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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dilma e a esquerda traída

O segundo mandato de Dilma sequer começou, mas acumulam-se evidências de que o petismo no poder empreenderá, uma vez mais e de forma ainda mais acentuada, uma guinada à direita, com a entrega do comando da economia a Joaquim Levy e a presença, no ministério, de líderes do agronegócio, da indústria e do sindicalismo patronal.

Levy, convém frisar, é um economista ultraortodoxo com fixação em corte de gastos públicos. É pós-graduado pela Universidade de Chicago, o principal polo mundial do liberalismo “puro” fortemente influenciado por Milton Friedman, guru de gerações de economistas cujo principais traços são a fé cega no mercado e a dissociação entre desempenho da economia e bem-estar da população – destarte, os preferidos por regimes totalitários (“As teorias de Friedman lhe deram o prêmio Nobel; ao Chile deram o general Pinochet”, ironizou o escritor Eduardo Galeano. A ditadura chilena serviu ainda de incubadora para o que viria a ser a doutrina neoliberal. Sobre a relação entre o legado de Friedman, o neoloiberalismo e a "nova política", assista aqui à íntegra do documentário A Doutrna do Choque, baseado no livro homônimo de Naomi Klein).



Seis por meia dúzia
Não bastasse tal pedigree, Levy foi aluno do ex-ministro do Planejamento na gestão FHC, Armínio Fraga, de quem é considerado discípulo e com quem teria contribuído amiúde na campanha de Aécio Neves; e é alto executivo do Bradesco, o banco que vem batendo sucessivos recordes de lucro na era petista, que o teria indicado à Fazenda após o presidente da instituição, Luiz Carlos Trabuco, recusar o convite ao cargo.

Para os que ainda têm fresca na memória a campanha difamatória que o marketing eleitoral petista promoveu contra Neca Setúbal e depois contra Fraga, apregoando que submeteriam o país ao comando do mercado e, literalmente, tirariam a comida dos pratos dos brasileiros para aumentar o lucro dos bancos, a hipocrisia e o descompromisso com a coerência inerentes à nomeação de Levy ficam evidentes.

Se era para colocar no ministério um aluno de Armírio ainda mais ortodoxo do que este, que se nomeasse o mestre, diz a blague.



Reação tardia
Ante a iminência da nomeação de Levy para a Fazenda, de Kátia Abreu para o agronegócio e de Amando Monteiro para a Indústria e Comércio, intelectuais e esquerdistas mobilizaram-se para um abaixo-assinado direcionado à presidente Dilma, manifestando preocupação ante a iminente guinada a um conservadorismo ainda mais atávico do que o do primeiro mandato e chamando a atenção da ex-candidata petista para seus compromissos com os setores da esquerda determinantes para que vencesse as eleições.

Não obstante a legitimidade e as boas intenções da iniciativa, trata-se de um gesto ingênuo e fadado ao mero simbolismo. Mesmo porque a esquerda, no segundo turno, por ingenuidade ou voluntarismo, foi cooptada sem estabelecer condições, se deixando enganar pelos truques marqueteiros de João Santana, mesmo após 12 anos de PT no poder, período mais do que suficientes para que mesmo um simpatizante de primeira hora e figura íntima do partido e de Lula se desencantasse:

Os avanços socioeconômicos coincidiram com o retrocesso político. Em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação. Preferiu assegurar governabilidade com alianças partidárias, muitas delas espúrias, em vez de estreitar laços com seu esteio de origem, os movimentos sociais.
(…)

O PT até agora robusteceu o mercado financeiro e deu passos tímidos na reforma agrária. Agradou as empreiteiras e pouco fez pelos atingidos por barragens. Respaldou o agronegócio e aprovou um Código Florestal aplaudido por quem desmata e agride o meio ambiente”


Mantra eleitoreiro
Não obstante tal implacável diagnóstico, o autor do texto, Frei Betto, está entre aqueles que, no segundo turno, não só endossaram mas repetiram obsessivamente o discurso do nós contra eles, segundo o qual a candidatura Dilma representava a única opção redentora para a esquerda, enquanto Marina ou Aécio encarnavam, ora um, ora outro, o mercado no poder e o retorno do neoliberalismo de FHC.

Apesar do primarismo do discurso – e das fartas evidências da guinada conservadora petista, agravada no primeiro governo Dilma e da qual Betto demonstra ter plena consciência -, a narrativa foi suficiente para levar amplos setores da esquerda a declarar voto em Dilma, sem sequer demandarem algo em troca. Agora se dizem traídos. Será mesmo? Ou terão traído a si próprios?

Seja como for, perderam, assim, uma oportunidade histórica de se consolidar como uma alternativa consistente à esquerda do PT e de reafirmar a persistência da dupla crítica que avultou nas Jornadas de Junho: ao modelo de desenvolvimento arcaico do neopetismo, baseado na escalada do consumo e em grandes obras, e ao modelo político de alianças aideológicas em troca do aparelhamento do Estado.



Cheque em branco
Agora, madalenas arrependidas, com a repercussão do novo ministério nas redes sociais e a sombria aproximação de Dilma com o conservadorismo mais desbragado– o que pode ser pior que Kátia Abreu? - começam a se dar conta da dimensão de seu erro e a se aperceber que forneceram um cheque em branco a uma administração que só se autointitula esquerda nas eleições, mas se mostra, na prática, cada vez mais indistinguível de seus opositores tucanos. Melhor fariam se assumissem a responsabilidade e se redimissem publicamente por seu erro, ao invés de fingirem inocência em abaixo-assinados cuja eficácia resume-se a ao aplacamento da consciência dos que o assinaram.

Pois, no mundo real, o segundo governo Dilma está prestes a começar, e seu script, já foi traçado: em mais um paradoxo típico do petismo no poder, tão logo consiga aprovar, no Congresso, o projeto que permite desobedecer às metas de superávit fiscal, o governo, num inegável retrocesso e traindo seu discurso eleitoral, nomeará a equipe econômica chefiada por Levy, e este, já no dia seguinte à posse, anunciará um pacote econômico anticíclico que afetará de maneira dramática a economia em 2015.

Nada muito diferente do que fariam Marina ou Aécio, com a diferença de que estes não contariam com o beneplácito dos inocentes úteis que compõem a a chamada “esquerda crítica” - leia-se chapa-branca. Pelo contrário: seriam implacavelmente por ela vigiados e denunciados.



(Foto retirada daqui e editada)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Casos Ipea e Bradesco marcam o pós-eleição

Na ressaca de uma campanha eleitoral marcada por ataques baixos, o governo Dilma, enquanto fala em diálogo e união, esforça-se para construir uma narrativa segundo a qual a oposição, em sua “belicosidade”, estaria dando mostras de ser uma “má perdedora”.

Enquanto isso, a mandatária reserva a si e aos seus a imagem magnâmina dos que “sabem ganhar”, ou seja, sem revanchismo ou tripudiação. Como se, no quadro atual,  repleto de adversidades, tivessem condições políticas para agir de outro modo...

Trata-se de mais um round da velha e imutável tática petista de culpar sempre os outros, recusando-se a admitir seus próprios erros, bem como qualquer atitude que recenda a autocrítica.



Cenário adverso
Para piorar a situação da nova velha presidente, sua vitória, embora legítima, não só foi muito apertada mas, somados os votos dos eleitores que anularam em protesto contra tudo que aí está, inclusive seu governo – entre os quais se encontra este blogueiro -, deu-se em um contexto em que a votação contra si supera os votos a favor.

Tal fato não torna o segundo governo Dilma menos legítimo, nem justifica os tragicômicos apelos por impeachment ou intervenção militar. Mas desenha, para a mandatária e seu partido, um cenário bem mais adverso que o do primeiro mandato, colocando um desafio concreto à frente.

Ainda mais porque, diretamente ligada à configuração pós-eleitoral, há uma conjunção de desafios para Dilma: baixo crescimento econômico e ameaça inflacionária, com aumentos de preços até então represados; a rebelião no aliado PMDB; a presença (inédita para o PT) de uma oposição motivada e de peso em Brasília, liderada pelo próprio Aécio, desejoso de vingança, e pelo sempre ardiloso Serra.



Ecos do massacre
Além disso, como analistas políticos e setores da oposição têm enfatizado, permanece fresca na memória de muitos o uso pelo PT da desqualificação enquanto método eleitoral, em detrimento a apresentação e defesa de programa de governo.

Com efeito, seria mera ilusão, ou erro de cálculo político, achar que uma campanha suja como a empreendida pelo PT contra Marina Silva (e Aécio Neves, que revidou) passaria impune, ou estaria destinada a empoeirar nas estantes da história até ser revirada por um pesquisador bisbilhoteiro, ao qual a máquina petista logo trataria de trucidar, como fez com a candidata do PSB.

Mas nem só as feridas mal cicatrizadas do passado recente dificultam à pacificação dos ânimos. Novidades ainda quentes também impedem que viremos a folha do livro das eleições e vivamos nosso radioso presente.




Incoerências impunes
Primeiro foi o convite a megabanqueiros para que assumissem o ministério da Fazenda, cargo comumente referido como o de “czar da economia”, tamanho o seu poder decisório. Depois de ter martelado uma campanha difamatória contra Neca Setúbal, educadora reconhecida e sócia minoritária do Itaú, soa a escárnio o convite de Dilma para que o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, assuma tal cargo. Ante a humilhante negativa deste, cogita-se Henrique Meirelles, o ex-presidente internacional do Bank of Boston que chefiou o BC nos governos Lula.

Ora, o cidadão, eleitor do PT ou não, tem todo o direito de cobrar coerência por parte dos governantes. É ofensivo à ética pública e à cidadania que candidatos a cargos eletivos critiquem com veemência determinados comportamentos quando estão em campanha e os repitam, de forma ainda mais grave, quando assumem o poder.

Há um perigoso parentesco entre tal comportamento e o estelionato eleitoral, e se o eleitor não se dá conta ou logo perdoa ou esquece, o próprio partido faz vista grossa e recusa a autocritica, cabe, por um lado, à Justiça eleitoral e, por outro, às oposições cobrarem coerência e denunciarem o uso de uma moral dupla.



Aparelhamento flagrante
Mas os atualíssimos esqueletos das eleições não se restringem a tal descaramento. Ontem mesmo, com a divulgação de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre miséria e pobreza, corroborou-se o que no período eleitoral era mero boato: o outrora respeitado órgão, sob forte pressão palaciana, teria atrasado a publicação de informações oficiais que poderiam afetar a candidatura Dilma.

Trata-se de um fato duplamente grave: em primeiro lugar, pelo próprio conteúdo dos dados, dando conta de que mais de 370 mil brasileiros voltaram à condição de miseráveis. Em segundo, por evidenciar, de forma clara, o aparelhamento do Estado pelo PT e suas graves consequências, já que a atenção ao social e a redução da miséria e da pobreza estiveram entre as principais alegações para o voto em Dilma.

O Ipea é um órgão do Estado brasileiro, e a este deve se reportar e servir. Sua instrumentalização por um partido ou um mandatário – no caso, para fins eleitorais – constitui uma ameaça ao republicanismo que deve governar as relações entre entes governamentais e cidadão. Em última análise, acaba por afetar o pleno funcionamento da democracia – como o truque sujo do adiamento de dados ruins em período eleitoral evidencia de forma clara.




Provas à  mancheia
Faz mal à vida política do país que comportamentos como a hiperagressividade na campanha eleitoral, a ausência de programa de governo, a adoção de medidas ferozmente criticadas em campanha e o aparelhamento de estatais para fins eleitorais sejam tolerados por eleitores, oposição e Justiça e sigam impunes.

Aì está um material documentado que representa algo de concreto a ser cobrado de Dilma Rousseff. No primeiro mandato, ela mentiu que não privatizaria o Pré-Sal, mas privatizou sem sequer enrubecer e ficou por isso mesmo. Espera-se que as parcelas da sociedade que não estão alienadas pela hipnose petista ajam e façam valer seus direitos.



(Foto de Dilma e Temer por Valter Campanato)

domingo, 2 de novembro de 2014

A oposição nas ruas



Menos de uma semana após eleita, Dilma Rousseff defronta-se com manifestações populares em protesto contra o seu governo e a favor do seu impeachment. Em três cidades diferentes, pessoas foram às ruas, sendo que em São Paulo o número de protestantes teria chegado a 2500 cidadãos, segundo a PM.

Talvez, menos do que a relevância do evento em si – que, a começar da contradição de pedir impeachment de uma candidata eleita, tem o aroma do golpismo temperado por maus perdedores -, seja necessário situá-lo no novo contexto político-eleitoral que ora se desenha.

Este é marcado por rachas no interior da base aliada, com mágoas de candidatos peemedebistas preteridos nos estados e pela liderança vingativa de Eduardo Cunha; pela perda significativa de assentos petistas no Congresso e pelo reforço das hostes oposicionistas; e, talvez sobretudo, pelo ressaca rancorosa de uma campanha feita com navalha na liga e sangue nos olhos, que atiçou o antipetismo e confundiu opositor e inimigo.

Nesse cenário, as manifestações de ontem são apenas o ladrar da matilha ao sentir os primeiros sinais de debilidade da futura caça: além de ter de enfrentar os problemas acima elencados, Dilma inaugura, em seu segundo mandato, uma fase inédita da era petista, em que morderá seus calcanhares uma oposição experiente – sob a batuta ardilosa de José Serra –, que sai das eleições com significativo apoio popular. Se a agitação das ruas será mantida é outra historia, mas a articulação dos protestos de ontem certamente faz parte de uma estratégia nesse sentido.



Reação 
A vigilância sobre a presidente tende a multiplicar-se em tal contexto. No primeiro mandato, quando a economia favorecia o consumo, poucos pareceram se importar com as traições de Dilma para com os compromissos eleitorais – cujo exemplo maior, mas de modo algum único, foi a privatização do Pré-Sal, a qual a candidata renegara em comercial da campanha de 2010.

Agora, porém, além de um quadro econômico instável, que leva nove em cada dez economistas a apostarem em um choque anticíclico no primeiro ano, há a volta do chicote no lombo de quem mandou dar: os rancores à flor da pele indicam que não ficarão sem resposta os ataques baixos de uma campanha em que a discussão de projetos deu lugar aos ataques baixos e à desqualificação do adversário. Pois, como sumariza o jornalista Josias de Souza em um artigo notável,

"A ameaça de perder o poder e suas benesses fez com que o PT levasse às fronteiras do paroxismo a tática do ‘nós contra eles’. Rendido à marquetagem de João Santana, o partido fez da política um mero ramo da publicidade. O verbo da eleição foi desconstruir. Conjugando-o, Dilma prevaleceu sem se preocupar com a autoconstrução."



Tudo pelo poder
Quem semeia vento colhe sempre tempestade”, diz o ditado. No entanto, o cálculo ultrapragmático do marketing petista não levou em conta, em momento algum, o quanto tal estratégia – em si questionável do ponto de vista da ética republicana – acabaria por acirrar ânimos a um ponto tal que dificultasse sobremaneira ou mesmo ameaçasse a governabilidade da eventual eleita.

Pois se o deboche petista para com a classe média (mas, de forma significativa, não em relação aos ricos de fato), epitomizada no uso corrente do termo “coxinha”, anterior ao pleito, já evidenciava uma perigosa intolerância classista, o discurso do “novo Nordeste” contra a “São Paulo dos tucanos”, do “playboy mimado” contra a “defensora dos pobres”, proclamado pelo próprio Lula e repetido à exasperação pela militância, corrobora um discurso público de desqualificação que nada agrega para a criação de uma atmosfera de respeito e empatia entre governo e setores da população.



Efeito bumerangue
O rescaldo da campanha é que Dilma é vista, por setores da população que podem não ser majoritários mas se contam a dezenas de milhões, não apenas como uma governante com a qual não se simpatiza ou de cujo projeto político se discorda - mas merecedora de respeito, pois eleita -, e sim como uma inimiga a ser derrotada – e uma inimiga que não se furtou a usar os métodos mais agressivos para obter sua vitória.

Compreender esse raciocício orientador dos protestos dos derrotados não significa legitimá-lo: convém assinalar que, pós um processo eleitoral de reconhecida lisura e na ausência de qualquer acusação formal contra a presidente, não passa de golpismo oportunista cogitar impeachment.

A análise de tal cenário ajuda a entender porque o discurso de Dilma logo após a vitória foi uma conclamação à união. Com exceção da deselegância de não citar o nome do candidato derrotado (sendo que este já a cumprimentara pela vitória), a fala foi caracterizada como um aceno na direção da pacificação e da conciliação. Ato contínuo, a presidente logo anunciaria apoiar, ao menos de público, o projeto em prol de mais referendos e consultas populares, do qual o Congresso - incluindo a bae peemedebista - fará picadinho.



Desafios à frente
Com todo um mandato à frente, a mandatária sabe que não tem outra saída: sem curar feridas na própria base "aliada', sem minimizar a virulência da oposição e sem cooptar ao menos uma pequena parcela de um eleitorado dividido, pode se tornar um lame duck, e seu segundo governo um refém do Legislativo e de uma oposição barulhenta. Como, aliás, ocorreu com o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Para completar, há uma bomba-relógio armada, com as investigações acerca da Petrobras. Um eventual envolvimento do nome da presidente abriria caminho para a formalização de denúncias – no que, a depender das circunstâncias, poderia significar um atalho para um processo de impeachment. No estouro do “Mensalão”, as conquistas sociais e a economia em popa colocaram Lula com índices de aprovação que o blindaram; com uma presidente enfraquecida, a economia em frangalhos e o país dividido, a história pode ser outra.

2015 promete ser um ano muito, muito tenso.


(Foto da manifestaçção:Darrio Oliveia; foto de Dilma: Cadu Gomes)