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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Diretas-Já


Eu tinha 16 anos, dezenas de namoradas e cantava em uma banda de punk rock. Minha vida era plena de hedonismo. A principal preocupação era impedir que uma namorada descobrisse a(s) outra(s) – algo que hoje me parece sem sentido, pois é óbvio que elas sabiam, mas na época eu não atinava com isso.

Lembro perfeitamente do dia do comício das Diretas-já: era uma tarde quente, e eu estava no pátio da escola, beijando uma namorada – que era tipo a número 1. Aproximou-se a mais temida das inspetoras de alunos (que nós chamávamos “serventes”, o que hoje me parece preconceituoso), dona Elza, e começou a berrar com ela, me esculachando: que ela era a terceira garota que eu beijava naquele dia, se ela não tinha auto-respeito, o que a mãe dela ia pensar disso e por aí vai. Achei que a garota fosse embora, mas não. Ela sorriu. E continuamos ali, nos divertindo. No meio da tarde a levei pra casa e depois fui buscar outra garota, chamada Ana. Foi com ela que fui ao comício (sinto-me incrivelmente canalha escrevendo isso, mas é a verdade).

Aninha me presenteou com um chapéu de feltro vermelho, que eu adorava, e o utilizei o tempo todo. Havia no ar, desde o momento em que pegamos o ônibus, uma atmosfera especial, que parecia nos dizer: hoje é um dia único, vocês estão protagonizando a história.

A praça da Sé estava apinhada. Ficamos de frente para a catedral, do lado direito, e ainda hoje, quando olho uma grande fotografia aérea que tenho emoldurada, costumo brincar, apontando um ponto em meio ao mar de gente, dizendo: “Este aqui sou eu”.

É vívida na minha memória a voz do locutor Osmar Santos – que foi um dos grandes fenômenos radiofônicos do país antes de sofrer um grave acidente - gritando: “Diretas quando, São Paulo?”, e todos respondendo, em uníssono, “Já!!!!”. E das tentativas de, cantando o refrão: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, derrubar uma perua da vênus platinada, emissora que jamais cobrira o movimento popular até então – embora hoje, apelando até a truques de edição posteriores, tente renegar isso.


Lembro bem da emoção que provocou o discurso de Franco Montoro, então governador de São Paulo – e um político anos-luz à frente do que o PSDB, então inexistente, se transformaria. Ouço ecos de Faoro, de Bicudo, de personalidades que eu ou intuía ou sabia devido à militância de meu pai serem figuras importantes, mas que não tinha elementos para julgar por mim mesmo. Havia também momentos indefectíveis, como “Coração de estudante”, de Milton Nascimento, e o hino nacional cantado por Fafá de Belém, que já àquela época pareciam algo piegas (embora, a bem da verdade, no calor do ato cívico, não deixassem de ter seu encanto).

Lembro também que havia uma enorme bandeira do Brasil, que passava de tempos em tempos, nos encobrindo por vários minutos, permitindo que Aninha e eu nos agarrássemos de forma mais ousada. Num desses “amassos” roubaram meu chapéu... Que raiva!

A minha memória das Diretas-Já é assim: mescla personagens e situações históricas e memórias de uma sexualidade adolescente vivida ingenuamente e sem culpas.

Mas o dia da votação da emenda Dante de Oliveira no Congresso não teve nada de erótico. Foi triste, muito triste. Lembro do sentimento de derrota que nos acometeu ao final da noite, quando, embora a votação fosse avançar madrugada adentro, estava evidente que seríamos derrotados. Lembro de faces com lágrimas escorrendo, de um sentimento de uma derrota que nos custaria anos, como de fato custou. Lembro de um abraço longuíssimo e doloroso de uma pessoa de que eu gostava muito, cujo sentido era claro e se confundia com o político: poderíamos ter sido muito felizes, mas não fomos. Nunca mais, nesses anos todos, a vi de novo.

Figueiredo foi o mais burro e o mais inapto dos mandatários brasileiros. Poderia ter passado à história como o presidente que promoveu a transição democrática, mas não. Passou como um bronco, que dizia preferir o cheiro dos cavalos ao do povo.

Respeito a posição do PT à época, de recusar as eleições indiretas no Congresso. Era o que um partido de esquerda tinha a obrigação de fazer. Mas nunca comprei a versão – aparentemente consolidada - de que Tancredo seria “mais do mesmo”, como afirmam tanto blogueiros imaturos quanto comentaristas suspeitos, como Nelson Motta – cuja alma matter de todas as horas, a Rede Globo, foi a principal fiadora e apoiadora de Sarney.

Primeiro porque personalidade conta muito em política. Dilma não será Lula, Eduardo Gomes não foi JK. Segundo porque Tancredo tinha uma história política consolidada: principal ministro do Getúlio eleito, negociador da posse de Goulart sob o parlamentarismo. Um centrista, um conciliador. Não dá para comparar com Sarney, egresso da Arena – partido de apoio ao regime militar – e coronel do estado mais pobre da federação (e, como alguém já observou, o mais insensível socialmente dos coronéis, pois até ACM legou o Pelourinho e uma Salvador modernizada aos baianos, enquanto as magníficas construções de São Luís caem aos pedaços e a pobreza grassa no Maranhão).

De qualquer forma, a derrota nas Diretas-Já, seguida da trágica e altamente suspeita morte de Tancredo foram episódios traumáticos e de consequências nefastas para o país – as décadas perdidas, como a história as denominou e como os inegáveis avanços propiciados pelo governo Lula – em relativamente pouco tempo – confirmam. O quanto poderíamos ter avançado se tívéssemos tido um presidente eleito em 1985?

Apesar de tudo, confesso que sinto um grande orgulho de ter participado das Diretas-Já. Foi uma luta justa, que – numa época em que não havia internet – uniu amplos contingentes da população em oposição ao governo de turno e à então toda-poderosa Rede Globo.

Na minha opinião, tratou-se de um movimento mais autêntico do que aquele contra Collor – no qual, embora eu também viesse a tomar parte como cara-pintada, foi, hoje se constata, excessivamente manipulado pela imprensa, Folha de São Paulo à frente. As Diretas-já foram mais intensas, expressaram desejos coletivos longamente repressados e que poderiam vir a ter consequências certamente maiores, se bem sucedidos.

Perdemos a batalha, mas de coração jovem e nobre e de cabeça erguida.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De volta

Como os frequentadores certamente notaram, o blog diminuiu muito o ritmo recentemente (pela primeira vez, ficamos mais de uma semana sem postar). Isso se deveu a três fatores:

1) Fui surpreendido por uma das mais irritantes pequenas tragédias que acometem o ser humano contemporâneo: a perda total do HD de seu computador pessoal. Havia, é claro, um backup, mas ele stava - como sói acontecer com os backups - defasado e não continha os posts que eu deixara quase pronto para abastecer o blog durante as férias;

2) Por falar em férias, estas são a segunda razão da paralisia do blog. Não foram, é verdade, férias com F maiúsculo, mas, aproveitando 2 dias na Bahia para um congresso, sete dias de folga encaixados antes e depois do dito. Ainda assim, o post sobre o jornalismo da Globo News foi produzido numa Lan Hause (com “a” mesmo!) na Chapada Diamantina – um super lugar, um oásis em pleno semi-árido, que mostra o quanto a natureza brasileira pode ser surpreendente.

Recomendo a todos, desde que evitem as agências (que agem como cartel) e seus pacotes que promovem maratonas apressadas entre uma beleza natural e outra e optem pelo slow tourism, contratando, se necessário, os mais eficientes e simpáticos (além de muito mais baratos) guias independentes. Afinal, não faz sentido conhecer uma cachoeira deslumbrante no interior de uma reserva natural baiana se não podemos passar um bom par de horas imerso em suas águas, não é mesmo?

3)E das férias decorre ainda o terceiro fator de semi-paralisia do blog: ao voltar, o acúmulo de trabalhos era tal que foi impossível dar conta de tudo e ainda manter-me ativo na blogosfera.

De qualquer modo, estamos de volta - o blog e eu -, um tanto perplexos com a patética tentativa de, após pesquisar bastante a agenda da moça, ressuscitar o “caso” (êpa) Lina-Dilma e com os esforços da “grande mídia” para culpar o governo federal pelo que a imprensa chama de “crise de violência no Rio” (e que não é nem a primeira nem a segunda nem a última, pois trata-se tão-somente das consequências de uma política de segurança pública equivocada e executada por forças policiais despreparadas para tal, que contam ainda com o álibi do combate ao tráfico como uma desculpa para toda transgressão da lei e abuso cometido contra cidadãos inocentes, porém pobres). Em trecho de um artigo acadêmico escrito em 2000 eu comento o processo:

“Vive-se atualmente, em relação às drogas, no país, uma situação à beira do pânico, de iminente e explosiva irrupção social, uma urgência de crise açulada pelo noticiário sensacionalista sobre violência: fala-se em 'guerra civil', em 'inescrutável poder do tráfico', confunde-se pobreza e marginalidade. Insiste-se muito em repressão e muito pouco em políticas conjunturais efetivas.

Como enfatiza Marilena Chaui: 'Esse horror à realidade das contradições se exprime no modo como a classe dominante brasileira elabora as situações de crise. Uma crise nunca é entendida como resultado de contradições latentes que se tornam manifestas pelo processo histórico e que precisam ser trabalhadas social e politicamente. A crise é sempre convertida no fantasma da crise, irrupção inexplicável e repentina da irracionalidade, ameaçando a ordem social e política. Caos. Perigo' (Conformismo e resistência - Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 60)".

De qualquer forma, o blog retorna, a partir de hoje, à atividade normal. Em breve postarei um texto, de tom algo saudosista (that's the mood that I'm in...), sobre aquela que foi a maior manifestação pública que os de minha geração tiveram a oportunidade de presenciar: os comícios gigantescos pelas Diretas-Já.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Globo News oferece versão oficiosa da violência no Rio

Quem, como este assaz viajante blogueiro que vos fala, foi obrigado a (ou optou deliberadamente por) inteirar-se através do canal a cabo Globo News dos confrontos entre policiais e traficantes nos morros cariocas - que culminaram com o abate de um helicóptero -, defrontou-se, uma vez mais, com um jornalismo quase oficioso, majoritariamente baseado em uma única fonte – os órgãos de “segurança pública” do Rio de Janeiro – e que subestima a inteligência do telespectador.

Claro está que as informações concernentes à “guerra ao tráfico” no Rio sofrem de um problema estrutural, que não se restringe ao jornalismo global e seria de difícil solução em tempos normais, mais amenos, tornando-se quase incontornável sob os ânimos acirrados do presente: a premissa básica jornalística de que se deve ouvir – e publicar também a versão do – outro lado é sistematicamente ignorada ante a constatação de que este é composto de bandidos. Há como resolver tal dilema?

Longe se vai o tempo em que o repórter policial se destacava justamente por trafegar, com igual desenvoltura, pelas delegacias e pelo submundo do crime, utilizando-se da informação neles amealhada como moeda de troca com um e outro universo, revelando ao seu público detalhes e antecipando estratégias de confronto entre as forças do crime e da lei.

Tal mítico personagem, iconizado, na própria Rede Globo, pelo repórter Waldomiro Pena, vivido com garra por Hugo Carvana (e cantado em verso e prosa pelo então chamado Jorge Ben) no seriado dos anos 80 Plantão de Polícia, pertence definitivamente ao passado. Hoje em dia, na improvável hipótese de o jornalismo da Globo querer empregar tais estratégias investigativas, correria o risco de ser enquadrado na figura legal da “associação para o tráfico de drogas” – excrescência jurídica que serve para reprimir qualquer manifestação das classes periféricas e poderia muito bem, se fosse o caso, servir também para calar a imprensa. Felizmente, não há risco de que tal truculência ocorra...

Mas os problemas da cobertura concernente à segurança pública carioca vão muito além da negligência da premissa de “ouvir o outro lado”, evidenciando algumas deficiências inatas a esta: os amplos contingentes populacionais que, não pertencendo à “bandidagem”, se veem em meio ao fogo cruzado entre polícia e traficantes são mais uma prova de que às vezes não se limitam a dois os lados a serem ouvidos.

E nesse quesito a cobertura oferecida pela Globo News revela mais uma vez sua tendenciosa fragilidade: não que os moradores do morro não se fizessem presentes, nas imagens, correndo desesperados em meio ao tiroteio; o que não lhes é concedido é voz – a voz analítica que sai de uma ou mais vozes, ou emana do choque polifônico de opiniões. Ninguém que estivesse no morro ou se apresentasse como morador de lá foi ouvido nas edições do jornalístico “Em Cima da Hora” apresentadas entre 7 e 9 horas da manhã e na edição do meio-dia do domingo (18/10) para algo mais do que afirmar o medo das balas perdidas. Para o jornalismo global, é como se ele fosse um não-cidadão, sem direito ou capacidade analítica para conjecturar sobre o que o aflige.

Ao contrário da espinhosa questão de ouvir ou não o outro lado quando este é um criminoso, estamos aqui diante de um problema bem mais simples, de fácil solução se a Globo se prestasse a produzir um jornalismo um pouco mais democrático e – para utilizar termos que a emissora tanto gosta de empregar - que promova a cidadania. Mesmo se, numa atitude entre zelosa e o preconceituosa, seus repórteres fossem instruídos a não ouvir qualquer morador do morro (pois este poderia ter ligação com o tráfico), eles continuariam tendo à disposição uma série de organizações civis e de ONGs que atuam nos morros cariocas, algumas delas capazes de viabilizar canais de comunicação entre a emissora e moradores ou mesmo de produzir análises bem mais complexas e diversificadas do confronto do que a simplificação grosseira oferecida pela Globo News.

Um terceiro aspecto problemático da cobertura do episódio vem da escolha do indefectível expert chamado para comentá-lo. No domingo, a honra coube ao sociólogo Gláucio Soares, que, enquanto tratava o telespectador como uma criança, chamando a atenção para aspectos que, segundo ele, este não se daria conta, dizia acreditar que uma “revanche corporativista” da polícia (que já teria produzido duas mortes no próprio domingo) deveria ser entendida como “compreensível”.

O mínimo a esperar de um intelectual (ainda que “à sombra do poder”, para utilizar a classificação proposta por Carlos Nelson Coutinho), notadamente em questões de segurança pública, é que ele invoque os pressupostos da razão – aí incluídos os Direitos Humanos -, do tecnicismo e do equilíbrio, sobretudo em uma situação de extrema tensão e revolta; quando ele é leniente com a vendetta coletiva de forças públicas armadas não apenas esvai-se de sua função mas, no caso, incita a barbárie à qual deveria se opor.

É preciso uma dose enorme de ingenuidade para deixar de notar que a escolha dos experts que se sentam à bancada da Globo News obedece a um filtro ideológico rigoroso, acabando por funcionar como uma ferramenta editorial das mais eficientes. Isso não justifica, no entanto, no que se refere à violência carioca, que o principal canal a cabo de jornalismo do país negligencie sistematicamente o conhecimento sobre segurança pública e criminologia produzido por pelo menos cinco institutos de alto nível no estado do Rio, em nome da manutenção de uma visão fundamentalista da questão, visão esta que, como instrumento de manipulação da opinião pública, acaba servindo a seus interesses políticos no estado e na cidade.

Sem fontes outras que esse jornalismo monocórdio, ao espectador da Globo News é continuadamente impingida a versão da polícia – nem sempre relativizada pelo álibi “segundo a Secretaria de Segurança”: à medida que a cobertura avança ao longo do dia, algumas matérias incorporam informações de tais fontes sem nomeá-las.

De minha parte, adoraria poder confiar nas versões da polícia fluminense e do simpático e articulado secretário José Mariano Beltrame. Mas, convenhamos, um aparato de repressão que teve, em cargos e períodos diversos, comandantes como Newton “bandido bom é bandido morto” Cerqueira, como o atual membro da tropa de choque serrista Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), e como Álvaro Lins, que deixou o cargo de chefe da Polícia Civil para usufruir dos serviços de hospedagem de Bangu 8, precisa reconstituir sua imagem e mostrar serviços – e por esta expressão não quero dizer extermínio indiscriminado, mas punição a criminosos dentro dos marcos da lei e proteção a inocentes, sejam estes pobres ou não – para ganhar respeitabilidade e confiança.

Porém, é a uma força com tal currículo – e quase que exclusivamente a ela – que a Globo News recorre para “informar” seus espectadores. Isso não se chama jornalismo. Lamento pelos que se deixam acreditar.


(Imagem retirada daqui)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Méanrreatan Conéquition

Nem Chiquititas, nem Otávio Mesquita, nem Ataíde Patrese e seu microfone de ouro: o programa mais jeca da história da TV brasileira é o Méanrreatan Conéquition.

Além de jeca, é anacrônico, tendo em vista que sua razão de existir é a exaltação do modo de vida – perdão, uêi ófi láife – de um país que se encontra em plena decadência econômica, cultural e imperial.

Pois longe se vai o tempo em que se acreditava na “América” como a terra prometida. O sonho americano transformou-se num pesadelo real, que inclui, além dos preconceitos étnicos de praxe, um sistema de saúde excludente e desumano, a criminalização da pobreza e da negritude, e uma economia que respira por aparelhos.

No, literalmente, front externo, a política americana, mesmo comandada por um presidente laureado com o Nobel da Paz, consiste numa trama belicista aberta (como no Iraque e no Afeganistão) ou dissimulada (como na Colômbia, na reativação da 4ª Frota e nos golpes de estado fomentados aqui e acolá) cujo fim é alimentar a indústria de armamentos – que segue de vento em popa em plena crise - e cujo principal efeito colateral é a morte, a granel, de jovens inocentes. Nada de novo sob o sol.

Mais os quatro patetas embasbacados continuam lá, na bancada do Méanrreatan, com aquela postura de súdito colonizado falando sobre a sede do império e aquela empáfia deslumbrada de jeca tatu em noviorque (ou, o que é ainda pior, em Nova Jersey, no caso do inacreditável Caio Blinder - aquele que ficou triste porque as Olímpiadas não vão ser em Chicago, mas no Rio).

Muda o sentido do fluxo de imigração – agora os brasileiros retornam em massa, fugindo da crise norteamericana -, muda o pêndulo da economia mundial em direção à China (que detém milhões da dívida norteamericana), diminui o peso imperial dos EUA com a ascensão dos países emergentes – Brasil, inclusive.

Mas toda semana tem Méanrreatan Conéquition teimando em nos informar sobre Wall Street e o falido mercado financeiro, Broadway e o chatérrimo teatro mainstream americano, além daqueles artistas plásticos exóticos de noviorque cujo único mérito indiscutível é a cara-de-pau para afirmar que o que fazem é arte.

Os apresentadores, sempre empenhados em gritar ao mesmo tempo e o mais alto possível, são escolhidos a dedo. Para chefiar a trupe de deslumbrados, Lucas Mendes. Fosse eu um Houaiss ou, melhor, um Aurélio, e a mim coubesse escrever um dicionário, o primeiro sinônimo de “insosso” seria “Lucas Mendes”. O homem é mais serviçal do que um mordomo zumbizado.

Há Caio Blinder, que tem a personalidade de uma mosca e a quem um ex-colega de bancada, Paulo Francis, chamava de inseto e tapava os ouvidos com os dedos enquanto ele falava (diga-se o que dizer de Francis, era um reacionário dos piores, mas ao menos tinha cultura, personalidade e humor, quesitos em falta na bancada do Méanrreatan Conéquition).

Ah, tem também aquele economista com cara de moleque, que acha as demandas do mercado mais importantes do que as das pessoas, e o indefectível dioguinho. Mas sobre este me recuso a falar, afinal este é um blog familiar e temos de manter um certo nível. A única pergunta que não resisto a fazer é: se ele gosta tanto de noviorque, porque não fica por lá mesmo, escrevendo no Times? Não precisa responder...

Méanrréatan Conéquition é um programa chato, com uma pauta desinteressante, apresentadores sem apelo ou wit, e que insiste em cultuar uma relação de deslumbre com a cultura e a sociedade norteamericanas, perpetuando a exaltação a "coisas do Primeiro Mundo!". Ele fazia sentido durante os anos de hegemonia neoliberal, em que os políticos no poder e boa parte do país estavam convencidos que o destino do Brasil era seguir a reboque dos EUA, e em posição subalterna.

Os tempos são outros, e se a TV brasileira não se antenar com os rumos contemporâneos, quem vai ficar defasada e deixar de se comunicar com seus espectadores - que já migram em massa para a internet - é ela.

O fato de o Méanrreatan Conéquition ter-se tornado objeto de humor e escárnio é apenas mais um dentre tantos indicativos de que a hegemonia neoliberal chegou ao fim e um multiculturalismo de fato - e não apenas de discurso - toma forma. Passa da hora da TV brasileira atentar para o fenômeno.


(Imagem retirada daqui)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Sobre o neoudenismo

- “Não há nada pior do que o bom-mocismo!” – costuma brandir, com mordacidade e um sorriso maroto na cara de lua cheia, uma amiga de copos e papos, das mais brilhantes professoras que conheço.

Ela, como eu e tantos mais, considera a corrupção um mal dos mais abomináveis, daqueles que não devem nunca ser negligenciados – como às vezes o são por certos colunistas chapa-branca -; uma prática capilarizada em virtualmente todos os estratos sociais brasileiros e que tanto atraso causou e causa ao país.

Porém, para nós, como a frase que abre o post indica, ainda mas execrável do que a corrupção é o moralismo barato que, travestido com os modos e as intenções puritanas do bom-mocismo, a explora, a fomenta e dela se alimenta como os vermes que devoram as entranhas das crianças pançudas: o neoudenismo.

A razão de ser do neoudenismo é o escândalo, jamais a cura dos males que denuncia. A corrupção é sua moeda de troca, os dossiês produzidos na calada da noite a sua leitura; os grampos, os vazamentos e os arapongas os seus fetiches.

Assim, embora afete grande preocupação cívica, ele é, na verdade, anti-Brasil e antipovo: torce pelo pior, deseja o fracasso, anseia pela derrota, pois o sucesso e o progresso do país minam seu campo de ação, diminuem seu status público e ameaçam sua conta bancária.

São figuras que fingem se indignar com a corrupção que grassa no país que só conhecem através do vidro do carro blindado.

Rousseau concebe na espécie humana dois tipos de desigualdades: a primeira seria a natural ou física, estabelecida pela natureza, “que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma”; a segunda, a desigualdade moral ou política, que se caracterizaria pelos diferentes privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros. É justamente para conservar o status quo desta – marcado por pronunciadas assimetrias - que os neoudenistas alimentam as “qualidades de seu espírito” com os sentimentos da ganância, da cobiça, da empáfia e do preconceito, devidamente dissimulados sob o manto da indignação moral.

O “eterno presente” em que, segundo Eric Hobsbawn, vivemos, ajuda a disseminar a crença segundo a qual o neoudenista seria uma cria bastarda do fla-flu político que ora ocorre no país. Ledo engano. Dá-se exatamente o contrário: a impressão de maniqueísmo binário que se depreende da política brasileira é que é, em grande parte, produzida, propositadamente, pela ação do neoudenismo.

Pois em sua corrente sanguínea fluem os vírus antidemocráticos do golpismo: já em sua gênese – o udenismo de Carlos Lacerda – a razão de sua luta era impedir um presidente democraticamente eleito de governar. Qualquer semelhança com as atuais ações de políticos ruins de voto em seus estados de origem - mas sempre com o microfone e as câmeras do Jornal Nacional à disposição - não é mera coincidência.

Os neoudenistas são um pagode de ex-comunistas (como Lacerda), ex-guerrilheiros (como um certo verde que virou queridinho da Veja), ex-cineastas (como aquele que virou comentarista tucano), ex-sabe-se-lá-o-quê. Tentam justificar sua condição de ex como um avanço, o abandono de uma posição equivocada – e, segundo eles, anacrônica – em prol de uma visão desprovida de dogmas políticos, avançada em sua tecnicidade e impecável em sua moral resoluta.

Mas não se trata de nada disso: a única coisa a que o neoudenista renuncia, quando abre mão de tal passado, é justamente à ética, e a favor de uma teleologia cujo fim único é sua autopromoção como jornalista ou político – posições em que, açulados por um oligopólio midiático sem condições para questionar sequer a ética de uma ameba, assomam ao palanque das TVs, revistas e jornais para o seu show de escândalo fácil.

Ele é basicamente um charlatão, mas ao invés de tônicos para crescer cabelos ou para fazer sumir verrugas o que ele negocia, paradoxalmente, é a certeza – verdadeira ou não - de que tudo está sendo corroído, dilapidado, fraudado. Seu público são os ingênuos, as pessoas de bom coração, aqueles brasileiros bem-intencionados e ainda capazes de se indignar e lutar por mudanças, dispostos a berrar palavras de ordem – Fora, Sarney! – sem saber que o que o neoudenista que os inflama quer é tirar um sarney inimigo para botar outro sarney amigo em seu lugar, mas jamais, nunca, em hipótese alguma, alterar as estruturas de onde vicejam sarneys – pois isso significaria o próprio fim dele, neoudenista.

O neoudenismo é como o cinema clássico visto por Laura Mulvey, em sua exploração sadístico/voyerística do corpo feminino: importa-lhe o espetáculo, não a essência; é como o circo para o palhaço: importa-lhe o picadeiro onde faz estripulias, não os bastidores onde bebe até cair; é como um cafetão que tem a moral como a prostituta a explorar visando o próprio lucro.

O neoudenista é, enfim, como o abutre, que o Houaiss define, em uma das acepções, como o “indivíduo que deseja a morte de outrem para apossar-se do que lhe pertence”. A cobiça é o seu motor, a maledicência sua profissão, o denuncismo o seu ganha-pão.

São o contrário do Brasil solar, da esperança, das 30 milhões de pessoas que saíram da pobreza nos últimos anos e constituem uma classe média em ascensão; do gole na cerveja gelada em uma tarde de domingo, das pernas quentes, do beijo molhado, de tudo o que seja sumo, umidade, calor, prazer; são o oposto dos brasileiros que aplaudem o pôr-de-sol nas praias, de jaboticaba colhida no pé, de um movimento de Daiane dos Santos, de uma crônica de Aldir Blanc ou de um chorinho de Pixinguinha.

Pois seu universo é o das vaias e do negativismo; do ressentimento e da crítica destrutiva; da vergonha de ser brasileiro e de falar português; da ojeriza a negros e a cotas; de tudo o que seja popular, massivo, alegre, bronzeado, festivo.

São uma espécime que se alimenta da escuridão e do medo, caranguejo radiativo que “vive no putrefato, lodoso mangue que o anula e o anima; na lacustre, mórbida espera”, como escreveu o poeta.

São os profetas do atraso e os arautos do caos.

São o que há de mais falso e repugnante no país.

Pois o neoudenismo é a hipocrisia em forma de indignação.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

MST e laranjas

O MST é detestado por todos: da direita ruralista à esquerda chavista, passando por tucanos, petistas, psolentos, verdes, azuis e amarelos. Mesmo os que fingem apoiar o MST o detestam.

Isso porque há uma antipatia ancestral e inata contra o MST, esse arquétipo de nosso inconsciente coletivo, esse cancro irremovível que insiste em nos lembrar, mesmo nos períodos de bonança, que fomos o último país do mundo a abolir a escravidão e continuamos sendo uma porcaria de nação que jamais fez a reforma agrária.

O MST é o espelho que reflete o que não queremos ver.

Há duas questões, na vida nacional, que contradizem qualquer discurso político da boca pra fora e revelam qual é, mesmo, de verdade, a tendência ideologica de cada um de nós, brasileiros: a violência urbana e o MST. Diante deles, aqueles que até ontem pareciam ser os mais democráticos e politicamente esclarecidos passam a defender que se toque fogo nas favelas, que se mate de vez esse bando de baderneiros do campo, PORRA, CARAJO, MIERDA, MALDITOS DIREITOS HUMANOS!

O MST nos faz atentar para o fato de que em cada um de nós há um Esteban de A Casa dos Espíritos; há o ditador, cuja existência atravessa os séculos, de que nos fala Gabriel García Márquez em O Outono do Patriarca; há os traços irremovíveis de nossa patriarcalidade latinoamericana, que indistingue sexo, raça, faixa etária ou classe social:

O MST é o negro amarrado no tronco, que chicoteamos com prazer e volúpia.

O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI.

O MST é a Geni da música do Chico Buarque - boa pra apanhar, feita pra cuspir – com a diferença de que, para frustração de nossa maledicência, jamais se deita com o comandante do zeppelin gigante.

E, acima de tudo, O MST é um assassino de laranjas!

E ainda que as laranjas fossem transgênicas, corporativas, grilheiras, estivessem podres, com fungos, corrimento, caspa e mau hálito, eles têm de pagar pela chacina cítrica! Chega de impunidade! Como o João Dória Jr., cansei!


Jornalismo pungente
Afinal, foi tudo registrado em imagens – e imagens, como sabemos, não mentem. Estas, por sua vez, foram exibidas numa reportagem pungente do Jornal Nacional - mais um grande momento da mídia brasileira -, merecedora, no mínimo, do prêmio Pulitzer. Categoria: manipulação jornalística. Fátima Bernardes fez aquela cara de dominatrix indignada; seu marido soergueu uma das sobrancelhas por sob a mecha branca e, além dos litros de secreção vaginal a inundar calcinhas em pleno sofá da sala, o gesto trouxe à tona a verdade inextricável: os “agentes“ do MST são um bando de bárbaros.

(Para quem não viu a reportagem, informo,a bem da verdade, que ela cumpriu à risca as regras do bom jornalismo: após uns dez minutos de imagens e depoimentos acusando o MST, Fátima leu, com cara de quem comeu jiló com banana verde, uma nota de 10 segundos do MST. Isso se chama, em globalês, ouvir o outro lado.)

Desde então, setores da própria esquerda cobram do MST sensatez, inteligência, que não dirija seu exército nuclear assassino contra os pobres pés de laranja indefesos justo agora, que os ruralistas tentam instalar, pela 3ª vez, como se as leis fossem uma questão de tanto bate até que fura, uma CPI contra o movimento (afinal, é preciso investigar porque o governo “dá” R$155 milhões a “entidades ligadas ao MST”, mesmo que ninguém nunca venha a público esclarecer como obteve tal informação, como chegou a esse número, que entidades são essas nem qual o grau de sua ligação com o MST: O Incra, por exemplo, está nessa lista como ligado ao MST?).


A insensatez dos miseráveis
Ora, o MST é um movimento social nascido da miséria, da necessidade e do desespero. Eles estão em plena luta contra uma estrutura agrária arcaica e concentradora. Não se pode esperar sensatez de movimentos sociais da base da pirâmide social, que lutam por um direito básico do ser humano. Pelo contrário: é justamente a insensatez, a ousadia, a coragem de desafiar convenções que faz do MST um dos únicos movimentos sociais de fato transgressores na história brasileira. Pois quem só protesta de acordo com os termos determinados pelo Poder não está protestando de fato, mas sendo manipulado. Se os perigosos agentes vermelhos do MST tivessem sensatez, vestiriam um terno e iriam para o Congresso fazer conchavos, não ficariam duelando com moinhos de vento, digo, pés de laranja.

Mas é justamente por isso que o MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de nós, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade que transgride o tabu e destroi o totem. Portanto, para restituição da ordem capitalista/patriarcal e para aplacar nossa inveja reprimida, ele tem de ser punido. Ele é o outro.Quantos de nós já se perguntaram como é viver sob lonas e gravetos – em condições piores do que nas piores favelas -, à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos dos tanto que os detestam? Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida?

Poucos, muito poucos, não é mesmo? Até porque nem a sobrancelha erótica do Bonner nem o olhar-chicote da Fátima jamais se interessaram pelo desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, nem pelas crianças de 3,4 anos que amanhecem coberta de hematomas dos chutes desferidos pelos jagunços invasores, ao lado do corpo de seus pais, assassinados covardemente pelas costas e cujo sangue avermelha o rio.

Para estes, resta, desde sempre, a mesma cova ancestral, com palmos medidas, como a parte que lhes cabe neste latifúndio.

Para a mídia, pés de laranja valem mais do que a vida humana, quero dizer, a vida subumana de um miserável que cometeu a ousadia suprema de lutar para reverter sua situação.

Mas os bárbaros, claro está, são o MST.

Por isso, haja o que houver, o MST é o culpado.


(Foto dos marginais-mirins do MST, por Sebastião Salgado, retirada daqui; foto das mansões dos assassinos de laranja retiradas daqui)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Brasil e Honduras: dogmas em destaque

O filósofo e historiador Tzvetan Todorov distingue o dogmatismo e o relativismo como duas tendências extremas e polarizadas entre si no exercício da crítica. Ele afirma, não sem mordacidade, que, se instado a escolher entre o debate com um crítico dogmático ou um relativista, escolheria este, já que, ao contrário do que acontece com os dogmáticos, haveria ao menos a possibilidade de estabelecer um diálogo.

Búlgaro radicado na França desde meados dos anos 1960, o hoje francês naturalizado Todorov, no belo discurso que proferiu ao receber o prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais, em 2008 (ao qual é possível assistir aqui, em espanhol), fez uma veemente defesa do direito dos estrangeiros que vivem na Europa à plena cidadania, aí incluídos o direito ao reconhecimento de sua condição de entes produtores de cultura e ao diálogo desta com a cultura do país em que vivem.


Estripulias ardilosas
A evocação de Todorov foi causada pela leitura do material produzido pelos principais jornais, revistas e blogs do país acerca do grave episódio internacional envolvendo a volta a Honduras do presidente constitucional do país, José Manuel Zelaya, o abrigo concedido a ele e sua família na embaixada brasileira em Tegucigalpa e os ataques de que esta vem sendo vítima.

Antes, porém, de examinarmos as estripulias de nossa ardilosa imprensa, convém reconectar algumas verdades essenciais aos fatos, já que elas se perderam em meio ao cipoal de desinformação, alusões fantasiosas e teorias conspiratórias a estes pespegados.

Como reconhece Mauro Santayana, em artigo-oásis no Jornal do Brasil (que respira com a ajuda de aparelhos), Zelaya não pretendia, no referendo que deveria ter ocorrido em julho, disputar um segundo mandato presidencial, mas sim a colocação de uma quarta urna para votar a convocação ou não de uma Assembléia Constituinte. Já estava definido que esta, se instalada, não teria efeito vinculante (ou seja, caso viesse a decidir pela alteração da duração ou do estatuto da reeleição presidencial, tal medida não beneficiaria Zelaya, mas seu sucessor).

Esse esclarecimento é necessário, pois, na euforia midiática que teve lugar, no Brasil, após o golpe de Estado em Honduras - logo transformada em tibieza em condená-lo -, o principal "argumento" utilizado para justificar o golpe de Estado – como se estes justificáveis fossem – era que Zelaya tentaria um segundo mandato, patrocinado por Hugo Chávez, a nova panacéia editorial do continente, como aponta Leandro Fortes em mais um artigo para ler e guardar. Tal premissa levou alguns colunistas mais afoitos a gastar tinta para falar em uma nova modalidade de golpe de estado alegadamente em voga na América Latina: o golpe institucional, que se daria através da alteração das leis, mas mantendo os militares nos quarteis (até agora, Álvaro Uribe, da Colômbia, que esses tais colunistas adoram, é o único responsável pela "voga").

Ainda que a suspeitíssima Suprema Corte hondurenha tenha desautorizado o tal plebiscito – como, agarrando-se a tal argumento como um náufrago a uma bóia, insistem os setores de direita com pouco apreço pela democracia -, isso configuraria um confronto, rotineiro nas democracias, entre dois dos três Poderes: a solução teria de ser negociada, como de ordinário o é em tais países. Nada justifica a destituição de Zelaya - ou de qualquer presidente eleito - na calada da noite, sem nenhum rito público e sob a mira de armas de fogo. Países democráticos podem até depôr seus mandatários, desde que cumprido o ritual processual do impeachment.


Cobertura dogmática
Ao contrário do que afirmam certos blogs que cultuam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo como entidades sagradas e infalíveis, é lícito, sim, questionar a necessidade do envolvimento do Brasil no caso, como o faz a imprensa – na verdade, esta é, idealmente, uma de suas funções precípuas: avaliar as decisões governamentais tendo como horizonte o que julga ser melhor para o país. (Não que sejam esses os motivos para a indignação de nossa imprensa...)

Portanto, é sustentável, na teoria – embora não necessariamente correta –, a posição segundo a qual em nome do restabelecimento da ordem democrática em um país insignificante do ponto de vista comercial ou estratégico, tanto a soberania quanto a instabilidade institucional brasileiras estariam sendo desnecessariamente postas à prova.

Por outro lado, causa estranhamento que a imprensa aja virtualmente como bloco, e que a posição acima descrita seja praticamente unânime. Pois haveria de passar pela cabeça de alguns articulistas que, se o Brasil quer mesmo assumir sua posição de player no cenário internacional, é mais do que recomendável que atue com firmeza para restabelecer a ordem democrática num país sob sua área de influência geopolítica no qual ela foi claramente violada – e através de um tipo de golpe de Estado clássico, que julgava-se condenado aos anais empoeirados da história.

Como meus poucos mas inteligentes leitores já devem ter notado, com essas ponderações acima, uma no cravo, outra na ferradura, estou a fazer um exercício de relativismo, talvez com a pretensão, decerto excessiva, de contrapô-lo ao dogmatismo reinante em nossa "grande imprensa".


Nacionalismo e imprensa
O cenário se complica, porém, ao se constatar que, concedido o abrigo diplomático a Zelaya, a embaixada passa a sofrer represálias por parte do governo golpista (que nossa mídia chama de "governo de facto", o que sugere uma autoridade que ele não tem). Como se sabe, a representações diplomáticas no exterior os tratados internacionais garantem inviolabilidade. Mesmo em golpes de Estado os mais brutais – como no Chile de Salvador Allende, em 1973 – tal jurisprud~encia internacional foi, a princípio, respeitada.

Não que a imprensa tenha a obrigação de defender o Brasil por nacionalismo ou patriotismo. Estas duas modalidades de paixão coletivas, tornadas execráveis em terras nacionais durante a longa hegemonia neoliberal e que agora ensaiam um retorno, podem, de fato, trazer consigo um danoso potencial de manipulação ideológica, do qual a história é farta de exemplos extremos. Como se sabe, os EUA são o único país do mundo cuja população – e a mídia – tem o direito de ser nacionalista e patriota, o que talvez se justifique pelo seu passado pacifista. Imperialista, como nos informa a revista Veja, em matéria de capa, é o Brasil.

Ironias à parte, admitamos que o nacionalismo e o patriotismo não obriguem a imprensa brasileira a tomar uma posição de defesa dos interesses nacionais – embora o fato de a Folha de São Paulo seanunciar como "um jornal a serviço do Brasil" nos permitir meditar sobre a instrumentalização que a imprensa faz de tais conceitos quando de seu interesse. Tal admissão colide, porém, com o que foi afirmado parágrafos acima – que uma das funções precípuas da imprensa seria, idealmente, "avaliar as decisões governamentais tendo como horizonte o que julga ser melhor para o país" – e, portanto, contraditoriamente, com a própria justificativa na qual se baseia a condenação da imprensa à ação diplomática brasileira em Honduras, evidenciando suas reais motivações.


Agressões negligenciadas
Mas o cenário ficaria ainda pior com a reação truculenta dos golpistas ora ainda no poder contra a ação diplomática brasileira. Quando a imprensa negligencia duplamente a agressão a uma embaixada – ao oferecer uma cobertura insatisfatória das graves denúncias contra o governo hondurenho (que incluiria até lançamento de gás venenoso) e ao subestimar a gravidade da violação de leis internacionais – ela transpõe o limite que separa a em si aviltante adoção de uma linha dogmática na cobertura do caso e a conivência com ações inaceitáveis à luz do Direito e da Razão. Viola, portanto, os próprios pressupostos iluministas que sempre conclamou como orientadores básicos da própria atividade jornalística.

O desenrolar da cobertura a partir da consumação do ataque ao território brasileiro no exterior e de sua decorrente condenação pela OEA chegou às raias da irresponsabilidade. Promove-se, desde então, uma tal inversão de valores que se procura fazer crer que o presidente democraticamente eleito e expulso à ponta de baioneta é quem é o provocador, de dentro da embaixada brasileira e, ainda assim, sempre sob o comando do onipresente Chávez. Para completar, as reações internacionais contra um governo que não foi reconhecido por nenhum país vêm sendo minimizadas a favor da repercussão de um jornalismo neocon que é, neste momento, na melhor das hipóteses, continental.

As manchetes oscilam entre o cinismo implícito e a manipulação evidente, tornando-se às vezes peças de humor involuntário – é o caso da Folha de São Paulo de 25/09: "Golpistas acusam Lula de intromissão". O que os editores do diário paulista esperavam que eles fizessem? Saudassem fraternalmente o mandatário do país que dá abrigo ao inimigo que depuseram do poder?

Assim agindo, a imprensa brasileira, em sua militante cobertura do caso hondurenho, torna-se, em última análise, cúmplice da truculência de um governo golpista contra a democracia hondurenha, a soberania do Brasil e as leis internacionais.


Nova doutrina diplomática
Isso justamente em relação a uma operação diplomática que contraria, de forma inédita, uma doutrina estabelecida há mais de cem anos pelo barão do Rio Branco e promove a expansão efetiva da área de influência do Brasil para a América Central, evidenciando assim a posição dúbia do governo Obama em relação ao golpe – em relação ao qual pesam suspeitas de ação de agentes dos serviços secretos norteamericanos.

O leitor que restringe suas leituras à mal chamada “grande imprensa” nacional simplesmente não pôde atinar com os complicados meandros, o ineditismo e o papel primordial que o Brasil vem exercendo para o restabelecimento da ordem democrática no país caribenho e do confronto sutil mas fundamental que tal ação provocou na posição dos EUA, expondo-a e praticamente forçando uma tomada de posição efetiva. A revogação do estado de sítio anunciada hoje é o até agora mais forte indício da efetividade da ação diplomática brasileira.

Fechada em seus dogmas, atrelada tão-somente à defesa de seus interesses, a imprensa assim agindo se iguala ao racista intransigente de que fala Todorov: é um ente em decadência, presa de seu próprio anacronismo e de sua intransigência, cavando a cova de seu próprio descrédito.



Atualização de artigo publicado no Observatório da Imprensa em 29/09.

(Imagem retirada daqui)

domingo, 4 de outubro de 2009

Um momento histórico

Muito mais do que uma importante conquista para o esporte brasileiro, a escolha do Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos de 2016 representa, a um tempo, o reconhecimento do trabalho, da estratégia e da excelência da política externa do atual governo e, se dúvidas ainda restassem, do Brasil como potência emergente no cenário mundial.

Os despeitados, invejosos e os esquerdistas de meia tigela que, como ratos, saltaram do barco à primeira tempestade – perdendo a chance de integrar um governo que tirou mais de 30 milhões de pessoas da pobreza e obrigando-o a alianças com os setores mais fisiológicos da política nacional – insistem num exercício pessimista de futurologia, nas piadas preconceituosas sobre o Rio e os cariocas, no ato ignominioso de torcer para que dê errado.

Ato este compartilhado por uma mídia que abandonou qualquer pudor e age descaradamente como um partido político – aquele que tem uma ave como símbolo e que alimenta o mesmo sentimento anti-Brasil e o deslumbre colonizado com o que vem de fora tão característico de nossa imprensa, morrendo de vergonha do que somos: um país miscigenado, preto e mulato em sua maioria, com um povo de ordinário festivo e espontâneo, de uma alegria corpórea e sexualizada. Um país de contrastes, cosmopolita e provinciano, caipira e urbano, simples e sofisticado - mas com um dom natural para o convívio com o outro, com o diferente, para o exercício do multiculturalismo de fato.

Mas não vale mais a pena, neste momento de felicidade coletiva e de reconhecimento histórico do Brasil como nação, gastar tinta com um ente comunicacional em franca decadência, apartado dos anseios do povo, o qual não o respeita nem é por ele respeitado. Para um exame das questões essenciais a respeito do momento histórico da mídia brasileira basta ler este brilhante texto de Venício A. de Lima. O ostracismo da mídia é o ocaso da tendência política que representa, que ficou sem discurso.

De qualquer modo, o fato consumado é que o profissionalismo do Itamaraty e – como vários jornais europeus reconheceram – a atuação obstinada de Lula trouxeram para a América do Sul, para o Brasil e parao Rio de Janeiro o evento máximo do esporte mundial, que move fortunas, cria milhares de empregos e pode vir a estabelecer um novo patamar de turismo para a Cidade Maravilhosa – que, como diz a música de Gilberto Gil, continua linda –, com reflexos na atividade turística no país.

O Rio de Janeiro merece as Olimpíadas. O povo carioca, de maneira geral, andava com a auto-estima lá embaixo e, os mais pessimistas, cabisbaixos mesmo – o que vai contra sua essência solar e alegre. Como o próprio Lula citou, indo lá longe no tempo, a perda da aura de sede do Vice-Reino, a transferência da capital pra Brasília, o fim da Guanabara e a decorrente decadência econômica estão entre os fatores que ajudam a explicar tamanha tristeza.

Mas o presidente, diplomático como sempre, esqueceu de citar um outro fator primordial: a cruel campanha midiática que o oligopólio de comunicação que domina o estado, para manutenção de seu próprio poder, promove, desde a democratização do país, contra a cidade. Através dessa autêntica operação difamatória, quer fazer crer que o Rio é uma cidade sitiada pela violência. Trata-se, simplesmente, de uma mentira. Como todos os estudos acadêmicos e dos institutos de criminologia mostram, há menos probabilidade de morte violenta em Copacabana e em Ipanema do que em Paris ou em Nova Iorque. O que infla substancialmente os números da violência no Rio – que, ainda assim, não está entre as três cidades mais violentas do Brasil - é o combate ao tráfico nos morros e favelas cariocas, obediente à estratégia norteamericana de “guerra às drogas” – cujos resultados são a manutenção do lucro das fábricas de armamentos dos EUA e a criminalização dos pobres e dos traficantes pés-de-chinelo (pois os tubarões, preservados, estão no asfalto). Se uma forma mais inteligente e menos “enxuga-gelo” de enfrentar a questão fosse adotada, os índices de violência cairiam bruscamente. No momento, intereses políticos impedem a adoção de tal alternativa.

Pode-se acusar Lula de muitas coisas. Mas jamais de não lutar pelos interesses nacionais, como até alguns tucanos empedernidos reconhecem. Enquanto a mídia e a elite jeca brasileira acham uma graça enorme em ridicularizar o ex-operário por suas metáforas futebolísticas, por não falar inglês e por suas derrapadas gramaticais, internacionalmente ele é cada vez mais reconhecido pelas qualidades que realmente importam em um presidente da república: ser um líder carismático e um político hábil, com visão estratégica e comprometido com questões sociais. Enquanto seu antecessor, com aquela empáfia toda, viajou o mundo para se autopromover, com pouquíssimos resultados efetivos para o país, Lula o fez para redesenhar a política externa brasileira para além do eixo Sul-Norte (leia-se EUA), trazendo investimentos e levando-os aos países mais pobres.

As Olimpíadas coroam esse trabalho, ao mesmo passo em que revelam ao mundo um político que põe, de fato, os interesses do país acima de suas vaidades pessoais, tendo, como aponta Leandro Fortes em mais um belo texto, a nobreza de abraçar a candidatura de uma cidade na qual foi duramente apupado pela vaia espessa e covarde do fascismo orquestrado. E, para além dessa espécime rara de político – o estadista - , revela um ser humano que não se furta a expressar em lágrimas abundantes o amor pelo país que governa. Afinal, homem que é homem não tem receio de chorar em público.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Repensando a universidade brasileira - 3a Parte

Este terceiro post da série sobre a universidade brasileira analisa uma questão premente: as condições materiais do ensino superior no país. Inicialmente examinaremos o tema por um ângulo estrutural; em seguida, em relação a professores e funcionários; e, por fim, quanto às pressões que a questão financeira exerce sobre aquele que é, muitas vezes, o elo mais fraco da cadeia: o aluno.

Por economia de espaço, concentraremos o foco no ensino, deixando ao leitor a tarefa de correlacionar as questões materiais por este enfrentadas àquelas por que passam a pesquisa e a extensão, as quais apenas tangenciaremos em nossa abordagem.

Não é nossa intenção fornecer uma radiografia macroeconômica do ensino superior brasileiro e de parâmetros de comparação com o universo universitário internacional baseada em dados e estatísticas. Os sites do MEC, do CNPq e da Capes, bem como os de seus correspondentes estrangeiros, estão aí para quem se dispuser à tarefa. Nossa intenção é, de acordo com o espírito do blog, fornecer uma visão que combine visão pessoal e análise crítica conjuntural.


Assimetrias em série
Uma série de assimetrias econômicas em cadeia caracteriza a universidade pública brasileira. De forma geral e com a possível exceção de setores das estaduais paulistas, não há parâmetro de comparação com a universidade não apenas dos principais países desenvolvidos, mas mesmo com pesos-médio como Coréia e Nova Zelândia.

A tal assimetria, outra, interna ao país, se impõe: entre o nível das instalações, dos materiais pedagógicos e das tecnlogias disponíveis entre uma universidade pública e outra. Não se trata apenas das diferenças entre um sistema gerido pela poder central e outro pelos governos estaduais – no interior mesmo de um e de outro sistema o desnível é gritante. Tomemos dois exemplos dos mais eloquentes, conectados à divisão geoeconômica brasileira e do poder político dela decorrente: a comparação dos recursos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com os da Universidade Estadual do Mato Grosso (UEMT), ou dos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), na cidade homônima do interior de São Paulo, com os da, digamos, Universidade Federal do Piauí (UFP). Como alegar isonomia?

Porém uma terceira assimetria, talvez ainda mais efetiva, tem lugar, graças à autonomia universitária, no interior de uma mesma universidade pública: entre um e outro instituto e, nestes, entre um e outro departamento. A justificativa que se invoca para tais discrepâncias, que notadamente afetam mais as “Humanidades”, diz respeito, mormente, ao custo dos cursos e à prioridade que alegadamente deveriam ter, por seu potencial de intervenção “prática” na sociedade, as “Exatas” e as “Biomédicas”. Bobagem. Com a possível exceção do que se refere ao curso de Medicina, tal discurso não passa de desculpa para maior dotação de verbas a correligeonários, tendo como efeito colateral (não involuntário) a criação de duas classes de profissionais. Trata-se tão-somente de política barata, com todo o sentido pejorativo que a junção dos dois termos implica.

Vamos a um exemplo concreto: pertenço a uma pós-graduação que é avaliada pela Capes com a maior nota em seu campo (Comunicação). No entanto, as condições materiais a que eu, meus colegas, os funcionários e os professores estão submetidos são abaixo da crítica. O banheiro masculino é do padrão do dos piores botecos de Belfort Roxo: a tampa da privada e aquela outra parte que as mulheres fazem questão que nós, homens, levantemos, não se comunicam entre si; a pia pinga de forma intermitente, o que leva os neuróticos/TOC/Monk preocupados com o aquecimento global como eu a perder vários minutos tentando enroscá-la de modo a que ela desperdice o mínimo de água possível. A quais das três modalidades de assimetria acima elencadas deve-se atribuir a culpa por tal estado de coisas? Ou à conjunção de todas elas?


A urgente questão das bibliotecas
Se me perguntassem qual o quesito que, na minha avaliação e de acordo com minha experiência pessoal, mais se sobressai numa comparação entre a universidade brasileira e a norte-americana, diria, sem pestanejar: as bibliotecas. Decepcionei-me, de forma geral, com os professores, os currículos e os métodos; reconheço a supremacia dos espaços físicos, dos equipamentos e das tecnologias em uso, bem como o profissionalismo eficiente dos funcionários; mas o único quesito em que a universidade dos EUA realmente é infinitamente superior à brasileira é, na minha opinião, as bibliotecas. Praticamente não tenho saudades do país, mas sonho em ter novamente acesso àquele universo aparentemente infinito de livros, publicações e filmes.

Compará-lo com o que disponibilizam as bibliotecas das universidades públicas federais é defrontar-se com um quadro depressivo: acervos defasados, incompletos, em péssimas condições, desatualizados tecnologicamente; pouquíssima disponibilização de filmes e de mídias digitais, mesmo em bibliotecas de Comunicação; consulta online de documentos e publicações em estágio primitivo.

Porsua vez, as universidades públicas paulistas, ao menos em parte, provam que é possível oferecer bibliotecas informatizadas, com catálogo não tão defasado e que inclui ao menos o essencial da produção acadêmica em inglês (a qual hoje, queiramos ou não, é essencial ao profissional acadêmico). Comparado com o que, via de regra, as federais e demais estaduais oferecem, afigura-se inquestionável avanço, porém longe de ser suficiente.

Pois trata-se de uma área para a qual são necessários investimentos vultosos e urgentes se o Brasil pretende realmente ter um sistema universitário de ponta - e não uma dúzia de ilhas de excelência. Do contrário, a abertura dos cursos superiores a um número maior de estudantes não passará de uma louvável maior inserção no ensino superior, mas também de um fator de atrofia deste, a impedir que se desenvolva e atue como um dos sustentáculos tecnológicos, científicos e intelectuais de um país que se pretende player global.



Remuneração e condições de trabalho dos docentes
Claro está que discutir a questão dos salários dos professores significa defontar-se com os dilemas que caracterizam nossa Belíndia (neologismo criado pelo economista Edmar Bacha para dar conta de um país que seria metade Bélgica, metade Índia): comparados aos salários da massa de trabalhadores e medidos com a régua do salário mínimo soam polpudos; contrapostos ao que ganham os trabalhadores do andar de cima resultam risíveis.

Mas há alguns parâmetros fora dessa polarização. Um professor universitário hoje é praticamente obrigado a possuir doutorado para passar nos concursos públicos que o habilitam. Para tanto, ele tem de passar entre 10 e 15 anos estudando, dependendo de sua área e do tempo que levar para concluir uma etapa e, com esta concluída, iniciar outra (o que demanda ser aprovado nos concursos para pós-graduação). Superadas todas essas etapas, ele, encarregado de lecionar no nível mais alto do ensino público, formando novas elites,vai receber uma remuneração bruta em torno de R$8 mil por mês, composta, em sua maioria, de abonos e adicionais (ou seja, o salário nominal, aquele que conta para a aposentadoria e para outros direitos trabalhistas, é muito abaixo disso). Basta comparar tal remuneração com a de um profissional liberal com 10 anos de “janela” para constatar que se trata de um “salário” defasado.

Além desse parâmetro, há a cada vez mais cada vez mais inevitável comparação com o mercado docente internacional: os professores brasileiros ganham, em média, e observados a classe e o tempo de serviço, a metade do que percebem seus colegas norte-americanos que lecionam em universidades públicas (isso com o dólar a R$1,80, ou seja, anomalamente baixo).

Há de se considerar, ainda, que a profissão de docente universitário exige atualização constante, com compra ininterrupta de livros e materiais produzidos no exterior. Nesse quesito a falácia da globalização se revela plena: enquanto um professor na Europa ou nos EUA paga, nos grandes sites de vendas como Amazon, X por um livro, mais Y para o correio fazer a entrega (sendo que esta taxa às vezes é de graça, a depender do total da compra), seu colega brasileiro paga os mesmos X pelo livro, mas, obrigatoriamente, 3Ys pela compra, cujo custo total acaba saindo mais do que o dobro daquela feita no "primeiro-mundo" - entidade que a globalização teria supostamente tornada obsoleta.

Porém, para além da questão salarial, há o talvez ainda mais grave problema das condições de trabalho. Trata-se de um problema crônico, que o aumento do número de professores e de oferta de disciplinas – sem o respectivo aumento das condições estruturais para tal – leva agora a uma situação-limite.

Já na primeira vez que lecionei numa universidade pública, em 2001, me defrontei com tal questão: estava eu, com a ansiedade dos neófitos, dando aula quando de repente adentra a classe uma dupla de funcionários da universidade em questão. Pediram uma licença protocolar e começaram a desenroscar o aparelho de TV de seu suporte. Fiquei desconcertado, insisti que não havia nada de errado com ele (pois eu havia acabado de utilizá-lo), em vão: tinhamuma ordem de conserto. Limitaram-se a perguntar que curso era aquele:

- “Semiologia da Imagem” – respondi, abobalhado. Eles fizeram uns muxoxos risonhos, do tipo “não-estamos-nem-aí-pra-sua-disciplina-de-título-presunçoso”, e sumiram. O curso, preparado com grande antecedência para conjuminar filme, leituras e debates, virou estritamente teórico e com aulas preparadas semana a semana, com metade da classe desistindo no meio e a outra metade morrendo de tédio. Ao final, deparei-me, pela primeira vez, com um caso grave de plágio, essa verdadeira praga da era do ctrl-C, ctrl-V. Não pretendo debater esse tema nesta série de artigos, mas fica o registro para não dizer que passei batido por ele.

Recentemente, assisti ao replay da cena: o desespero de um professor de pós-graduação para conseguir exibir filmes à classe. Por três aulas ele lutou contra a improvisação, os aparelhos defeituosos, as salas que, embora reservadas para tal aula, são ocupadas por quem delas tem poder para de lá não sair. Quer dizer, quando um docente de uma área da pós-graduação chamada Análise da Imagem e do Som se vê impedido de cumprir um requisito básico previsto para o seu curso – exibir filmes, seu objeto de estudo por excelência e tema de textos correlatos e de discussões – significa que estamos sendo vencidos por um problema grave.



O funcionalismo federal
É fato que o funcionalismo público federal nas universidades tem bolsões de ineficiência e, em alguns casos, de total negligência. Lembro-me de um setor responsável pelo apoio audiovisual que tinha 80 funcionários – nunca, nos quatro anos de graduação, vi mais de 20, o resto só pegava o cheque. É evidente que isso é uma anomalia a ser sanada. Mau humor e desleixo ocorrem com uma frequência bem maior do que na iniciativa privada – é um fato.

Por outro lado, seria injusto generalizar: há funcionários eficientes e dedicados. Há de se vencer o corporativismo e instalar meios para controlar a assiduidade e a qualidade do serviço. Não se consegue tal coisa, porém, pagando-se os salários baixíssimos ora praticados.

Uma outra questão a ser debatida é a da terceirização de serviços, Confesso que não tenho uma posição isenta: sou crítico desse processo, que desvincula o funcionário da instituição em níveis diversos e cria uma subclasse de funcionários no interior da universidade. Utilizo, uma vez mais, um exemplo pessoal: certa vez cheguei ao prédio da pós ali pelas 7:30 da manhã, para uma reunião que começaria às 8. Fui entrando, acostumado há anos com a instituição. Fui barrado por um segurança fardado, pouco educado, que talvez tivesse treinamento para proteger empresas privadas, mas se encontrava claramente despreparado para lidar com a especifidade da relação de profesores e pós-graduandos com a universidade. Pior: essa função é exercida por funcionários diversos, que se revezam, dificultando a criação dos laços de coleguismo que de ordinário caracterizam a relação entre funcionários, alunos e professores.

Uma maneira de contornar o problema - justamente naqueles cargos que, estando na base do organograma profissional, são extremamente mal remunerados-, e, ao mesmo tempo, criar melhores condições materiais para o aluno, seria instituir bolsas de estudo para que alunos exercessem algumas funções durante meio período. Isso funciona às maravilhas em boa parte do mundo. Dou um exemplo hipotético: aquele cara que cuida do guarda-volumes na biblioteca, sempre com aquele carão mau humorado: remaneje-o para um lugar onde ele possa ascender; substitua-o por dois bolsistas, treinados para um atendimento amável sob o risco de perder a bolsa. Quando o carrancudo se aposentar, não abra concurso: mantenha o sistema de bolsistas. O ambiente fica melhor para os frequentadores da biblioteca, os alunos passam a ter um incentivo extra que os ajuda a se manter e, a longo prazo, o custo é menor.


Dilemas da graduação
Trazendo, muitas vezes, em sua formação as mazelas do ensino público brasileiro – aceleradamente sucateado partir dos anos 70 -, tendo, em geral, de conciliar o estudo universitário com um emprego de baixa remuneração que sua escolaridade permite, crescendo “numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”, como diagnosticou Eric Hobsbawn, o aluno, descrente da política, do futuro, de si mesmo, ocupa uma posição frágil no sistema universitário.

Isso se dá, em parte, devido à sua transitoriedade: para o aluno a universidade é, no mais das vezes, uma forma objetiva de se inserir em melhores condições no mercado de trabalho, não passando de um purgatório de aulas, textos complicados e professores caprichosos; uma vírgula entre a oscilação empregatícia da adolescência e uma carreira profissional com algum reconhecimento social.

Há, evidentemente, exceções. Comparar o corpo discente do curso de Medicina da Unesp de Botucatu com o da Pedagogia da UFPB é defrontar-se com duas realidades distintas: estacionamento repleto de carros importados vs. dificuldades econômicas para tomar o ônibus que leva e traz ao campus; férias na Europa vs. subemprego de período integral concomitante com a faculdade e por aí vai. De qualquer forma, estou certo de que, na média – e excluindo alguns cursos das estaduais paulistas e exceções pontuais aqui e ali -, a imagem criada pela mídia de que os estudantes da universidade pública são parte de uma elite econômica que deveria custear seus estudos não se sustenta.


A profissionalização da pós-graduação
Em relação à penúria total da graduação, na pós-graduação as coisas mudam um pouco, embora ela sofra - talvez de forma ainda mais prejudicial para a formação de seus membros - as consequências em cadeia das restrições materiais acima debatidas e, em um país em que, como revelou a mais recente pesquisa do INPE, os mais instruídos têm mais dificuldade de arrumar emprego do que aqueles sem instrução, se veja obrigada a atender a uma demanda extra dos que a procuram não apenas por necessidades educacionais, mas financeiras (na forma de bolsas de estudo).

É inegável, no entanto, que, do ponto de vista material, as bolsas de estudo melhoraram, se comparadas à penúria dos anos FHC – mas continuam insuficientes para garantir o sustento e, sobretudo, a importação obrigatória de livros que tal nível universitário demanda. Algumas modalidades de bolsas, poucas e difíceis de se obter, trazem uma "taxa de bancada", que ajuda a custear os voos, a estadia e as caríssimas inscrições nos congressos acadêmicos – que, por sua vez, devido a razões que analisaremos no próximo post, tornaram-se itens de suma importância na formação do currículo acadêmico.

Para os bolsistas, portanto, a situação deu uma melhorada, mas precisa melhorar mais, tanto individualmente quanto em relação à penúria material geral. Já para os não bolsistas que não pertencem ao quadro docente superior ou não detém algum cargo que combine flexibilidade de horários e remuneração ao menos razoável, a situação é muito complicada. É mister atingir 100% de oferta de bolsas a pós-graduandos que não trabalhem, exigindo que, em troca, lecione por pelo menos um semestre e cobrando uma interação mais constante com o programa ao qual está filiado. Seria bom para a universidade e para o estudante.

De qualquer modo, dentro do que pode ser feito a curto prazo pelos próprios pós-graduandos, parece-me urgente a união como forma de aumentar o poder de pressão sobre as organizações de congressos, exigindo uma redução substancial do valor das inscrições e o fim da cobrança para inscrever um trabalho sem saber se ele será aprovado ou não - exigência recentemente consolidada e que é imoral, pois é um princípio ético elementar que os custos de um evento do tipo devem ser coberto pelos que dele participam, e não pelos que dele foram excluídos.

O blog adoraria receber comentários trazendo a opinião dos colegas sobre tais temas.


Como se vê, na seara econômica os desafios são enormes para a universidade pública brasileira. Mas com planejamento, aumento substancial do orçamento para o ensino superior, e medidas que coibam a distribuição política de verbas intracampus (nem que seja necessário afrontar a autonomia univerisitária), talvez possam, a médio ou longo prazo, ser amenizados. Uma questão ainda mais intrincada e de difícil reversão é a da ideologia orientadora do ensino superior no país, tema do quarto e último post da série.

sábado, 26 de setembro de 2009

Com vocês, Mestre Caleiro!


Como não está com nada esse negócio de cinema e de jornalismo – que nem profissão é mais! – e dada a urgência em satisfazer minhas humildes necessidades materiais (dar a volta ao mundo de jato particular – acompanhado, of course -, só ficando em hotéis 6 estrelas e comendo em restaurantes de cla$$$$e internacional) decidi diversificar:

Apresento-lhes: Mestre Caleiro!!! – Prediz o futuro e traz a alma penada, digo, a pessoa amada, em 3 dias!!!

Para incentivar a clientela, a primeira consulta, versando sobre as próximas eleições presidenciais, não será cobrada – mas não vão se acostumando, não, que não existe almoço “de grátis” (ou pelo menos não existia até que esse bando de manés como eu decidiu dedicar-se à escravidão voluntária de escrever de graça em blogs).

Atenção para as palavras iluminadas de Mestre Caleiro, aquele que tudo vê:

- De agora até junho do ano que vem, a imprensa inventará 193 factóides visando difamar Dilma Rousseff. Eles surtirão pouco efeito junto ao eleitorado, com exceção das Velhinhas de Taubaté de sempre.

- Entre junho e julho de 2010, um dos candidatos nanicos irá subir como foguete nas pesquisas eleitorais. Não digo qual para preservar o suspense (re, re, re), mas será ou a Marina verde do ecológico partido do Zequinha Sarney; ou a Heloísa de branco do Partido de Suporte à Oligarquia (PSOL) - também conhecido como “criançada do Congresso”, na imortal definição de @flavio_as -, ou o Ciro que sempre morre pela boca e acaba revelando o coronelzinho enrustido.

- Em decorrência dos fatos acima previstos, os demo-gaviões (e, claro, a imprensa) vão soltar fogos. Predigo: será fogo de palha, e em agosto o(a) candidato voltará ao patamar de sempre.

- Em setembro, a menos de um mês da eleição, Serra terá 42,1% e Dilma 34,1%.

- A uma semana das eleições, acontecerão fatos bizarros em sequência: euros em cuecas, montanhas de dinheiro para comprar dossiê contra candidato já derrotado - enfim, o trivial. A imprensa cunhará um daqueles apelidos que “pegam” para designar os auxiliares de Dilma (naturalmente, os culpados): os “abilolados” do PT; Dilma cairá um pouco.

- Na sexta-feira anterior ao pleito, a Globo mostrará com exclusividade o cruel sequestro de um bebê, filho de um político do PSDB próximo a Serra: os sequestradores – entre eles uma mulher clone de Dilma – vestirão camisetas do PT e ameaçarão, ante as câmeras, mutilar a criança se o resgate não for pago. Ninguém (nem mesmo a cúpula do PT, que nessas horas se borra toda) vai perguntar como a Globo conseguiu as imagens, mas Dilma despencará. Euforia nas hostes paulistas!

- O resultado final das eleições no primeiro turno será: Serra, 48,3%, Dilma, 25,6%. Por muito pouco, haverá segundo turno.

- FHC será internado com um quadro agudo de invejite (de Serra).

- Durante as primeiras semanas da campanha eleitoral no segundo turno, os jornais, exultantes como há muito não se via, trarão análises políticas isentas em que as palavras “barbada”, “sopa no mel’ e “Serra já ganhou” serão repetidas à exaustão.

- Mas as primeiras pesquisas revelarão que, a exemplo do que ocorreu com Alckmin e Lula - e à medida em que o sequestro do bebê se revela uma armação -, Serra perderá a vantagem e Dilma subirá. Não será, no entanto, essa a tendência divulgada. Mas Mestre Caleiro, aquele que tudo vê, revela as parciais: Serra, 34,3% vs. Dilma, 47,8%.

- Num desespero de causa, os institutos de pesquisa e os jornais repetirão o que fizeram com Erundina em 1989 e ocultarão os números verdadeiros até os três últimos dias, quando Dilma terá, nas “pesquisas” divulgadas pela imprensa, uma ascensão meteórica.

- Como último lance dos demo-gaviões, rumores de militares dispostos a dar golpe de Estado em SP e no RS caso a ex-militante da esquerda vença serão divulgados com alarde, insinuando um clima de instabilidade institucional às vésperas da eleição.

- No dia 31/10/2010, Dilma vencerá as eleições presidenciais, derrotando Serra por 46,9% a 31,6%.

- FHC será internado no dia seguinte com um quadro agudo de invejite (de Dilma).

- Em 01º. de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tomará posse como a primeira mulher eleita à Presidência da República Federativa do Brasil.


That’s all folks! E como diria o grande Raul Seixas, pra quem provar que eu tô mentindo, eu tiro o meu chapéu...

domingo, 20 de setembro de 2009

"Nova África" mostra excelência da TV pública

Internacionalmente, a imagem da África oscila entre estereótipos como “o continente perdido” e metáforas como o “coração das trevas” de que fala Joseph Conrad – uma região alijada do chamado desenvolvimento capitalista, devastada pela peste, miséria e demais efeitos dos séculos de exploração colonial, habitada por populações cuja sobrevivência dependeria de campanhas humanitárias.

Para o Brasil, apesar de toda a imensa herança que, como elemento formador - e a partir do legado cruel da escravidão -, nos deixou, ela continua sendo um grande enigma. É precisamente esse enigma que a série Nova África, em exibição a partir do próximo dia 25, todas as sextas-feiras, às 22hs, na TV Brasil, tenta desvelar.

Dirigida pelo jornalista e blogueiro Luiz Carlos Azenha e por Henry Daniel Ajl, a série se propõe a empreender uma “jornada de descoberta”, inédita na TV brasileira, pelo continente africano, revelando-o em sua diversidade, para além dos tais estereótipos imperialistas, com uma atenção especial a seus povos e culturas e à capilaridade de suas relações com o Brasil.


Primeiro programa enfoca Moçambique
Essa jornada começa em pleno mar, que a um tempo une e separa Brasil e África e ocupa um lugar central no imaginário artístico de boa parte da produção desses dois gigantes periféricos tão perto e tão longe entre si. Um barco navega no Oceano índico, que separa o continente africano da ilha de Moçambique, tema do primeiro programa da série de 26 episódios produzida pela Baboon Filmes, que venceu edital público da TV Brasil.

A estratégia narrativa desenhada pelo roteiro permite, a um tempo, retratar a África a partir da perspectiva dos africanos – evitando abordagens condicionadas por um vício imperialista que, como aponta o escritor moçambicano Mia Couto, tem produzido uma imagem falsa do continente – e garimpar os veios de ligação da cultura africana com a brasileira. A primeira operação é propiciada não apenas por entrevistas que evitam as fontes oficiais e interagem da forma mais espontânea possível com o interlocutor, mas por um olhar atento, cúmplice (imerso, e não de fora) ao modo de vida nos países percorridos.

Já a ligação do continente com o Brasil é uma teia tecida de forma sutil e intermitente, num primeiro nível através da repórter Aline Midlej, que já no episódio inicial, em solo africano, declara: “Como muitos brasileiros, tenho dúvidas sobre minhas raízes. Sei que alguns de meus antepassados familiares saíram daqui, e é tudo. É como se minha história familiar se perdesse na imensidão do continente”. E, enquanto imagens em sucessão mostram cenas de um cotidiano que bem poderíamos reconhecer como o de muitas pessoas no Brasil – mas que não deixam de ter um quê especial - a ligação com o continente deixa de se dar a partir da subjetividade da repórter e se anuncia coletiva: “mas qualquer um é capaz de reconhecer esse ritmo, esses sorrisos, esse jeito de ser”.

Num segundo e mais explícito nível, a ligação África-Brasil é objetivamente tematizada pela abordagem narrativa. No primeiro episódio, por exemplo, isso se dá tanto através de uma reconstituição "subjetiva" da chegada à Ilha de Moçambique do navio Nossa Senhora da Conceição, que em 1792 levou sete dos "inconfidentes" mineiros - cujas penas capitais foram comutadas por degredo em colônias portuguesas. Entre eles, Tomás Antônio Gonzaga, o autor de Marília de Dirceu, que prosperaria em terras africanas. Por vezes, o dualismo África-Brasil é superado pela evidência de uma cultura pan-portuguesa, como na ligação entre Camões (que morou em Moçambique, numa casa semi-arruinada visitada pelo documentário) e a poética luso-brasileira. Mas o momento climático do primeiro episódio se dá através do relato emocionado de uma moçambicana de sua relação com as novelas brasileiras.

Assim, evidencia-se que mais do que o continente em si, são as mulheres e os homens africanos e a cultura – na acepção ampla do termo – que produzem o centro do interesse de Nova África. O documentário, desse modo, não apenas possibilita o contato com uma realidade sócio-cultural da qual a grande mídia nos mantém afastados, mas o faz em grande estilo: com imagens belas mas jamais folclóricas, conteúdo rico em sua diversidade e curiosidade antropológica. Como o demonstra o relato de Conceição Oliveira, que prestou consultora de História à produção:

“No segundo programa, no interior de Moçambique, encontramos a professora Diamantina embaixo de um cajueiro. Era sábado, dia de entrega de material. A cena é fabulosa, passávamos pela estrada e vimos uma roda imensa de crianças ao redor do cajueiro, protegidas do sol pela copa da árvore. Ela dá aula sozinha para 360 alunos em condições distantes da ideal - e não precisa dar um grito para ter atenção. Foi uma lição de vida para todos... Você vai se emocionar, as crianças cantaram lindamente para nós, chorei. Aliás, as crianças de Moçambique me emocionaram sempre”.

Excelência técnica e imersão emocional
A direção de fotografia da série (Markus Bruno) não pode ser considerada menos do que primorosa: gravações tecnicamente bem-resolvidas, mas feitas no calor da hora, no melhor estilo jornalístico, combinam-se a tomadas que evidenciam um cuidado extremo não apenas com angulações, movimentos de câmera e composições de quadro, mas em trabalhar a luz – no mais das vezes intensa e natural – de modo a realçar o universo multicolorido do continente sem folclorizá-lo.

Tais imagens são trabalhadas por uma montagem que é ágil sem jamais ser neurótica e “videoclipada”, como ora em voga: respira, tem ritmo; não se furta a compor mosaicos com imagens em profusão, mas respeita a relação com o objeto retratado, não hesitando em se deter em determinada tomada por um tempo mais longo, se conveniente. E, embora a ficha técnica não elenque sound design ou montagem de som entre seus quesitos, o som é tratado com especial atenção, seja em relação à imagem, como elemento de condução da narrativa ou exercendo a função de realçar a riqueza musical da África. Trata-se de um aspecto técnico tratado com um apuro raro de se observar em produções jornalístico/documentais da TV brasileira.

Desnecessário dizer que as manifestações sonoras retratadas são, literalmente, um show à parte – valorizado, no caso, pela trilha sonora e pela mixagem de Rafael Gallo. É na música e na dança, mais do que em qualquer outra arte, que a excepcional aptidão artística dos africanos se evidencializa, como manifestação de uma alegria que não sem frequência contrasta com a escassez material em volta:

“Voltei com a sensação de que se há um continente onde seus povos são sinônimo de resistência é o africano. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida como pessoa, estudiosa do assunto, como mulher – afirma Conceição, que promete postar em seu blog algumas histórias sobre a empreitada e “pôr no ar algumas fotos dos sorrisos mais lindos que vi na vida” (o primeiro texto já esta lá, confira).
Um tema tão raras vezes visto nas telas brasileiras, tratado com tamanha sensibilidade e alto grau de excelência técnica, prova a que veio uma TV pública que foi injusta e impiedosamente combatida por certos setores da mídia e pelas penas de aluguel a seu serviço. Pois, caro(a) leitor(a), não se deixe iludir: nenhum canal comercial ousaria produzir uma série com tamanha qualidade, que se estendesse por tanto tempo e sobre um assunto sem apelo comercial para os grandes anunciantes - porém, como a própria série demonstra, essencial para uma melhor compreensão não apenas da África e dos africanos, mas, através dela, do que somos nós: é a TV pública brasileira dizendo a que veio.


Veja o trailer de Nova Àfrica



Nová África: Todas as sextas, 22h., na TV Brasil.

Making of:
Segunda, 21/09, 20h.


(imagem retirada daqui)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Repensando a universidade brasileira - 2a Parte

Neste segundo dos quatro posts sobre a universidade brasileira, abordamos as vicissitudes teóricas que têm marcado a academia brasileira na última década e seus efeitos na formação de novas gerações de estudantes e na dinâmica do relacionamento extra-muros com a sociedade como um todo.


A questão do cânone
Um primeiro ponto a debater diz respeito à eleição por demais limitada de determinadas tendências e autores como cânones acadêmicos e à substituição da formação do senso crítico do aluno - e do estímulo à sua manifestação - pelo culto a um grupo restrito de pensadores [refiro-me às Humanidades de forma geral; sugiro ao leitor de outras áreas que correlacione exemplos utilizados aos de sua seara, se tal prática lá se der].

Ressalte-se que, como aponta Harold Bloom em um texto célebre, cultivar um cânone pode ser, no mais das vezes, um procedimento acadêmico salutar. Para ficar num exemplo simples, pensemos, pois, no absurdo de um departamento de Literatura Brasileira que não incluísse entre suas referências bibliográficas primárias a obra de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa.

O primeiro perigo a ser contornado, no entanto, é o engessamento desse cânone e, ainda mais, a recusa em abordá-lo a partir de novas abordagens e perspectivas – refere-se justamente a tais procedimentos a acepção pejorativa que impregna o termo academicismo.

Porém, algo ainda mais perverso do que cultivar um mesmo cânone teórico e filtrá-lo por uma sempre mesma abordagem é coibir seu questionamento e as críticas a ele dirigidas, entronizando-o, na prática, como objeto de culto acadêmico. É precisamente o que ocorre hoje na universidade com o cânone pós-estruturalista.


Culto no lugar da crítica
Trata-se, na verdade, de um problema que não se restringe à academia brasileira, mas encontra-se disseminado internacionalmente. O, com o perdão do pleonasmo, culto acrítico ao cânone – e, no caso, a mais ou menos o mesmo cânone pós-estruturalista ora em voga no Brasil - seria, sem dúvida, uma das características mais negativas que eu apontaria em minha experiência como pós-graduando nos Estados Unidos; recentemente, no Rio de Janeiro, ao ciceronear dois acadêmicos franceses (Paris III Sorbonne e Paris X Nanterre), seus relatos confirmaram o que breve contato anterior com a academia francesa sugerira: o culto a Foucault, Deleuze e os pós-estruturalistas os tornou quase intocáveis na própria França. (A propósito, os que enxergam tanta contestação e espírito crítico nesses pensadores deveriam atentar para o paradoxo de que eles se tornaram a tradição que não se deixa contestar.)

Tomemos Foucault como objeto de análise representativo do pós-estruturalismo. Não restam dúvidas de que ele (e Deleuze, e Derrida, e Barthes, entre outros) é um intelectual de alto gabarito, que alia a visões originais, agudas e às vezes prefiguradoras de processos sociais um talento para a escrita que talvez só encontre paralelo em Freud. Daí a colocá-lo na condição de demiurgo da sociedade contemporânea (isso há um quarto de século), cultuando-o como a um deus e ajustando os fatos às análises para, ainda hoje, atribuir-lhe faculdades clarividentes (é precisamente o caso do que eu chamo de “visão vulgar da biopolítica”, largamente disseminada), vai uma distância que, na academia, é inaceitável que seja percorrida.

A menção a Freud não é vã. Ao contrário de Foucault, ele se afirmou como referência intelectual incontestável – a um ponto tal que o século XX é às vezes referido como “o século de Freud” – após ter seu trabalho agressivamente contestado por décadas a fio. Ele passou no teste histórico. Foucault, que emergiu em pleno linguistic turn e seguiu a onda, permanecendo em sua crista num momento em que, no pós-68, a academia (notadamente a norte-americana, cuja capacidade de imperialismo cultural não deve ser menosprezada) precisava desesperadamente de novos cânones teóricos - , não foi sequer a ele submetido. Em plena crise econômica mundial e num momento de extrema concentração de riqueza em âmbito mundial, passa da hora de analisar de forma realista os efeitos da práxis (micro)política de Foucault, cujas teorias negligenciam de forma patente o papel das análises econômicas.


As críticas ocultas
Não que não existam críticas. O difícil é, em meio às igrejinhas acadêmicas e à atmosfera de turba que discutiremos na próxima seção deste post, fazer circulá-las. Por exemplo, historiadores em penca questionam (e às vezes ridicularizam) o conhecimento histórico de Foucault - elemento essencial de obras como Vigiar e Punir e Naissance de la clinique - e nunca é demais lembrar que ele foi capaz de escrever uma história da sexualidade que negligencia Sappho e dá pouca atenção ao homossexualismo feminino. No Brasil, além do que resta da crítica neomarxista de alto nível, são raras as obras que conbinam contundência e equilíbrio na abordagem do legado de Foucault – como é o caso de Cinismo e Falência da Critica, de Wladimir Saflate (cuja excelente resenha assinada por Alex Nodari, seguida de um bom debate, pode ser lida aqui).

A propósito, considero falsa a alegação, que vem de longa data e da pena de diversos autores, que a universidade brasileira se dividiria entre pós-estruturalistas e “uspianos marxistas”. Primeiro porque, se a última categoria se restringe a apenas uma universidade (ou, vá lá, a apenas uma tradição acadêmica específica) não é suficiente para “dividir” a universidade brasileira; segundo, porque tenho acompanhado de perto o processo de renovação de docentes das universidades federais e posso assegurar que, nelas, o predomínio dos pós-estruturalistas (a maioria muito mais fanática pela tendência do que seus mestres) é maciço.

Essa nova geração de professores, carente dos conhecimentos históricos e etimológicos abrangentes proporcionados pela filologia alemã e com domínio rudimentar em Economia da Cultura, encontrou no economicismo e historicismo rasos transformados em jogos mentais brilhantes de Foucault et caterva o bilhete de ingresso à docência universitária. São justamente os responsáveis pela repetição, no Brasil, da atmosfera de culto aos pós-estruturalistas predominante em muitas das universidades dos EUA - em detrimento do aperfeiçoamento da capacidade crítica de seus pupilos, que só o contato com diferentes correntes de pensamento proporciona. Como consequência, cheguei a constatar, em um congresso de cinema, que 1/3 das comunicações fazia referência a Foucault e/ou a Deleuze - a maior parte delas utilizando de forma vulgar e meramente classificatória os conceitos de "sociedade disciplinar" e "sociedade de controle" (que, como verifica-se em boa parte da produção dos principais autores do pós-estruturalsimo, são conceitos ricos em significação e possibilidades; minha crítica é à vulgarização de seu uso).

Soa simplesmente inacreditável que jovens professores de pós-graduação – que supostamente deveriam renovar os ares da academia – continuem não apenas impingindo a seus alunos uma dieta básica do mesmo pós-estruturalismo francês velho de guerra, mas o façam sem oferecer contraponto crítico e numa atmosfera de preito e de reverência quase religiosa às palavras de seus principais autores, como tenho podido, estupefato, observar com meus próprios olhos.

Cultos são inaceitáveis na academia. A universidade não é igreja.


Estrutura incentiva formação de “igrejinhas”
Colaboram sobremaneira para essa formação de igrejinhas acadêmicas onde São Foucault, São Deleuze e outras divindades pós-estruturalistas são cultuadas – num processo que inclui tribalização de vocabulário, vestuário e concepções de mundo – três fatores, agravantes dos efeitos dessa veneração que substitui o que deveria ser uma abordagem crítica.

O primeiro é o prazo extremamente reduzido de dois anos para completar o mestrado, determinado pelas diretivas que estruturam o ensino superior no país (que serão analisadas no quarto e último post da série). Além de não permiter ao mestrando aprofundar pesquisas e criar para si um leque variado de opções teóricas, ele faz com que importe, cada vez menos, a obtenção, por parte do aluno, da Urteilskraft kantiana, da capacidade de julgar que, na comunicação “Contra o minimalismo no mestrado”, publicada em 1999, no momento imediatamente anterior à implementação das mudanças ora vigentes nas pós-graduações, o psicanalista Renato Mezan ressaltava como o principal bem a ser adquirido durante tal etapa da formação acadêmica.

O segundo fator, já abordado no post anterior desta série, deriva do jogo de interesses e bajulações estimulado para a ascensão acadêmica – no qual, “naturalmente”, a tendência é que o orientando assimile e reproduza as preferências teóricas do orientador como forma de prestigiá-lo.

Ligado à questões materiais do ensino superior brasileiro - tema do próximo post da série -, o terceiro fator é a própria oferta reduzida de livros e demais fontes disponíveis nas bibliotecas universitárias e as dificuldades dos professores para manterem-se atualizados. Incorre em erro quem julga que as facilidades para importação de livros trazidas pela globalização e o fato de a maioria da clientela das pós-graduações ser da classe média para cima sejam fatores suficientes para contornar o problema (mesmo porque, a princípio, é a universidade quem deve oferecer condições apropriadas para pesquisa, incluindo disponibilização de fontes atualizadas).


Universidade e sociedade
Outra vertente central da questão diz respeito à conformação do conhecimento produzido no interior da universidade, sob os auspícios do culto a tal cânone, e sua influência nas relações entre academia e sociedade. Se, historicamente, a massa crítica que aquela produz só muito rara e pontualmente assoma ao debate público - para o qual seria das instâncias mais capacitadas a aprimorá-lo – o predomínio do pós-estruturalismo, com suas categorias verbais pouco consistentes e a opacidade aparentemente proposital de alguns de seus autores (não é o caso de Foucault nem de Deleuze) representa um emprecilho a mais para o desenvolvimento de tal relação.

Não estou com isso querendo dizer, com o perdão da simplificação, que a universidade deva rebaixar seus alegados padrões de excelência para dialogar com a sociedade, mas defendendo uma maior abertura a outras linhagens intelectuais e abordagens não tão repetitivas e menos desinteressantes ao debate cultural do que as vigentes sob o domínio proto-religioso do pós-estruturalismo. Pois é certo que há temas à mancheia com potencial de atrair parcelas da sociedade sendo desenvolvidos no interior da academia - e é evidente também que há maneiras diversas e interessantes de abordá-los com excelência acadêmica e estimulando tal diálogo. Porém, no viciado esoterismo pós-moderno que ora vige, a conjunção dos dois fatores tem sido extremamente rara.

Para além dessa questão especificamente teórica, há, ainda, para a universidade pública, o dilema entre interagir com a sociedade (que a sustenta) sem deixar-se cooptar pelo mercado – particular e justificadamente delicado no campo das chamadas “ciências humanas”. As dificuldades naturalmente impostas por tal dilema não justificam, no entanto, o hermetismo e o isolamento deliberado a que se assiste, e que não derivam exclusivamente dos efeitos da presente estruturação do ensino superior impingida pela burocracia acadêmica, mas também de seus usos e costumes internos. Assim, no minueto acadêmico, sobram salameleques e pompas; faltam incisão, pungência e, sobretudo, diálogo crítico com a sociedade.


Futuro incerto
O cenário que se desenha para o futuro parece intensificar o hermetismo e o isolamento (ou o reverso deste: a cooptação acrítica): as pós-graduações em Humanidades, por exemplo, vivenciam, há mais de uma década, um processo viciado de esvaziamento intelectual e onanismo teoricista. Capacidade analítica, cultura geral e bagagem literária pouco importam nesse cenário. Conta escolher, nesta ordem, uma “base teórica” que impressione (de preferência com a vanguarda francesa pós-pós-estruturalista de moda) e achar um tema up-to-date que nela se encaixe (quanto mais abstrato e apartado da realidade, melhor: com um projeto que analise os templates dos sites ucranianos de times de futebol de botão você tem uma chance enorme de entrar no mestrado; com outro que examine as referências sócio-econômicas nas letras de músicas produzidas pela nova geração do samba carioca suas chances se aproximam de zero).

Esvaziado os pendores críticos, sob o império do tecnicismo, das metas e prazos cada vez mais reduzidos, do teoricismo como um valor em si, “o sistema como um todo está montado para eliminar toda toda originalidade, qualquer coisa que inflame minimamente, qualquer coisa excitante, qualquer coisa extravagante”, como observa Camille Paglia, falando de um contexto estrangeiro mas que,descontados os fatores materiais, é cada vez mais o nosso (a propósito, eu sugeriria a qualquer pessoa interessada no tema que lesse a “Carta aberta aos estudantes de Harvard”, que a autora fez publicar em 1994. É um retrato acabado da universidade brasileira hoje). Seria o retorno, uma vez mais, de nossa incapacidade crítica de copiar de que falava Paulo Emílio Salles Gomes, em versão acadêmica e em pleno século XXI?

Quais serão as conseqüências dessa assepsia crítica para a formação das novas gerações de pensadores? Não há razões para otimismo.