abrir o laptop e, um mouse na mão e uma ideia na cabeça, navegar pela aguerrida blogosfera, assinar as campanhas da Avast e esgrimir argumentos e links nas redes sociais.

Antigamente, quando éramos oposição, aí era bem mais difícil. Tínhamos muitos e mais poderosos inimigos: o capitalismo, os EUA, o FMI, a ditadura militar, o Nelson Rodrigues, a UDN, o Roberto Campos, o Paulo Francis e Amaral Neto, o repórter.

Hoje, nossos inimigos são, basicamente, dois: o PIG e o José Serra (alguns, mais radicais, incluem FHC e o PSDB, como se eles ainda apitassem alguma coisa...). Assim, para exercermos a tal da práxis política, não precisamos mais dominar o jargão marxista nem ter lido todo o catálogo da Civilização Brasileira. Temos as respostas (para qualquer pergunta ou acusação) na ponta da língua:

A ministra da Cultura está jogando no lixo os avanços na produção e circulação de cultura?
- Culpa do PIG!

A inflação está pela hora da morte?
- Invenção do Serra!

O corte nas verbas da educação começa a comprometer o nível do ensino superior e os avanços do governo Lula na área?
- Invenção do PIG!

Com essa argumentação sofisticada, honesta, salpicada de elogios eventuais a nossos novos aliados – Delfim Netto, Bresser Pereira, Kátia Abreu, Kassab – ser de esquerda continuará a ser, por um bom tempo, sopa no mel, enquanto Aldo Rebelo adula os ruralistas e Palocci, o mercado financeiro.

Afinal, num tempo em que até a dita esquerda no poder vira e mexe adota medidas neoliberais, ficou mesmo muito fácil ser de esquerda. Tão fácil que a gente até desconfia.

sábado, 7 de maio de 2011

STF e homoafetividade: rumo a um país verdadeiramente democrático

Ao reconhecer por unanimidade a união civil homoafetiva, o STF honrou a Constituição, resistiu bravamente às pressões de setores conservadores e recuperou-se, ao menos momentaneamente, do maior desgaste de sua história, vivenciado durante o governo Lula, sob a liderança tacanha de Gilmar Mendes.

Trata-se de uma decisão histórica, que traz um sopro de renovação à atmosfera algo pesada que vem marcando o início do governo Dilma, eivado pelo retorno ao economicismo neoliberal primário. O resultado do julgamento do STF coloca o Brasil em pé de igualdade com nações em que os indivíduos não são discriminados por sua sexualidade, mitigando a distorção secular que cobrava de gays e lésbicas o cumprimento de todos os deveres cívicos, negando-lhes, no entanto, a contrapartida em direitos que os demais cidadãos e cidadãs usufruem.

A decisão, embora ansiosamente esperada, de certa forma surpreende. Havia o temor (justificado) de que a ascensão de novos e volumosos estratos neopentecostais – aliados, no caso, a setores conservadores do catolicismo – pudesse vir a tornar a esfera pública brasileira impermeável a avanços comportamentais, seja no campo da sexualidade ou, por exemplo, em relação à questão das drogas. A reação moralista e em bloco ao tema do aborto, vista na última eleição, reforçava tais temores.

Mas a alta corte não se deixou influenciar, cumprindo de forma digna sua missão. E não apenas ao estabelecer jurisprudência, mas fornecendo diretrizes legais que servirão de balizas para o tratamento do tema em termos sociais e educacionais.

Setores conservadores reagiram de forma ruidosa, como seria de se esperar, com os Bolsonaros da vida, à falta de argumentação racional, cuspindo fogo pelas ventas. Por outro lado, na internet e nas redes sociais, o clima foi de euforia e de congratulação. Um número enorme de pessoas, casadas, solteiras, das mais diversas inclinações sexuais, comemorou a decisão como uma grande conquista da cidadania.

Em meio à celebração, no entanto, o desabafo incluiu ataques indistintos a religiões e aos que nelas crêem. Tendo em vista os enfrentamentos pregressos e as reiteradas tentativas de intromissão indevida das instituições religiosas em questões públicas, não é de se entranhar que eles ocorram. Mas, idealmente, são dispensáveis - além de pouco inteligentes do ponto de vista tático, ainda mais se considerarmos que a batalha agora se deslocará para o Congresso, que deve regulamentar a decisão, dando a palavra final quanto a casamento e adoção de filhos por homossexuais.

Um tal cenário, viabilizado pela decisão de improváveis senhores de togas negras, acena para um país realmente democrático, onde viceje uma dinâmica sexual, social e afetiva realmente democrática. Tivemos um breve vislumbre dessa possibilidade na última quinta-feira. Que ela se concretize, em breve, como realidade.


(Foto retirada daqui)

domingo, 17 de abril de 2011

Aécio, Lula e o falso moralismo

Posta em prática há quase três anos, a “Lei Seca” foi vendida como uma medida necessária que reduziria drasticamente os acidentes de trânsito ao coibir a circulação de motoristas embriagados. Como toda solução mágica de cunho moralista, a novidade foi saudada pela classe média como uma autêntica panacéia contra os acidentes, casos de invalidez e mortes ocasionados no trânsito.

Na euforia que se seguiu à sua decretação, as queixas contra os baixíssimos limites tolerados (abaixo de 0,2mg de álcool por litro de ar expelido no bafômetro) e contra a prisão dos que se valessem do direito constitucional de não gerar provas contra si próprios, negando-se a serem testados pelo bafômetro, foi descartada como queixumes dos chatos que são do contra. Não cansa de surpreender a facilidade com que são jogados no lixo, no Brasil, os direitos individuais, em prol de um suposto interesse coletivo.

Enquanto os potenciais benefícios da Lei Seca eram superdimensionados, foi largamente negligenciada a reflexão sobre seus eventuais efeitos deletérios, como, por exemplo, um acréscimo na tendência ao sectarismo (nocivo à saúde física) e ao isolamento (e seus efeitos psicológicos), a diminuição de vida social noturna nas grandes e médias cidades - já afetadas pelo aumento da violência urbana -, e, em plena crise mundial, o efeito econômico de mais uma medida inibidora do consumo.


Resultados questionáveis
No primeiro ano de vigência da lei, segundo os dados oficiais, os resultados teriam sido superlativos, com o número de internações e de mortes no trânsito diminuindo entre 20 e 30%, em média, a depender da unidade federativa consultada.

Nos dois anos seguintes, no entanto, à medida em que deixava de ser novidade, os números recuaram (e em alguns períodos/lugares a níveis pré-Lei Seca) – e a um ponto tal que, se efeitos deletérios acima referidos fossem incluídos no cálculo, seria questionável a eficácia da medida. Pior: como sói acontecer no Brasil, trata-se de uma daquelas leis que “pegou” em alguns estados, mas que é amplamente negligenciada em outros, o que cria uma assimetria jurídica em que uma parcela da sociedade está à mercê da lei, enquanto outra se locupleta.


Tucano flagrado
Esse retrospecto sobre a Lei Seca vem à tona, é claro, no bojo da repercussão da notícia sobre o senador do PSDB Aécio Neves, flagrado por uma blitz policial, no Rio de Janeiro, com a carteira vencida, sendo multado após recusar-se a fazer o teste do bafômetro.

Em qualquer país do mundo, é o tipo de notícia que faria a festa dos opositores, dos tabloídes e das redes sociais. No Brasil, provoca reações ainda mais exacerbadas, não apenas por desmentir, "na lata", o discurso neoudenista que tantos tucanos abraçam, mas por contrapor-se, como evento factual, aos boatos, notinhas e provocações envolvendo consumo de álcool que, nos últimos nove anos, têm sido lançados pela mídia contra o ex-presidente Lula.

E é precisamente no que se refere à cobrança por um tratamento semelhante, por parte da mídia, do atual episódio envolvendo Aécio em relação a ocorrências anteriores envolvendo petistas, que se situa, a meu ver, o ponto nodal da questão. Pois é não só legítimo, mas plenamente desejável que a mídia brasileira seja chamada à razão em cada oportunidade, e casos como o atual têm sido exemplares para demonstrar didaticamente o tratamento assimétrico que costuma dispensar a figuras alinhadas a um e a outro campo do espectro político.


Turbas enfurecidas
Isso posto, fica impossível deixar de registrar que, por outro lado, a reação de turba enfurecida que se viu - e ainda se vê - nas redes sociais impressiona negativamente pela adesão massiva dos que se dissem esquerdistas e liberais a um discurso marcadamente moralista, neoudenista, que se costuma ouvir da boca das piores figuras da direita. Além disso, há algo de incontroversamente hipócrita em ver tantos brasileiros se comportarem como autênticos catões, como se nunca tivessem dirigido um carro após tomar umas cervejas ou nunca atrassasem a renovação de um documento ou do pagamento do IPVA.

Além de contribuir para que passe despercebido que o principal beneficiário do vacilo de Aécio é José Serra - que segue obstinado em ser o candidato presidencial em 2014 -, a histeria coletiva que, em seu ápice, quase torna algumas redes sociais monotemáticas, faz com que os lucros políticos com o episódio se diluam e a necessária crítica à mídia se fragmente - embora esta, mesmo em um momento de nova dinâmica na relação entre governo federal e imprensa, continue a se mostrar urgente.


Ataque desqualificador
Ainda ontem, meses após o fim da presidência Lula, uma dessas colunistas em fase de adestramento para um dia substituir mervais e leitões, publicou uma nota intitulada “Na terra do goró":
“As línguas ferinas da oposição comentam que Lula da Silva foi à Inglaterra com um propósito maior: encontrar seu querido Johnnie Walker. Hic!”
Se a imprensa corporativa, que por dever de ofício deveria manter um mínimo de seriedade e profissionalismo, se rebaixa ao nível de publicar uma nota com tal teor contra um ex-presidente – sem a mínima evidência a embasá-la, note-se -, não há porque esperar que os internautas não reajam como turbas, valendo-se do mais tosco moralismo para ridicularizar uma figura da oposição.

Agora, o que não se pode negligenciar é que, ao assim fazê-lo, tendem a se equiparar em desrazão, falta de equilíbrio e fanatismo à mídia corporativa que tanto criticam, perdendo uma grande oportunidade de sobrepujá-la.


(Imagem retirada daqui)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Dilma e Mídia: um novo cenário

No Brasil, o inaceitável comportamento de grande parte da mídia corporativa durante os anos Lula fez com que ela, em meio a uma crise econômica de razões tecnológicas – traduzida na grande oferta de conteúdo gratuito via internet – sofresse também a maior perda de credibilidade de sua história.

“Velha mídia”, “Mídia gorda” e, sobretudo, o pregnante “PIG” (Partido da Imprensa Golpista) são exemplos de denominações derrogatórias utilizadas de forma recorrente, no período, para se referir ao jornalismo político brasileiro.

Um dos papeis mais relevantes prestados pela blogosfera “suja” nos últimos anos foi justamente denunciar o baixíssimo nível a que a mídia brasileira chegara, com seu antilulismo cego que a levou a relativizar a ditadura, a publicar ficha falsa de candidata na primeira página, a dar voz a um desequilibrado mental para acusar o presidente de estuprador, a armações ridículas como o grampo no STF e a tentativa de utilizar Lina Vieira para inviabilizar a candidatura Dilma (caso este cujas entranhas fui o primeiro jornalista a trazer integralmente à luz, no Observatório da Imprensa).


Acenos à mídia
No entanto, desde que a atual presidenta subiu ao poder ela já deu mostras mais do que suficientes de que pretende estabelecer outro tipo de relação com a mídia: foi à festa da Folha, fez um omelete em programa matinal global, tricotou um papo mineiro com a madrinha da TV Hebe Camargo.

Se o estabelecimento dessa política de boa vizinhança terá um custo que supere os gestos simbólicos, na forma de sacrifício da prometida Lei dos Meios ou de redirecionamento das verbas federais publicitárias (que Lula pulverizara em pequenos e médios jornais e estações de rádio), é algo que só o futuro poderá responder. (A história da imprensa no Brasil, no entanto, desautoriza grandes esperanças em contrário.)

O que é palpável e recorrente é a mudança de posição da mídia em relação a Dilma: até veículos e colunistas ferrenhamente anti-lulistas, como a revista Veja e a inacreditável Eliane Cantanhêde têm se desmanchado em elogios. A exaltação da “capacidade gerencial” da presidenta, de sua “seriedade” e “firmeza” tornaram-se lugares-comuns da análise política em pouco mais de três meses. O PIG, agressivo porco-do-mato, ora está mais para um terno gatinho, enredado nos novelos de Dilma Rousseff, a quem FHC agora considera "bonachona".


Bode expiatório
Mas quem acompanha as redes sociais tem a impressão de que nada mudou na relação da mídia com o governo federal. Desacostumados às críticas e às mínimas restrições, mesmo se os jornais alertam contra ameaças reais como o perigo inflacionário ou o beco sem saída para setores da indústria nacional representado pelo dólar demasiadamente baixo, os internautas que apoiam o governo não dão ouvidos e reagem apontando o mesmo culpado de sempre: o PIG.

O que torna o jogo ainda mais cínico é que quando a mídia elogia, aí, para essas mesmas turbas, ela deixa de ser PIG: “Desemprego cai no primeiro bimestre, diz O Globo", "Veja reconhece avanços na agricultura”, exultam os militantes e simpatizantes nas redes sociais ante notícias publicadas pelos mesmos veículos que vivem a atacar e a classificar como indignos de crédito.

Destarte, a centro-esquerda lulista mimetiza cada vez mais um tipo de comportamento que sempre foi mais associado aos setores de direita, evitando o debate franco e pontual através da utilização reiterada de um arsenal limitado de respostas-padrão e da atribuição de responsabilidade a um fator externo.


Discursos limitados
Coincidentemente, no último final de semana o blogueiro Leonardo Sakamoto publicou um post justamente sobre tal estratégia discursiva da direita, no qual ele demonstra sagacidade para coletar frases-padrão e conseguir montar um retrato sardônico dos cacoetes escapistas dos setores conservadores quando defrontados com alguns dos grandes dilemas sociais do país.

Ao ler o post, no entanto, embora me divertisse e concordasse, não pôde deixar de me ocorrer, não sem uma dose de mordacidade, que tarefa ainda mais fácil seria a de montar lista do mesmo tipo concernente à centro-esquerda ora no poder e sua militância. Bastaria, para tanto, responder a todas as perguntas embaraçosas - os cortes no MEC, o anacronismo do MinC, o dólar falindo empresas, a inflação de fato, que todos sentem no bolso - com as frases “Isso é invenção do PIG”, “O governo mal começou”, "Querem usar a Dilma para atacar o Lula" e o mesmo “Não é hora de mexer nesse assunto" elencado por Sakamoto em relação à abertura dos arquivos da ditadura.


Mimesis
Não é de se estranhar: uma centroesquerda cada vez mais voltada a, mais do que um projeto político, um projeto de poder; avessa a críticas e autocriticas; e que transfere automaticamente ao setor comunicacional privado - o qual se esforça ao máximo para agradar - parte dos ônus de suas próprias escolhas se parece cada vez mais com a direita.

A mídia no Brasil é extremamente concentrada e tem objetivos políticos os quais, a princípio, não coincidem com os da aliança que apóia Dilma Rousseff. Será, portanto, preciso sempre vigiá-los, mídia e governo. Porém continuar utilizando o PIG como um escudo preventivo contra toda e qualquer crítica é tão falacioso quanto contraproducente, pois mais cedo ou mais tarde o eleitor vai perceber a nova dinâmica da relação mídia-governo e o truque de botar a culpa de quase tudo na mídia pode se virar contra os feiticeiros.


(Foto retirada daqui)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Rubros reflexos do massacre

Os massacres envolvendo franco-atiradores e dezenas de alvos inocentes, geralmente em escolas ou universidades, foram por muito tempo considerados um fenômeno tipicamente norte-americano. Com efeito, até a década de 90 os EUA concentravam quase 90% de ataques do tipo.

As explicações, portanto, orbitavam em torno das idiossincrasias do american way of life, com sua concentração fatídica de culto às armas e à livre-circulação destas, individualismo e consumismo exacerbados, e belicismo como manutenção de um orgulho e poderio nacionais que há tempos encontra-se em decadência.

Por isso mesmo, alguns setores - da esquerda notadamente -, reagiam de forma contraditória: ainda que não deixassem de achar estarrecedor e deplorável a morte de inocentes por tais eventos promovida, nutriam uma indisfarçável satisfação por estes se consubstanciarem como evidência de que algo ia muito mal no seio do Império opressor.

Porém, por motivos que os bem-pensantes ainda não foram capazes de explicar, de uns 15 anos para cá casos semelhantes passaram a se repetir no Japão, na Rússia, na França, na Alemanha. Hoje foi a vez do Brasil, mais exatamente de Realengo, carioquíssimo subúrbio que antes remetia a domingos de calor e músicas de Jorge Benjor - e bairro ao qual Gilberto Gil mandou aquele abraço antes de partir, à força, para o exílio londrino, e, 1968.

Mas os abraços de hoje em Realengo em muito diferem do nobre gesto de superação do exilado, a se despedir em alto astral do país do qual fora apartado: são abraços partidos, de mães que não mais terão seus filhos nos braços; abraços confortadores, desolados, de consolo; abraços que, além de um gesto de afeto irradiam uma mesma pergunta: por quê?

À medida em que a tragédia ia vindo a público, a mídia brasileira – TVs à frente – começava a dar um show de incompetência, manipulação, desrespeito, achismo e despreparo que acabou por fornecer, no Dia do Jornalista, um triste retrato dessa categoria profissional. Num misto de incompetência e má-fé, até o islamismo foi invocado como a razão do massacre, enquanto a emoção dos entrevistados e do espectador era explorada com inédita sem-cerimônia.

Algumas horas antes de saber do massacre eu conversava com uma aluna, prestes a se formar, da qual sou orientador. Com olhos muito vivos, que transmitem uma intensa vida interior, ela pesquisa há tempos sobre um novo modelo de jornalismo, cívico, comunitário, solidário. Por mais que travemos, nessas sessões, uma delicada batalha entre as exigências realistas da academia e seu entusiasmo genuíno, este, nela, acaba sempre por me encantar.

A lembrança dela e de sua pureza de intenções, contrapostas às imagens do massacre e à vergonhosa cobertura midiática, acabou por formar, em mim, uma lúgubre epifania, de uma sociedade onde crianças são mortas sem mais nem porquê, jovens idealistas saem das faculdades para serem moldados em meros instrumentos do comércio jornalístico, e a por si nobre missão de informar a sociedade se transforma numa busca sem barreiras por Ibope, em que a ética e as boas atenções afundam no sangue e na exploração sadomasoquista da dor alheia.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ditadura - uma história verídica

Quando eu era criança, pressentia de forma intensa a existência de um grande mistério e de uma grande opressão inerentes à vida e os quais, embora efetivos e onipresentes, os meus poucos anos de vida não permitiam desvendar.

Na adolescência tornou-se claro que o mistério era, evidentemente, o sexo, a existência de um mundo de prazer e entrega apartado do universo aparente do cotidiano.

Quanto à opressão, levei mais tempo para descobrir que se tratava dos efeitos paranóicos instaurados pela ditadura militar, os quais a peça Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, registrada em disco, reproduz com maestria, captando as sutis mas muito perturbadoras decorrências da opressão para a psicologia coletiva.

Com efeito, eu nasci e cresci sob a pesada atmosfera dos anos de chumbo. Em 1967, com um barrigão e a alguns meses de me trazer ao mundo, minha mãe ficou, nas imediações da Praça da República, espremida detrás de uma porta de ferro de uma loja fechada às pressas, enquanto uma batalha campal entre estudantes e forças repressivas se dava à sua frente, com direito a bombas de gás de um lado e, de outro, bolinhas de gude para derrubar os cavalos.

Neste primeiro de abril de 2011, 47o. aniversário de uma ditadura que afundou o pais numa pasmaceira e num vale-tudo anti-ético encoberto pela censura à imprensa, atrasando em décadas nossa evolução e deixando marcas profundas e deletérias, republico aqui uma história verídica vivenciada pelo meu pai, cujo ódio que sempre nutriu pela ditadura só é superado pelo êxtase com que celebrou a redemocratização e, mais recentemente, a Era Lula.

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Há 37 anos foi lançado no Brasil o filme Corações e Mentes. Mais incisivo documentário sobre a guerra do Vietnã, a obra dirigida por Peter Davis celebrizou-se pela denúncia da crueldade contra civis empregada pelo exército norteamericano no conflito, simbolizada na célebre foto (tirada em 1972 por Nic Ut) da garotinha vietnamita Kim Phuc correndo com o corpo nu queimado por Napalm.

Além da inegável importância histórica do filme, ele tem, para mim e para minha família, um significado especial, pois representou um dos momentos de maior risco que meu pai correu de ser apanhado pelas forças repressivas do regime militar.

Esta é uma história verídica e nunca tornada pública por nós, sendo que tampouco tive a oportunidade de lê-la escrita por alguma das outras pessoas que a vivenciaram. Trata-se, é evidente, de um episódio ínfimo (do ponto de vista das consequências vivenciadas individualmente por meu pai) se comparadas às brutalidades cometidas pelo regime militar - relatadas em documentos como o livro Brasil Nunca Mais -, mas que atingiram duramente, como ficará evidente, outros participantes do ocorrido.

É, no entanto, um relato ilustrativo do grau de cerceamento da liberdade individual durante o período que uma certa imprensa ousa hoje chamar de “ditabranda”, e do grande risco que cidadãos comuns, sem envolvimento direto com a luta política, corriam de serem enredados na teia de tortura e arbitrariedades de um aparelho repressor sem controle nem limites.

Meu pai foi ver Corações e Mentes no Cine Arouche, no centro de São Paulo. Embora fosse um homem de esquerda, simpatizante do comunismo, e temesse a repressão por conta de alguns textos analíticos e poemas políticos que publicara, tocava a vida e sustentava a família trabalhando num banco (emprego que odiava), restringindo suas opiniões sobre o regime para o círculo de amigos e para as noites boêmias do então seguro e potável centro de São Paulo (que adorava, boemia e local).

Um tanto por exigência do emprego, um tanto por vaidade pessoal, vestia-se muito bem, com ternos de casimira inglesa, pulseiras de prata, costeletas e cabelos compridos, de acordo com o modelito “playboy anos 70” – a tal ponto que um primo bulia, sempre que o via adentrar a casa de minha avó:

- Chegou a elegância e o dinheiro!

Certamente impressionado pela “pinta” do cidadão (ao menos foi o que meu pai imaginou), o porteiro do cinema insistiu para que ele visse o filme da sala 2, um "enlatado" hollywoodiano, argumentando que Corações e Mentes não era “uma fita apropriada pra um cavalheiro como o senhor”. Ele achou aquilo de um absurdo atroz, mas o funcionário foi muito insistente. Após quase chegarem à discussão, ele acabou entrando para ver o longa documental, que o impressionou desde a primeira sequência. As razões da insistência inusitada do porteiro logo se explicariam...

Quando o filme retratava um dos bombardeios mais violentos sobre uma vila vietnamita, em que toneladas de bombas eram lançadas contra pobres cidadãos indefesos, a luz de súbito se acendeu. A projeção foi interrompida. Militares, em trajes camuflados, cercavam a platéia, nos corredores laterais e à frente, apontando metralhadoras aos espectadores.

Seguiu-se um tempo que pareceu uma eternidade.

Dois homens entraram, ambos vestindo japonas beges com zíper. Um deles era o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sem dizer uma palavra, passaram a percorrer fileira por fileira, olhando fixamente as feições de cada espectador. Ao comando de um dos dois, o sujeito era retirado da sala por soldados. A lenta operação foi repetida diversas vezes, com vários indivíduos sendo presos e nenhuma palavra, exceto o fatídico “Você, fora!” que determinava a sorte do indigitado.

Num dado momento, não aguentando mais e tomado pela exasperação, um homem abriu ostensiva e estrepitosamente um jornal. Foi imediatamente preso.

Ao fim de cerca de duas horas, Fleury virou-se para a audiência, desculpou-se e, identificando-se como delegado do DOPS, disse que eles foram obrigados a interromper a sessão porque ali se dava atividade subversiva – alguém, segundo ele, estaria distribuindo panfletos na sala. Nenhum desses supostos impressos jamais chegou às mãos de meu pai.

Os homens se retiraram, mas podia-se ver a fila dupla de soldados à saída do cinema. O filme recomeçou, mas quem conseguia prestar novamente atenção nele depois do que se passara? Imaginavam apenas o que os esperava lá fora. No mínimo, passaremos por um corredor polonês, pensou meu pai; no máximo, iremos todos presos, seremos barbaramente torturados e até mortos.

O filme acabou e ninguém saía do cinema. Após não aguentar mais esperar, meu pai foi o primeiro a se levantar, seguido por outros. Passou incólume pela fila dupla de soldados e, ao chegar à rua, defrontou-se com uma operação de guerra: brucutus sobre a grama do Largo do Arouche, diversos veículos militares nos arredores; investigadores e delegados, aparentemente comandados por Erasmo Dias, numa operação planejada com o intuito deliberado de captar esquerdistas – o público que mais tenderia a se sentir atraído por um filme que fazia uma denúncia contundente do imperialismo belicista dos EUA de então.

As pessoas retiradas da sala haviam sido todas encapuzadas e estavam algemadas, de pé, numa espécie de perua militar. Que destino atroz as esperava?

Meu pai teve que atravessar a confusão de veículos militares para resgatar sua Brasília marrom, parada em pleno largo. Veio dirigindo com o coração na mão e só se convenceu de que não estava sendo seguido quando contornou o obelisco do Ibirapuera, deixando a 23 de Maio. Em casa o esperavam minha mãe, a filha de 4 anos e este blogueiro, então uma criança inocente dos riscos de ser preso e torturado que seu pai correra – pela simples decisão de assitir a um filme.


(Imagem retirada daqui)

quarta-feira, 30 de março de 2011

Cortes do MEC afetam estudantes

Durante toda a campanha eleitoral Dilma Rousseff declarou que a educação seria uma prioridade em seu governo. No discurso de posse, enfatizou tal intenção. Anteontem, ao percorrer, cercada de centenas de estudantes brasileiros, os corredores da mítica Universidade de Coimbra, garantiu-lhes que o Brasil vai mandar mais bolsistas para estudarem no exterior.

Enquanto isso, na vida real, as universidades federais sentem os efeitos do corte de R3,1 bi no orçamento do MEC: novas contratações suspensas, adiamento de licitações e, o mais grave, corte das verbas até para as longas e desconfortáveis viagens, de ônibus, que levam os estudantes aos congressos de suas respectivas áreas.

Em decorrência, assiste-se à frustração de muitos deles, que, sem condições financeiras de arcar com os custos de uma viagem, investiram muitos meses - às vezes mais de um ano - em um projeto de pesquisa, confiantes na manutenção do compromisso mínimo de que um ônibus da universidade os levaria até o congresso, para que pudessem apresentar a seus pares os resultados de seus esforços, arcando eles próprios com gastos com comida e hospedagem da empreitada.

Desnecessário observar que tal quadro gera um círculo vicioso, que desestimula o desenvolvimento de pesquisas na graduação e retarda o amadurecimento do aluno e sua capacitação, acabando por afetar o nível das pós-graduações.

Nelas, os efeitos dos cortes de verbas são ainda mais nocivos, dada a fundamental importância desempenhada pela avaliação das pesquisas por pares e pela troca de conhecimentos atualizados que os congressos proporcionam. Intercâmbio, como se sabe, é essencial ao progresso da pós-graduação.

E para que sacrificar tanto uma área vital ao país, perguntamos. Para, mais realista que o rei, o governo cumprir a meta insana de déficit nominal zero, agradando ao deus-mercado, priorizado uma vez mais pela presidenta, ao invés das demandas do povo que a elegeu - baseando-se em um discurso bem diferente das atuais práticas, registre-se.

Assim, pois, deixando as meras palavras e declarações de intenções de lado e aferrando-nos à realidade concreta dos fatos, a verdade é que prioridade da gestão Dilma, até agora, não é a educação, mas o mercado.

domingo, 20 de março de 2011

O imperador e seus súditos

Ao final da dupla presidência de George W. Bush, a popularidade dos EUA se encontrava em seu momento mais baixo. As mentiras sobre as armas de destruição em massa, a manipulação da opinião pública, o desrespeito à ONU e a mortandade de civis no Iraque levaram o anti-americanismo a alastrar-se como nunca pelo mundo, levando-o a pontos incandescentes entre os povos do Oriente Médio - indignados pelo apoio incondicional dos EUA ao agravamento das políticas opressivas de Israel contra os palestinos e estigmatizados em bloco como fanáticos religiosos e terroristas.

A eleição de Obama, com o simbolismo da questão racial, a mobilização de jovens e internautas e a euforia utópica do “Yes, we can!”, trouxe a esperança de que tal quadro se reverteria e o obscurantismo da Era Bush seria uma página virada da história. Afinal, embora a relação com Israel devesse permanecer intacta, o programa de governo incluía o diálogo com lideranças árabes, o fechamento da prisão de Guantánamo e, no âmbito interno, as reformas das leis de imigração e do calamitoso sistema de saúde.


Decepções em série
Quase tudo isso ficou no mero marketing. O descontentamento do governo, Hillary à frente, ante os levantes populares contra as ditaduras árabes foi evidente (só não o seria se fosse no Irã). No último dia 7, Obama recuou em relação a Guantánamo, que continua mantendo presos, em condições desumanas, suspeitos sem julgamento, numa afronta à Justiça internacional. “A reforma da política nacional de imigração foi inviabilizada no Congresso e tem sido substituída por selvagens leis estaduais anti-imigrantes”, como aponta Luiz Antonio M. C. Costa.

Para Maria da Conceição Tavares – que concedeu ótima entrevista à Carta Maior -, Obama “exerce um presidencialismo muito vulnerável, descarnado de bases efetivas, pois a juventude e os negros que o elegeram não teriam poder institucional “nem assento em postos chaves”. Ela aponta o que chama de “conservadorismo de bordel”, representado pela aliança entre o moralismo republicano e a farra da finança especulativa, como uma camisa-de-força conservadora para o exercício da presidência nos EUA atuais.


Deslumbre entusiasmado
Foi para receber esse presidente pato manco que o Brasil se perfilou. Mídia deslumbrada e acrítica à frente, prometia-se um show de democracia e afagos no ego nacional, com direito a comício na Cinelândia e Obama anunciando à massa que reservara um assento para o país no Conselho de Segurança da ONU.

Como sói acontecer quando se trata de Obama, houve uma grande frustração de expectativas. Primeiro, a Cinelândia foi vetada, após monitoramento das redes sociais, por receio de protestos populares.

Depois, uma manifestação corriqueira em frente ao Consulado dos EUA no Rio termina com treze cidadãos brasileiros detidos - a maioria estudantes e professores - e outro, um vigilante, com ferimentos provocados pelo que a polícia fluminense alega ser uma explosão de coquetel molotov. No dia seguinte, para espanto de muitos, os treze detidos são mandados para a prisão em Bangu, para aguardar julgamento por penas que podem chegar a doze anos.


Muito anos 70
Além de inédito nos anais recentes das manifestações públicas brasileiras, é, para dizer o mínimo, pouco crível que um grupo heterogêneo de militantes, predominantemente do PSOL, mas com um menor de idade e uma senhora de 69 anos, lançasse mão de coquetéis molotov, socos ingleses e pedras (material alegadamente apreendido, mostrado pela Globo) em um ato de protesto - ainda mais contra a superprotegida embaixada dos EUA.

É fato documentado que pertence ao universo dos grupos neonazistas - cujas ligações com setores da extrema-direita militar são evidentes - o hábito de carregar tal parafernália, para descarregar seu ódio contra gays, nordestinos e demais minorias.

E, embora pertença ao âmbito da especulação o que realmente teria acontecido, convém, como sempre, se perguntar a quem interessaria tal conflito aberto. As respostas parecem evidentes: aos grupos paramilitares de direita e seus militares de pijama, que alimentam ódio ao governo “de esquerda” e “revanchista” de Dilma e às próprias forças de segurança dos EUA em conluio com a PM carioca, que ao reprimir violentamente o protesto e prender 13 pessoas desencorajaria a participação popular em novas manifestações. Esta última hipótese é reforçada por dois fatores: a alegação de partidários do PSTU de que havia pessoas infiltradas entre o grupo e repetição de um modus operandi tantas vezes utilizado pela CIA.


A recusa de Lula
Mas não para por aí. A seguir, a novidade do evento foi o anúncio da não-participação de Lula no almoço com Obama. Muitos atribuem tal ausência ao esforço do popular ex-presidente para preservar intacto o protagonismo de Dilma Rousseff.

De minha parte, nunca comprei essa versão, pois, se assim fosse, Lula não deixaria para anunciar sua ausência na última hora, criando um fato jornalístico que traz de volta os holofotes a ele e gera uma série de especulações. Se deixar o palco para Dilma fosse o caso, seria mais lógico que ele assumisse, com bastante antecedência, um compromisso internacional que fizesse que ele sequer estivesse no país por ocasião da visita do mandatário estadunidense.

Portanto, o anúncio abrupto, de última hora, de sua ausência evidencia insatisfação ou desaprovação. A o quê? Não é preciso ser Nostradamus para se aperceber de que, com a ONU tendo aprovado, dois dias antes da visita de Obama, a decretação de zona de exclusão aérea na Líbia, seria uma questão de tempo para que os EUA seguissem os passos da França e anunciassem o ataque ao país - o que muito possivelmente viria a acontecer no Brasil, como efetivamente ocorreu.


Em solo brasileiro
E o fato de Obama fazer tal anúncio no Brasil repercutiu muito mal para nosso país no Oriente Médio e, como demonstra Maria Fro, na América Latina. Neste exato momento, Dilma Rousseff está sendo muito criticada tanto pela abstenção na votação na ONU quanto, sobretudo, por dar a impressão de endossar o anúncio de guerra ianque, por este ter se dado aqui e em meio a recepções calorosas a Obama.

Trata-se, evidentemente, no caso das últimas acusações, de uma injustiça, pois a presidenta nada poderia fazer em sentido contrário, em meio ao mais importante encontro internacional de seu mandato, organizado com grande antecedência.

Mas se Lula tivesse ido ao encontro, certamente sobrariam para ele acusações de incongruência entre, de um lado, a política Sul-Sul e de aproximação com o Oriente Médio que promoveu e, de outro, o fato de prestigiar o banquete para o mais novo senhor da guerra contra a região, inexplicavelmente laureado com o Nobel da Paz. Estrategista exímio como reconhecidamente é, Lula deve certamente ter prefigurado tais desdobramentos. Como se já não bastassem as idas e vindas de Obama quando incentivou que Lula mediasse um acordo com o Irã.


Humilhação oficial
Para completar o triste espetáculo que foi a visita de Obama, ministros foram obrigados, em território nacional, a tirar o sapato para revista pelas forças de segurança dos EUA, as quais revistaram até viatura da Polícia Federal. É o cúmulo da subserviência, de um lado, e do desrespeito à soberania, do outro.

Que alguns ministros tenham se recusado a tirar os sapatos, preferindo perder o almoço com Obama, traz o alento de saber que alguma dignidade foi preservada. Mas me recuso a acreditar que o cerimonial e as agências brasileiras de segurança não sabiam que seria assim – afinal, esse encontro vem sendo preparado há meses. Trata-se, portanto, de humilhação consentida, de vassalagem ao soberano. Há de se denunciar o ímpeto imperialista do visitante, mas não dá para fingir não notar a leniência submissa do governo brasileiro.


É o comércio, estúpido!
Com tantos transtornos, a visita de Obama ao Brasil evidenciou, uma vez mais, toda a truculência e arrogância imperialista que impregna, há décadas, a política externa dos EUA. O único evento a destoar positivamente do programa foi o discurso de Dilma Rousseff: firme, consistente, deixando claros os limites e as discordâncias do Brasil para com as demandas estadunidenses, foi reconhecido até por empedernidos conservadores.

Obama, em contraposição, além de lento e pouco articulado, não garantiu, no discurso oficial, o apoio à candidatura do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU – menção que só veio a fazer no almoço, o que é diplomaticamente muito menos significativo. Deixou claro que o negócio dele é fazer aumentar o comércio a favor dos EUA - e o resto é secundário.

Ou seja: os colonizados se humilharam e se abaixaram até "pagar cofrinho", mas desta vez nem espelhinhos ganharam...


(Cartum de Latuff retirado daqui)