O impeachment de Dilma
Rousseff deflagrou uma reação tardia, na forma de protestos de rua,
os quais ensejam uma série de dúvidas, inquietações e
controvérsias, sobretudo por invocarem, de forma explicita ou
inconsciente, fantasmas de junho de 2013 - movimento que, como
sabemos, foi denegado, delatado e brutalmente esmagado pelo petismo
(seja diretamente, via Força Nacional, ou em conluio com
governadores de todos os partidos e suas PMs).
Qualifico como tardia
a reação que tomou conta das ruas por dois motivos principais:
1) Protestos massivos tenderiam a ter mais eficácia durante a tramitação do impeachment, enquanto ainda poderiam exercer pressão sobre o voto dos senadores;2) Uma das pautas principais das manifestações - a convocação de eleições gerais já - faria muito mais sentido antes da abertura do processo de impeachment, em meados de maio, não só porque daria mais tempo hábil para a preparação da logística de um pleito nacional, mas porque significaria uma saída honrosa para Dilma, que poderia ter costurado um acordo por meio do qual condicionasse sua renúncia à convocação de novas eleições. Mas, como dolorosamente sabemos, timing e negociação política não são o forte da ex-presidente.
Ademais, como
evidenciam a passividade e o imobilismo dos dirigentes petistas
durante o processo, o impeachment serviu como uma luva ao partido,
pois o livrou do ônus de uma das piores crises da história do país
e de ter de explicar o desastre vergonhoso que foram os dois governos
Dilma, substituindo a urgente autocrítica - da qual petistas têm
hojeriza - pelo trunfo narrativo do "golpe" e pelo papel
de vitima, no qual o partido, com o suporte de seu elenco de
coadjuvantes, atua com gosto e vocação.
Manifestações e
orquestrações
O sincronismo e o
timing das atuais movimentações de rua - tão logo consumado o
impeachment - nunca deixaram de evidenciar sua orquestração via
movimentos da base petista, os quais vêm convocando e divulgando os
protestos. Mas, seja por wishful thinking bem-intencionado, seja por
interesses inconfessáveis, muitos sustentaram a tese de que os
protestos não só eram independentes e transcendiam o partido, mas
que a presença deste nas ruas seria infima. As ultimas
manifestações, com presença majoritária das entidades-satélite
do petismo, vestidas a caráter - e com carros de som entoando
palavras de ordem e fazendo indisfarçável campanha eleitoral -
desvanecem tais ilusões.
Tal contatação, no
entanto, não anula a percepção de que, no campo da guerra de
narrativas, o PT venceu a primeira batalha: como se observa nas redes
sociais e nas ruas, convenceu parcelas consideráveis da juventude e
da esquerda de que foi vítima de um golpe.
Para além do PT
Isso tudo seria um
problema menor se se restringisse ao âmbito do petismo: um capitulo
a mais na história de um partido que um dia veio a representar os
anseios de grande parte da esquerda, chegando a promover um
importante processo de incorporação econômica dos mais pobres
(ainda que não tenha avançado para além da inclusão via consumo),
mas que acabou naufragando nas concessões e alianças em nome de uma
realpolitik por demais elástica, enfraquecendo ainda mais sua
desossada base ideológica; na indulgência com que se refestelou em
esquemas de corrupção; na submissão de compromissos programáticos
aos ditames do marketing politico mais cosmético; na desfaçatez com
que sua candidata à Presidência protagonizou a campanha eleitoral
mais suja do ciclo democratico pós-ditadura - para, empossada,
colocar um executivo do Bradesco e um economista neoliberal para
gerir a economia, cometendo estelionato eleitoral.
De um partido que não
apenas descomprometeu-se em defender algumas de suas bandeiras
históricas, mas foi além: passou a violar de forma sistemática os
direitos indigenas, vítimas de invasões, mortalidade infantil,
surtos de suicidios, e do crime humano e ambiental que foi a
construção de Belo Monte; a promover a violência de Estado e a
colaborar para o acirramento da repressão periférica; a boicotar a
reforma agrária ao passo em que enchia as burras do alto
latifundiario com parte dos R$500 bilhões de dinheiro público que
transferiu para "os campeões" do setor privado
agronegócio; a superdimensionar e estender artificialmente as
benesses trazidas, até 2012, pelos programas sociais e pela politica
salarial enquanto agravava-se a assimetria da renda do capital,
simbolizada por exorbitantes lucros bancários, cujos recordes, mesmo
apos a eclosão da crise, foram sucessivamente quebrados nas gestões
petistas.
Mas não, a questão,
infelizmente, não se restringe ao petismo: a narrativa do golpe tem
provocado a adesão não só daqueles setores da dita "esquerda
crítica" - que, aconteça o que for, sempre acaba apoiando o
PT -, mas de um amplo leque de atores políticos situados do centro à
esquerda do arco politico-ideológico. E o engajamento na narrativa
do golpe vem acompanhado não apenas da nula atenção, do
esquecimento e do abono em relação aos erros e violações do
petismo no poder - que vão além dos que foram apontados nos dois páragrafos
anteriores -, mas do acordo tácito de que ficam proibidas tais
referências, e que o interlocutor que ousar a elas aludir deve ser
atacado.
Debate empobrecedor
Chama particularmente
a atenção, pelo grau de adesão e virulência do fanatismo, a
penetrabilidade de tal narrativa nos meios artísticos e
universitários. Nestes, dos quais se esperaria um grau mais
elaborado de formulação critica, assiste-se hoje a um rebaixamento
tanto do nivel do debate - com o simplismo de categorias correntes
como "coxinha", "golpe" e "isentão" -
quanto dos padrões de civilidade do debate público, com agressões
e desqualificações tornando-se a norma. Impressiona ainda mais que
tal fenômeno se dê com ampla adesão de professores universitários, categoria que,
enquanto a pesquisa e a pós-graduação eram sucateadas em nome da
expansão populista da graduação, foi tratada a pão e água nos
seis anos de governo Dilma, sobretudo após protagonizar a mais longa
greve das muitas que marcam a história das universidades federais no
pais.
Esse fenômeno faz
baixar ainda mais o nível do debate político, já prejudicado tanto
pelo falso binarismo entre uma nova direita inculta e agressiva e um
autointitulada esquerda petista, ambas movidas a fanatismo
tendencioso, quanto pela troca das reflexões embasadas e
aprofundadas por "memes", palavras de ordem, boatos e mentiras
repetidos à exaustão. Como resultado, a qualidade do debate
público, no Brasil, atravessa o seu pior momento histórico, resguardada apenas pela produção variável de meia dúzia de jornalistas e aos
posts e artigos da lavra de alguns poucos franco-atiradores, em geral
cultos, informados e apartidários, dispersos nas redes sociais.
Tudo somado, um dos efeitos mais impressionantes e menos falados do petismo é o deserto de ideias que legou a seus próprios defensores e o decorrente empobrecimento do debate politico no pais. Uma constatação que a inacreditável fala de Lula exaltando politicos em detrimento de professores e concursados corrobora de foma didatica.
Tudo somado, um dos efeitos mais impressionantes e menos falados do petismo é o deserto de ideias que legou a seus próprios defensores e o decorrente empobrecimento do debate politico no pais. Uma constatação que a inacreditável fala de Lula exaltando politicos em detrimento de professores e concursados corrobora de foma didatica.
Ameaça à democracia
No lugar de um debate
substancioso, uma disputa adolescente caudatária do marketing
político. Uma dinâmica que nos remete a um dos problemas centrais
da atual relação entre narrativas e protestos politicos: a
aceitação, implícita mas efetiva, de que a defesa da ordem
democrática implica na defesa do PT, e que, por sua vez, a defesa do
PT contra a ilegalidade de que teria sido vítima implica na
não-responsabilização e no esquecimento generalizados do que o
partido fez ao longo dos quase 14 anos em que governou o pais.
Endossa-se, assim, tanto a mencionada recusa petista à autocritica
quanto o saudável hábito nacional de enterrar o passado em nome do
apaziguamento, tão bem simbolizado na anistia pós-ditadura a
torturadores e assassinos estatais.
O problema é não só
não haver, a rigor, equivalência entre defender a democracia e
desobrigar de prestar contas um partido que ficou quase uma década e
meia no poder, mas um dos pilares dos regimes democráticos ser
justamente a prestação de contas, o reconhecimento dos erros e a
responsabilização pelos eventuais crimes dos politicos e partidos
que governam um pais. Ou seja, o automatismo passivo com que se quer
isentar o PT em nome da defesa da democracia é, em ultima análise,
um desserviço e uma afronta à democracia que se alega defender.
(Tirinha da Mafalda, de Quino, retirada daqui)