
Um dos fenômenos mais recorrentes - e perturbadores – trazidos no bojo da internet é o da formação da atmosfera de turbas, que reagem como manadas ante determinados acontecimentos.
Particularmente encontradiço em relação a questões como esporte e política, o fenômeno toma forma através de pessoas que, interagindo em redes sociais como Twitter, Facebook ou Orkut, formam grupos unidos por afinidade de ideias.
Até aí, tudo bem, é esse o princípio e um dos prazeres da coisa – a questão é que, não sem frequência, essas semi-unanimidades artificialmente forjadas (já que os de opinião contrária existem, apenas não são incluídos no grupo) têm degenerado em intransigência e linchamento ideológico coletivo contra os seus alvos.
A repercussão ad infinitum dos fatos mais graves, que é estimulada pela atmosfera de turba ao mesmo tempo em que acirra esta, tem levado a recorrentes exageros. Um dia desses, no Twitter, Raphael Neves, do politikaetc., protestou de forma resoluta contra a facilidade com que andam utilizando a denominação “nazista” para acusar algo ou alguém. A explicação didática que forneceu sobre a incompatibilidade entre nazismo e privatização neoliberal me fez rir, mas o assunto é sério.
Seria fácil exemplificar o processo de formação de atmosfera de turba utilizando-me dos internautas de direita, vários deles reunidos em torno de um patético guru, a serviço do que de pior a imprensa brasileira ora tem a oferecer, e a quem – numa demonstração de infantilidade e submissão intelectual - chamam de “tio”. Repetem, muitas vezes em forma de trolagem, as palavras de ordem e os raciocínios rasos de tal demiurgo, plenos de preconceitos de classe e do direitismo intelectualmente pobre que representa.
Mas esse exemplo seria por demais óbvio e improdutivo: o que me interessa é apontar tal comportamento entre os que pertencem ao mesmo estrato ideológico que eu: a esquerda. Os exemplos existem à mancheia, mas vou citar apenas três deles – dois brevemente e um de forma mais detida -, em que a atmosfera de turba se sobrepôs aos ditames da razão e do equilíbrio.
O caso Casoy
Comecemos pelo caso que está na ordem do dia: a ofensa proferida por Boris Casoy contra dois garis, a quem - utilizando o mesmo palavrão que, na boca do presidente Lula, tanto escândalo provocou entre jornalistas -, ridicularizou por ousarem, “do alto de suas vassouras”, desejar feliz Ano Novo aos telespectadores do Jornal da Band.
Trata-se, evidentemente, de uma atitude deplorável. Revela, de forma inescapável, um preconceito de classe o qual sempre fora latente, (mal) dissimulado nas opiniões desabusadas de Casoy contra o que fosse popular – incluindo o atual presidente, seu governo e boa parte dos governados -, mas nunca antes tornado tão explícito.
Daí a generalizar, dizendo que todos os jornalistas da “grande mídia” são assim – como mais de um blogueiro tem feito, em posts multiplicados ene vezes via Twitter - vai uma distância enorme, que só pode ser percorrida com fatos que a autorizem. Com o perdão da obviedade, jornalistas são seres humanos: muitos, como Casoy, sucumbem ao convívio com o poder e às benesses materiais, mas outros tantos, mesmo na "mídia gorda", são profissionais sérios e pessoas bem-intencionadas, sendo que alguns têm uma história em prol da democracia e das lutas sociais. É fato que grande parte da mídia corporativa tem se comportado de forma inaceitável – o que acirra ódios -, mas acusações generalizadas ou dirigidas a apenas uma classe de profissionais são, em princípio, mistificadoras e antidemocráticas.
Porém, o caso é muito mais grave do que isso. Confesso que foi uma grande decepção ver pessoas a quem respeito chamarem Casoy de “extremista de direita” e “comprarem”, mesmo sem prova alguma, que ele teria pertencido ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Ora, qual é a diferença entre acusar Dilma de terrorismo, como vêm fazendo, mesmo antes do episódio da ficha falsa, grupos direitistas, e, com evidências tão frágeis quanto as por aqueles utilizadas, acusar Casoy de ter pertencido ao CCC, como insistem alguns blogueiros? Essencialmente, nenhuma, a não ser o sentido ideológico da acusação.
Alega-se que a “informação” que “sustenta” a acusação contra Casoy está na Wikipédia. Mas desde quando a enciclopédia wiki – a mesma que, semanas atrás, era o Judas da vez, por negligenciar um importante ativista cibernético – tornou-se fonte única confiável? Os blogueiros que publicaram tal “informação” preocuparam-se em ouvir o outro lado (como com frequência cobram dos jornalistas profissionais)? Ou ao menos em saber em que contexto O Cruzeiro publicou a “informação” repercutida pela Wikipédia? Será que acham que a revista do mega-velhaco Assis Chateubriand, veículo para as jogadas mais sujas da história da imprensa nacional antes da derrocada atual, é merecedora de nossa confiança?
De novo, estamos diante de uma contradição. Alguns desses blogueiros rápidos no gatilho, disparando a pecha de “extremista” contra o jornalista preconceituoso, são os mesmos que se indignam – corretamente, a meu ver – quando a “grande mídia” chama Heloísa Helena ou Dilma Rousseff ou o deputado Babá de “radicais”. O problema é que, reproduzindo, em sentido inverso, a leviandade das acusações da mídia gorda (ao chamar Casoy de “extremista”), coloca-se em risco a autoridade moral para criticar a distorção ideológico-discursiva que o emprego do termo “radical” contra certos políticos implica.
Portanto, a atmosfera de turba pode estar levando a blogosfera a emular, de forma inconsciente, os métodos da “grande mídia” que tanto critica - e, no caso, assimilar e reproduzir os procedimentos do inimigo pode vir a significar a ele se igualar, tornando-se dele indistinto do ponto de vista moral e axiológico.
Caetano & FHC
Processo similar ao que ora se aplica a Casoy foi vivenciado por Caetano Veloso após acusar o presidente Lula de “analfabeto” e de “cafonice”, para deleite da direita.
A inconstância política é não apenas um traço recorrente do compositor e cantor baiano, mas uma sua arma de marketing, que sempre usou de forma despudorada, desde os tempos da Tropicália. Conseguiu, ainda assim, enganar os incautos e convencê-los da natureza politica strictu sensu do movimento tropicalista, para o que muito contribuiu o episódio de sua prisão pelos militares – a qual só se justifica por profunda ignorância política ou por desejo intencional de instrumentalizá-la a seu favor, como de fato veio a fazer. Afinal, a maioria dos artistas com grande visibilidade pública e mais de dois neurônios já havia se exilado por conta própria, para escapar das garras da repressão.
O gosto de Caetano pelos holofotes só é superado pela inconstância e idiossincrasia de suas opiniões, como um post do Blog do Mello ilustra com humor.
Já sua carreira musical, caracteristicamente irregular, encontra-se há tempos em decadência. Nos últimos anos decidiu cantar rock, formando um power trio que inclui um jovem guitarrista, André Sá, que produz um som mais chato do que um pernilongo amplificado.
Há razões, portanto, para criticar Caetano Veloso pelos mais variados motivos. Pode-se também, é claro, simplesmente detestar (ou ser indiferente a) tudo o que ele produziu – afinal, gosto não se discute.
Mas riscar Caetano Veloso da história da música brasileira por conta de uma declaração – infeliz, preconceituosa, babaca, mas uma declaração –, como alguns tentam ostensivamente fazer desde que se deu o episódio, é que não dá. Primeiro, porque isso é procedimento típico de ditaduras. Segundo, porque, como artista, Caetano esteve na liderança de um movimento que empreendeu uma mudança conceitual na relação da música brasileira com seu próprio passado e com as referências culturais internacionais, através da atualização da antropofagia oswaldiana, instaurando uma nova dinâmica cultural, pós-colonial, que colaborou para que o Brasil tenha a riqueza e a diversidade musical – únicas no panorama mundial - que tem hoje. Só por isso, o nome de Caetano Veloso já estaria inscrito na história da cultura brasileira, goste-se ou não.
Mas, mesmo passado o ápice tropicalista, ele ainda viria a produzir canções em relação às quais seria preciso muita insensibilidade para renegar a beleza, como "O Ciúme", "Tigresa", "Oração ao Tempo", "Um Índio", "Haiti" ou "Desde que o Samba é Samba", entre tantas outras. Por fim, seria preciso muito desconhecimento da história da produção fonográfica nacional para não se dar conta do grau de excelência que, nesse quesito, o disco Fina Estampa (1994) representa.
Mais incongruente, e mais revelador da força da atmosfera de turba, foi a reação daqueles que, embora admiradores da arte de Caetano há décadas, passaram, por conta do episódio, a renegá-la (ao menos em público) para poder participar do jogo coletivo de atirar pedras na Geni. Como se fosse impossível deplorar as declarações de Caetano mas preservar as afinidades eletivas que sempre tiveram com sua produção musical. Resultado: baniram o artista por delito de opinião. Tal e qual numa ditadura.
Assim, um brasileiro volta e meia saudado pela imprensa internacional, passa, devido à luta política, a ser rejeitado por setores políticos em seu próprio país - num processo similar ao que ocorre com ningupem menos do que... Lula! O que faz com que, por analogia, a reação intransigente da turba contra Caetano guarde similaridades com a reação da direita em relação ao atual presidente. Dá o que pensar.
Por fim, há o caso de FHC. É odiado por muitos e, convenhamos, deu (e continua dando) razões para isso: as políticas recessivas, anti-povo de seu governo estavam, pode-se hoje afirmar categoricamente, equivocadas, e tiveram um custo alto para o país, sobretudo para os mais pobres. As privatizações que promoveu foram desastrosas, o alinhamento automático com os EUA teria agravado os efeitos da crise mundial aqui (como está fazendo agora com o México). Por conta de qualquer crisinha na Turquia, na Rússia ou na Indonésia o Brasil da era FHC voltava, de pires na mão, ao FMI, mendigando ajuda para impedir uma quebradeira total. Hoje o cenário é outro.
Para completar, FHC é extremamente vaidoso e despeitado, recusando-se a reconhecer não digo nem os inúmeros defeitos de seu governo – o que é condizente com a natureza dos poderosos e com o ego inflado do personagem -, mas os méritos inegáveis do governo de seu sucessor, hoje corroborados pela mesma imprensa internacional que era reverenciada na era FHC, ao qual ela nunca deu muita atenção. O artigo “Para onde vamos?”, escrito pelo ex-presidente e comentado neste blog, é exemplar da empáfia do personagem para com o atual mandatário.
Porém, ao menos uma vez o ex-presidente reconheceu uma política equivocada de seu governo: ter adotado, sob a liderança dos EUA, a estratégia de "guerra às drogas". A partir do mea culpa, o ex-presidente passou a defender, com argumentos compartilhados por especialistas e por progressistas em geral, a legalização da maconha.
Muitos dos que discordam da adoção de tal medida já alimentavam antipatia por FHC, e viram na nova posição do ex-presidente em relação à questão um motivo a mais para repeli-lo. Trata-se de uma atitude plena de coerência.
Outros, no entanto, que, como eu, defendiam a legalização da maconha (continuo defendendo, pelas razões que explicito aqui), não apenas mudaram de opinião unicamente por conta da nova postura de FHC, mas, num movimento de manada, passaram a atacá-lo incorporando o uso pejorativo de adjetivos como “maconheiro”, “defensor de drogados”, “financiador do crime” e por aí vai. Ou seja, sob a influência da atmosfera de turba, adotaram uma atitude altamente contraditória, inversa daquela que anteriormente defendiam.
Há uma denominação que se aplica como uma luva para os atos de acusar sem provas, substituir o diálogo e a crítica construtiva pelo confronto com adversários, criar índex de artistas, e alimentar ódios políticos “fulanizados” capazes de alterar convicções ideológicas: totalitarismo.
Em nome da boa luta, trata-se de evitá-lo enquanto é tempo.