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domingo, 29 de março de 2009

O Furacão Camille

Camille Paglia é uma das mentes mais argutas e uma das línguas mais afiadas em atividade no mundo contemporâneo. Seus ataques contra o politicamente correto e o “feminismo stalinista” institucional dos EUA – que fez de um movimento originalmente libertário e anti-sistêmico uma força de repressão e controle social mantenedora do status quo – a transformou na bête noire do universo acadêmico norteamericano, um dos mais conservadores e apolíticos do mundo, e a relegou a uma espécie de ostracismo midiático (a despeito de ela continuar escrevendo profusamente e mantendo colaboração periódica na Salon).

Suas críticas à academia, embora se refiram, é claro, ao contexto norteamericano, parecem cada vez mais servir como uma luva à universidade brasileira, que não se cansa de insistir em adotar de forma acrítica os modelos administrativos e critérios avaliativos made in USA – procedimento que evidencia, a um tempo, o grau de colonialismo cultural de nosso establishment acadêmico e sua alienação em relação à sociedade brasileira.

Com uma independência e virulência raras, metralhadora giratória que cobre uma pletora de temas e assuntos, Camille Paglia, embora às vezes assumindo posições contraditórias e mesmo anti-liberais (particularmente em relação à política externa norte-americana), destaca-se pela atenção que dispensa, no contexto acadêmico ou fora dele, às mais variadas formas de manifestação da cultura pop, para a qual demostra ter aguda capacidade analítica (no Brasil, provocou protestos seu fascínio por Daniela Mercury, artista que, independente da qualidade de seu trabalho, é vítima de rotulações e de preconceitos regionalistas); pelo resgate, como método de investigação acadêmico, de uma visão de história da arte tout-court, caudatária da etimologia e informada o suficiente para não temer os desafios da cronologia; pela posição crítica (e não de exaltação deslumbrada, como parece ser a regra) em relação aos anos 60 e suas (in)consequências para o presente estado de coisas.

A base de suas intervenções vem da crítica ao construcionismo social há muito em voga nos EUA e em seu papel definidor para o feminismo e para a universidade norteamericanos, duas áreas nas quais que se considera "ativista reformista". A defesa apaixonada que faz da abstenção do Estado na regulamentação de atividades solitárias ou consensuais - o que inclui apoio à liberdade sexual plena e a quase todas as formas de pornografia e à descriminalização das drogas e da prostituição - estão no cerne de seu confronto com o establishment feminista dos EUA, anti-pornografia e, segundo ela (e este blogueiro concorda), anti-sexo. Em relação à universidade, propõe um amplo programa de reformas que acabe com os códigos reguladores de condutas e com os congressos literários; a transformação dos estudos de gênero e de raça em estudos de sexualidade de orientação histórica, antropológica, psicológica e científica; e o retorno aos métodos de investigação histórico-acadêmicos do filologismo alemão, em detrimento do vale-tudo raso instaurado pelo pós-estruturalismo francês, do qual é crítica ferrenha (clique aqui para ler trechos de uma entrevista de Paglia).

Para quem quer conhecer uma sua faceta mais, digamos, sensível, é imprescendível ler o ensaio “Meus quatro irmãos no crime...”, em que, sob o pretexto de homenagear seus maiores amigos gays, Paglia traça, através da reconstituição de suas trajetórias pessoais, um apaixonado retrato de quatro outsiders dos anos 60 e de seus embates com a sociedade norteamericana ao longo de quatro décadas, até a hecatombe trazida pela primeira “epidemia” de AIDS. O item dedicado ao perfil de James Fessenden não merece menos do que ser adjetivado nos termos algo contraditórios de arrasadoramente poético (o ensaio, assim como todos os trechos citados neste post, pertence a Vampes & Vadias, que embora seja uma compilação um tanto tardia - e com erros flagrantes de tradução - de artigos diversos é, disparado, entre tudo o que ela publicou, o livro predileto deste blogueiro – daqueles que provocam até uma certa tristeza por já tê-lo lido, devido à constatação de que jamais se terá de novo o prazer proporcionado pela primeira leitura...).

Abaixo, trechos selecionados, frases e aforismos de um dos raros intelectuais contemporâneos que ousa sistematicamente ir contra a corrente e desafiar o status quo:

Frases
- “Há vida intelectual nos Estados Unidos? No presente, a resposta é não”.

- “Se as pessoas pudessem ver meu cérebro por dentro, eu iria parar na cadeia”.

- “A comédia é o melhor caminho para a verdade”.

- “Eu odeio o dogma sob qualquer forma”.

- "A presença greco-romana em mim é muito pronunciada; vejo a vendetta como uma prática esportiva, jovial e histórica, tipo joelhada no saco".

Feminismo norteamericano
"O feminismo se tornou uma gaveta de legumes em que pencas de adeptas fiéis e soluçantes podem armazenar suas neuroses bolorentas".

"Minha geração foi aquela que jogou tudo para o alto nos EUA e disse: “Chega de regras!” Nós dissemos para as universidades: “Saiam das nossas vidas sexuais! (...) E agora o feminismo de hoje é tão estúpido, quer figuras de autoridade de volta no sexo! (...) Isso é ridículo. As mulheres têm de assumir responsabilidade total pela sua sexualidade".

[Sobre o feminismo anti-sexo] "Meu lema para os homens vai ser esse: 'fiquem de pau duro!' Essa é minha proposta: 'fiquem de pau duro' E meu lema para as mulheres é 'lidem com isso'".

"Quando o discurso feminista se torna incapaz de distinguir um carinha bêbado da fraternidade estudantil de um maníaco homicida, a coisa vai mal para as mulheres".

"A ideologia de vítima, uma caricatura de história social, bloqueia à mulher o reconhecimento do seu domínio na esfera mais profunda e importante".

"Os homens são dominantes na sociedade, certo? E a missão do feminismo é buscar a total igualdade política e legal das mulheres. Nós temos que ganhar a entrada das mulheres na vida social. O que eu digo no meu trabalho é que nós somos muito mais do que meros seres sociais. Que existe a esfera social da vida, mas que também existe a esfera sexual ou emocional, a qual se sobrepõe à esfera social, mas não é idêntica a ela. De modo que estou dizendo que a mulher é dominante na esfera sexual e emocional, e que, em algum nível profundo, o homem sabe disso. Eles se lembram de terem emergido dessa imensa e sombria figura matriarcal e divinizada, de onde lutam por identidade".

"A ideologia feminista começou reivindincando liberdade, esclarecimento e auto-determinação para as mulheres, mas acabou alienando as profissionais mulheres de seus próprios corpos".

"Ouvindo o rádio em minha casa, escutei o Dr. Joyce Brothers proclamar confiante: 'Não há prostitutas felizes' - com o que berrei furiosa: 'Dr. Brothers, não há terapeutas felizes!'".

"A prostiuição deveria ser descriminalizada. Minha posição libertária é a de que o governo não pode, em nenhuma circunstância, intervir no comportamento privado consensual. Assim, apesar do mal que causaram à minha geração, eu apoio a legalização das drogas, em conjunto com a atual regulamentação do alcóol. E eu argumentaria pelo direito absoluto à sodomia homossexual. É razoável, todavia, pedir que os atos sexuais permaneçam privados e que não ocorram visivelmente em espaços públicos compartilhados, como ruas e parques – estes últimos pousos favoritos dos homens gays, para desespero dos vizinhos. Nem o judeu-cristão nem o pagão podem dominar o espaço comum".

Universidade
"A revolução cultural dos anos 60 fracassou em transformar os mundos acadêmico e literário como devia".

"Os nomes mais festejados da nossa geração de professores de ciências humanas são bisonhos, ignorantes e incultos. Os EUA mereciam coisa melhor".

"Qualquer um que se interesse pelo futuro da literatura e da arte nos EUA deve se repugnar com essa poção mágica de hipocrisia e santimônia que é o 'politicamente correto'(...) Se deve haver um reflorescimento intelectual e espiritual, são os estudantes de hoje que terão que fazê-lo. O establishment acadêmico, paralisado pelas panelinhas, pela ganância e pela covardia moral, é incapaz de reformar a si mesmo".

"O que é mais repugnante sobre o corretismo político no campus é que seus proponentes deram um jeito de convencer seus estudantes e a mídia de que são autênticos radicais dos anos 60. A idéia é absurda. O politicamente correto, com seus códigos reguladores da expressão e regulamentos sexuais puritanos, representa um travestimento dos valores progressistas da década de 60 (...) Ao contrário, as pessoas mais ousadas e originais dos anos 60 ou bem não foram para as pós-graduções, ou bem se recusaram a fazer o jogo das bajulações, tão necessário para progredir na carreira acadêmica".

"Os radicais genuínos não foram para os cursos de pós-graduação. Se iam, rapidamente caíam fora ou eram derrotados pelo processo de recrutamento e promoção das faculdades, que premia o conformismo e a bajulação".

"Radicais reais apóiam alguma coisa e arriscam alguma coisa; esses acadêmicos são gatos gordos e mimadíssimos que nunca defenderam princípios, em nenhum momento de suas carreiras. Nada lhes aconteceu nas suas vidas. Nunca foram para a guerra; nuncas ficaram desempregados ou completamente duros. Eles não conhecem nada fora da universidade, e menos ainda a vida da classe trabalhadora. Sua política é uma trama tendenciosa de fantasias sentimentais e categorias verbais inconsistentes".

"Os estudos sobre as mulheres não mudaram uma vírgula na vasta estrutura da história da arte. É escandaloso que as nossas mais talentosas estudantes em licenciatura sejam tuteladas em atitudes de ressentimento juvenil contra artistas homens dos mais importantes, do porte de Degas, Picasso e Marcel Duchamp, que se tornaram virtuais párias. As mulheres nunca farão grande arte se sua educação só lhes expuser ao segundo escalão. A grandeza não é um truque do macho branco. Todas as civilizações do mundo definiram a sua tradição artística em termos elitistas de distinção e elegância".

"Os centros de humanidades são agora controlados por pequenos quadros amorais, intrinsicamente ligados uns aos outros em âmbito nacional por laços de panelagem, favoritismo, clientelismo e conluio".

"Meu programa de reforma educacional começa na escola primária, a qual tem sido irresponsavelmente ignorada pelos nossos pseudo-esquerdistas acadêmicos, cuja idéia de ação política é tagarelar sobre Foucault um com o outro nas conferências".


Conselhos aos estudantes:
- "Faça da biblioteca sua professora. Mergulhe nas coleções de referência e domine cronologia e etimologia".

- "Recuse-se a cooperar com o sucedâneo coercitivo do humanitarismo que ofensivamente define mulheres e negros como vítimas".

- "Insista na liberdade de pensamento e de expressão".

- "Atacar é um direito democrático".

domingo, 22 de março de 2009

Divagações sobre o vermelho e o sangue

Deve-se ao crítico Inácio Araújo a melhor análise de Tropa de elite (José Padilha, 2007) – filme que, como se sabe, levou ao paroxismo a mania nacional de escrever bobagens sobre cinema, levada a cabo, no mais das vezes, por pessoas sem a mínima preparação para tal. Não é por outra razão que, no longo debate para definir se o adjetivo fascista aplicava-se ou não ao filme, prestou-se pouquíssima atenção a um quesito essencial para responder à questão: como o filme constrói os processos de identificação entre personagens e público. Assim como ocorre com o esporte, o cinema, embora constituído como campo acadêmico há quase meio século e com uma rica tradição de críticos de formação autoditada no país, transformou-se em terra de ninguém na mídia brasileira – qualquer zé-mané vira resenhista, sem a mínima preocupação em adquirir o conhecimento necessário, nos bancos escolares ou fora deles. Um dos exemplos mais bizarros desse vale-tudo opinativo é o de um prestigiado analista político radicado em Brasília, que, cansado de petices e peessedebices, resolveu escrever sobre o que não entende, tendo a desfaçatez de colocar no mesmo patamar o filme de Padilha e – socorro! - os maiores clássicos do neo-realismo italiano. Se um crítico de cinema se metesse a escrever bobagem semelhante em relação à política, seria demitido no dia seguinte.

A crítica de Araújo (infelizmente, só para assinantes), intitulada “‘Tropa de elite’ é um filme ingênuo” foi publicada no que restou do caderno Ilustrada da Folha de São Paulo em 8/03, por ocasião de exibição do filme na TV a cabo. Nela, Araújo finge aceitar que a obra não seja fascista, critica a exaltação (através da personagem do “jovem policial negro”) da prática em detrimento da teoria, caracterizada como alienada e elitista (a aula sobre Foucault), e sublinha a insustentabilidade de tal visão, pois “por mais que se exalte o papel da prática, ela nunca surge do nada”. Até aí, um belo arrazoado, nada mais. A pedra de toque de seu comentário tem lugar quando, ao criticar José Padilha por teorizar longamente sobre polícia e crime, mas quase não falar de cinema, “que também precisa de idéias,” Araújo evoca a famosa frase de Godard, “em cinema não existe sangue, existe vermelho”, concluindo: “Em ‘Tropa de Elite’ há muito mais sangue que vermelho. Por isso é um fenômeno sociológico, nunca será um grande filme.” Bingo! E pensar que tanta tinta foi desperdiçada com esse filmeco fascistinha...

A “ausência de vermelho” é, com efeito, um dos problemas centrais do cinema contemporâneo. Tomemos como exemplo o cineasta norte-americano Gus Van Sant, cuja carreira apresenta, grosso modo, duas vertentes: de um lado, produções mainstream, bancadas pelos grandes estúdios e protagonizadas por algumas das grandes estrelas de Hollywood (Gênio Indomável; Um sonho sem limites; Milk); do outro, filmes mais autorais, de baixo orçamento, eventualmente estrelados por desconhecidos (Elefante; Last days; Paranoid Park). Estes renderam-lhe os prêmios mais prestigiosos e sua transformação em figura de culto indie. O primeiro título focaliza uma dupla de estudantes de uma escola de segundo grau prestes a iniciar uma matança; o segundo, os últimos dias na vida de Kurt Cobain, líder do Nirvana que se suicidou aos 27 anos; o terceiro, o universo de um skatista de 14 anos que toma parte, um tanto involuntariamente, em um assassinato. A despeito das particularidades de cada produção, elas obedecem a uma mesma proposta básica: a imersão no cotidiano das personagens, nos dias imediatamente anteriores (e posteriores, no caso de Paranoid Park) a uma grande tragédia por elas protagonizada. Os três filmes caracterizam-se também por uma particular atenção às relações das personagens com o espaço, perfazendo intensa exploração do espaço fílmico adjacente aos protagonistas e privilegiando tomadas abertas de grandes extensões vazias. Combinadas ao adensamento do tempo cinematográfico e à utilização disjuntiva da trilha sonora, tais procedimentos acabam por violar não apenas o ritmo convencional do modo institucional de representação hollywoodiano, mas suas convenções dramáticas. Porém, a artificialidade de tais recursos é tão evidente, a mão do diretor tão pesada para dosar a manipulação de sentidos, e, com frequência, o enfoque político tão ingênuo, que esse cinema, que tenderia, como a descrição evidencia, a ser pleno de vermelho, acaba por caracterizar-se apenas por uma hemorragia descontrolada, jorrando sangue para todo lado.

Como um contra-exemplo vindo do passado, examinemos brevemente os chamados “grandes ironistas” de Hollywood (Fritz Lang, Billy Wilder, Douglas Sirk, entre outros). Eles têm em comum, além da nacionalidade não-americana, o fato de, no mais das vezes, promoverem uma crítica ferina da sociedade dos Estados Unidos aparentemente sem deixar de obedecer às convenções da indústria cinematográfica e à moral vigente. A genialidade deles consite justamente em construir contra-discursos que as subvertem e criticam no âmbito da narrativa e da linguagem cinematográficas (posição e movimentos de câmera, som, direção de arte, etc.), manipulando os mecanismos de significação e a identificação do espectador com as personagens de forma a criar subtextos e estabelecer dubiedades. Quase sempre, ao final, como mandava o Código Hays (que regulamentou a moral dos filmes americanos até fins dos anos 1950), as forças da ordem e da lei – ou do convencionalismo social, no caso dos melodramas dirigidos por Sirk – prevalecem. Mas a identificação com o vilão e/ou com as forças que pervertem a “ordem social” (e evidenciam seu caráter sexualmente repressor e economicamente injusto) já foi tão longe que não há mais volta. O castigo do vilão e/ou a reacomodoação do núcleo familiar acabam, assim, funcionando como um elemento a mais a reforçar a denúncia da hipocrisia que rege tal ordem, além de constituírem, não sem ironia, uma meta-referência ao próprio cinema como meio de difusão dessa ideologia - e, portanto de manutenção do controle social pela ordem dominante. Ou seja, na produção desses diretores empregados dos grandes estúdios, a despeito da premissa ser de uma hemorragia ordinária, há profusão de vermelho e pouco sangue.

Não que o vermelho pertença ao passado: David Lynch, Wong Kar-wai e Almodóvar estão entre os diretores-autores que o mantém muito vivo e reluzente em nosso dias, sendo que na produção do espanhol a presença da cor está longe de ser apenas metafórica.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Frost/Nixon e os espectros do passado

Atualmente em cartaz no Brasil, Frost/Nixon (2008) não passa de um filme bem-feito, com montagem e direção de arte acimas da média e, principalmente, um elenco de primeira, liderado pelo canadense Martin Sheen no papel do entrevistador britânico David Frost e por Frank Langella, cuja mediúnica performance como o ex-presidente americano rendeu-lhe indicações aos principais prêmios de Melhor Ator nos EUA, incluindo o Oscar.

O filme, dirigido por Ron Howard (Uma Mente Brilhante; Cocoon), recria com alguma minúcia e alguma fantasia a mais célebre entrevista de Nixon - em que ele, a princípio implacável em suas respostas, esgrimindo as perguntas com a experiência de décadas como político e advogado, vê-se subitamente acuado, acabando por confessar que sua atuação no "caso watergate" violara a lei. Num close dramático que dura intermináveis seis segundos, o ex-presidente, visivelmente abatido, pede desculpas ao povo americano. Trata-se de um momento icônico do jornalismo e de uma façanha histórica do jornalismo televisivo.


Fantasia e distorção
Porém, ao menos dois dos elementos fantasiosos da trama distorcem por demais a realidade, dando uma idéia falsa do que ocorreu: David Frost não era uma espécie de Gugu Liberato da TV australiana que eventualmente emplacava algum programa nas grades de programação britânica e norte-americana, como o filme sugere – mas um jornalista e apresentador experiente, com um currículo respeitável de entrevistas com personalidades famosas nos três países e com políticos de destaque mundial. A distorção mais grave, porém, não só por falsear a realidade mas por permitir uma caracterização menos crítica de Nixon, é sugerir que a entrevista terminou na confissão do ex-presidente, omitindo que, na parte final, ele volta ao ataque e tenta novamente jogar a culpa pela transgressão da lei nos assessores.

Não deixa deixa de ser compreensível que o filme prefira enfatizar, por propósitos dramáticos, a confissão, privilegiando o momento da entrevista que a definiu, popularizou e eternizou, com graves consequências para a carreira do entrevistado. Pois se Nixon concordou em conceder a entrevista, como o filme e, com mais ênfase, os relatos históricos sugerem, com o objetivo último de pavimentar o caminho para seu retorno à política, ela acabou por significar, ao contrário, a pá de cal em qualquer pretensão eleitoral.


Paralelos óbvios
O sentido de um filme e as ilações que a partir dele são feitas dependem, é claro, não apenas das disposições subjetivas de cada espectador, mas da conjuntura sócio-cultural em que é exibido. Assitir a Frost/Nixon no atual contexto brasileiro trouxe - não apenas este blogueiro, mas um grupo de respeitados jornalistas - a evocação de um espectro político do passado que voltou recentemente a assombrar a política nacional, levando-os a traçar um paralelo analítico entre as consequências da entrevista do ex-presidente americano Richard Nixon e a inexistência sequer de uma entrevista, quanto mais de uma satisfação à opinião pública ou declaração de arrependimento do ex-presidente brasileiro Fernando Collor, entre o momento de sua renúncia ao cargo para escapar do impeachment e o momento de sua volta trinfal ao poder (clique aqui para ler a opinião do blogueiro sobre esse retorno). Não se trata, no entanto, de dar vazão a comparações simplistas entre uma e outra realidade, nem ao tão difundido entre nós “complexo de colonizado” - na forma de idealização do binômio "democracia avançada/imprensa livre" que caracterizaria os EUA - , até porque este blogueiro conhece suficientemente bem a sociedade norte-americana para não alimentar nenhuma ilusão quanto a tais mitos. Ainda assim, o paralelo entre os dois casos, sugerido a partir dos fatos dramatizados no filme Frost/Nixon, não deixa de ser rico em temas para o desenvolvimento de uma reflexão sobre a relação entre política, mídia e opinião pública no Brasil, como forma de fazer avançar a democracia no país.

terça-feira, 17 de março de 2009

Arletty, A Eterna Garance

Uma das grandes divas do cinema, Arletty (Léonie Bathiat) alcança rapidamente o estrelato no teatro parisiense, obtendo algum destaque no cinema comercial francês dos anos 1930, em comédias de Sacha Guitry e Jacques Feyder. A consagração vem através dos filmes psicologicamente densos, esteticamente rebuscados e sociologicamente atentos do Realismo Poético Francês, movimento do qual se torna uma das principais estrelas, com performances marcantes em produções em sua maioria dirigidas por Marcel Carné e roteirizadas por Jacques Prévert.

Assim como Jean Gabin representa um novo padrão de masculinidade no cinema, os papéis por ela desempenhados no período elevam o padrão da representação feminina nas telas, então fortemente atado a estereótipos. Tanto como a recorrente femme fatale quanto como as prostitutas Raymonde, de Hôtel du Nord (Hotel do Norte, 1938) e Clara, de Le jour se lève (Trágico Amanhecer, 1939), Arletty dota seus personagens de profundidade psicológica e de contradições e idiossincrasias, à revelia das caracterizações que se confundem com as de sua própria persona: a bela mulher de origem humilde e humor rascante, cujos aparentes niilismo e objetividade não deixam de sugerir um espírito romântico e uma sexualidade intensa.

Sua luminosa atuação como a Garance no clássico Les enfants du paradis (O Boulevard do Crime, Marcel Carné, 1945), valorizada pela direção de fotografia de Roger Hubert (cuja química com Arletty produz um verdadeiro tratado de fotogenia), representa o ápice de sua carreira e a performance que a inscreve, definitivamente, na história do cinema.

Queda
Dona de uma biografia cuja dramaticidade rivaliza com a das personagens que encarnou na tela, sofre, aos 16 anos, o choque de ver o namorado morrer no terceiro dia da I Guerra Mundial, o que a faria jurar nunca se casar, “para não me tornar uma viúva da guerra ou, o que seria ainda pior, a mãe de um soldado”. Embora tenha tido uma vida amorosa intensíssima, cumpre, ao menos oficialmente, a promessa. Esta, no entanto, não lhe poupa dos dissabores causados pela explosiva combinação de amor e guerra: embora identificada com os setores artísticos simpáticos à Resistência Francesa, é acusada, ao final da II Guerra, de ser amante de um oficial alemão.

Na ocasião, declara: “Meu coração é francês, mas minha bunda é internacional” [Mon cœur est français, mon cul est international] – frase que, décadas depois, a tornaria objeto de culto entre as feministas euro-americanas.

O caso, porém, tem graves consequências: acusada de traição, é encarcerada no campo de concentração de Drancy e depois em uma prisão, onde permanece quatro meses. Proibida de trabalhar por quase três anos, é abrigada por amigos ligados à Resistência. Não chega sequer a tomar parte na première de Les enfants du paradis – ironicamente, um filme construído como uma crítica à França sob Vichy e que pode ser lido como uma alegoria anti-repressão e um libelo pela liberdade.

Embora retomasse a carreira, esta nunca mais seria a mesma, em parte porque o cinema francês jamais voltaria a produzir aqueles filmes plenos de atmosfera, a um tempo classudos e contundentes, que estrelara em fins dos anos 30; em parte porque o público, traumatizado pelas feridas da guerra, não mais se dispôs a prestigiar um ídolo que via como praticante da então chamada “colaboração horizontal” com o inimigo.

Suas atuações como a Inês de Hui Clos (Jacqueline Audry, 1954) ou a Blanche de L’air de Paris (Além do vidro vazio, Marcel Carné, 1954) não deixam dúvidas quanto ao seu grande talento, mas este dá mostras de não bastar. O declínio de sua carreira acentua-se com a irrupção iconoclasta da Nouvelle Vague. Deixa de atuar como atriz em 1963, após um acidente em que quase perde a visão durante ensaio da peça de Jean Cocteau, Le Monstre sacrés. Três anos depois, perde seu único filho e, em seguida, Jean-Pierre, o companheiro “de altos e baixos” com quem nunca casara. Sobrevive trabalhando como narradora.

Retorno Mas o tempo acaba por lhe fazer justiça: morre aos 94 anos, superando a maioria de seus contemporâneos e os traumas de seu tempo de estrelato. Publica duas autobiografias cujos títulos resumem sua mudança de espírito em relação ao passado (e acabam por refletir a transformação na relação do público com ela): Défense [Defesa] em 1971, e Je suis comme je suis [Sou como sou], em 1987.

Quase centenária, vive mais do que o suficiente para certificar-se de que se tornara um dos maiores ícones femininos do cinema, saudada por seus pares em documentários e depoimentos e objeto de culto internacional, despertando particular devoção entre cinéfilos, gays e feministas. A eterna Garance.

domingo, 15 de março de 2009

Caso "ditabranda" - A Violação ética do Direito de Resposta

Em mais um desdobramento do “caso ditabranda”, os professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato requereram à Folha de São Paulo, através de seus advogados, direito de resposta a renovadas acusações do diretor de redação Otávio Frias Filho, proferidas em 8 de março. Na ocasião, em resposta ao protesto contra o jornal organizado pelo Movimento dos Sem Mídia, a Folha retratou-se, não sem dubiedade, do emprego do termo “ditabranda” para referir-se à ditadura militar brasileira, mas, no mesmo texto, o publishing voltou a acusar os intelectuais supracitados, dessa feita de “democratas de fachada” por alegadamente não repudiarem “os métodos das ditaduras de esquerda com as quais simpatizam”.

A afirmação mostrou-se falsa, pois entre os vários textos e declarações que a contradizem inclui-se correspondência publicada pela própria Folha de São Paulo, em 2004, em que Comparato critica o regime cubano, como demonstrou em 11/03, alertado por um leitor, o jornalista Rodrigo Vianna. Nem mesmo tal evidência, reconhecida quatro dias depois como “erro factual” pelo Ombudsman do jornal, Carlos Eduardo Lins da Silva, fez Frias Filho dignar-se a se retratar com o acadêmico.

A publicação do direito de resposta
Na resposta dos professores, publicada em 14/03, eles põem sob suspeita o respeito da Folha pela ética do jornalismo durante o episódio, afirmando que “Sempre sustentamos, sem precisar receber lições de ninguém, que as vítimas de regimes arbitrários, aqui e alhures, merecem igual proteção e respeito, sem desvios ideológicos ou idiossincrasias pessoais”. É lícito questionar se a escolha dos signitários em produzir uma resposta simplesmente reativa aos termos ditados pelas acusações de Frias Filho foi a melhor opção, sobretudo em uma polêmica tão rica em material analítico. Porém os procedimentos adotados pelo jornal em relação à publicação do direito de resposta foram tão estapafúrdios que questões mais urgentes se impuseram.

Surpreendentemente, logo abaixo do texto dos professores é publicada uma nota da redação, substancialmente maior (736 caracteres, contra 470 do direito de resposta), saudando como “exemplo de transparência editorial” da própria Folha a retratação dúbia feita anteriormente pelo emprego da palavra “ditabranda” e afirmando que, assim, “Imaginava-se encerrado o episódio, mas os professores Comparato e Benevides estão empenhados em extrair dele o máximo rendimento possível. As opiniões de ambos sempre foram transmitidas pelo jornal, por meio de numerosos artigos, sem a necessidade de advogados. A “resposta” acima é publicada com base na Lei 5.250/67, editada pela ditadura militar, a fim de que vítimas de regimes cautelosamente chamados de “arbitrários” e vagamente situados “alhures” também se sintam destinatários dessa solidariedade envergonhada.”

É fato que, ao publicar o exíguo texto do direito de resposta seguido de uma palavrosa nota da redação em que as acusações que o motivaram são reiteradas, de modo ainda mais ferino e insidioso, a Folha não transgride nenhuma lei; viola, porém, de forma flagrante, princípios elementares da ética jornalística e do debate democrático.

Pois quaisquer que fossem os termos da nota do diretor de redação, sua simples publicação, logo abaixo do texto relativo ao direito de resposta, atenta contra a lógica e os preceitos éticos que regem tal instituto, cujo objetivo é dar voz a quem, previamente ofendido pela publicação, não teve o devido espaço para se defender - e não servir de ocasião para mais um round de um embate entre forças desiguais e no qual o jornal tem sempre a palavra final, como o exemplo em questão demonstra de forma didática.

Ofensas e insinuações
Porém, como fica claro através de sua leitura, não se limita à violação de princípios elementares da ética jornalística a nota do publishing da Folha: além da indulgência risível da auto-congratulação, o texto insiste na tentativa de desmoralização dos dois intelectuais com ofensas e insinuações de uma baixeza inconcebível numa publicação séria, quanto mais em um jornal que se pretende pluralista. Não cabe aqui discutir a insistência do diretor de redação, no texto cifrado que encerra a nota, para que os professores – que em sua resposta, vale frisar, condenam indistintamente regimes autoritários, "sem desvios ideológicos" - citem nominalmente Cuba, e como regime ditatorial de esquerda (só "autoritário" não serve para Otavinho). As implicações políticas da tentativa arbitrária de determinar os termos do debate público, restringindo-o - que também caracterizara as intervenções anteriores de Frias Filho no caso -, já foram examinados em detalhe em artigo deste blogueiro, publicado a semana passada no Observatório da Imprensa n°528, que oferece vários textos dedicados ao “caso ditabranda”.

A acusação de oportunismo contra os dois professores - que estariam, sempre segundo o jornal, tentando tirar proveito máximo do episódio - volta-se, com sentido invertido, contra o acusador: quem parece, de forma contraproducente e portanto, pouco inteligente (pois voltada contra os interesses do jornal), prorrogar ao máximo o episódio é o próprio publishing da Folha, com sua incontinência verbal que denota descontrole, e não os professores, que simplesmente estão a fazer valer seus direitos. Tivesse simplemente publicado a nota, o assunto tenderia a ser paulatinamente esquecido; como resposta aos novos impropérios proferidos por Frias Filho, a polêmica se reacende.

Da mesma forma, soa pueril a insinuação embutida na afirmação de que “As opiniões de ambos [Benevides e Comparato] sempre foram transmitidas pelo jornal, por meio de numerosos artigos, sem a necessidade de advogados”. Ora, é direito básico de todo cidadão fazer-se valer de meios legais para ressarcir-se de dolo ou prejuízo. A despeito de colaborações pregressas sobre assuntos outros que os dois tenham publicado na Folha, os proeminentes acadêmicos sofreram tentativa de desmoralização pública por parte do jornal, foram duramente atingidos em sua honra - inclusive através de acusação que se revelou falsa -, e têm todo o direito de buscar ressarcimento da forma que melhor lhes apetecer, sem ter de passar pelo constrangimento de contatar quem os ofende para solicitar espaço para suas respostas.

Ainda mais insidiosa é a tentativa de acusar os professores de autoritarismo por recorrerem a uma lei “editada pela ditadura militar”. A respeito desse instrumento legal, a professora de Jornalismo Sylvia Moretzsohn, em comentário no Observatório da Imprensa, observou que “Como o jurista Nilo Batista escreveu há mais de 20 anos, a Lei de Imprensa combinava elementos absurdamente antijurídicos com outros profundamente democráticos, entre os quais, justamente, o direito de resposta." Não obstante, a mania de procurar desqualificar o instituto do direito de resposta, internacionalmente reconhecido, associando-o, no Brasil, ao período ditatorial (o mesmo que o jornal considerara brando) é prática usual entre os barões da imprensa. A insustentabilidade da insinuação de Frias Filho porém, não se deve somente à sua generalização tão desmedida quanto maniqueísta, nem ao fato de que muitas das leis ainda em vigor no país foram criadas no decorrer dos mais de vinte anos de arbítrio e, goste-se ou não, continuam sendo rotineiramente utilizadas. A análise das razões que desautorizam a acusação do publishing acaba por revelar, na verdade, o alto grau de cinismo que ela embute - pois, como demonstrado pela última vez no início do primeiro mandato do presidente Lula, quem periodicamente impede o país de se livrar de tal entulho do período militar e ter uma lei de imprensa moderna, editada sob os auspícios da democracia, é precisamente a plutocracia midiática à qual Frias Filho pertence, para quem qualquer tentativa de regulamentação da atividade jornalística é autoritária e anti-democrática ("stalinista" é o termo acusatório que costumam bradar, não sem histerismo).

A Folha de São Paulo parece não se cansar de decepcionar aqueles que, um dia, acreditaram ao menos no seu respeito por princípios elementares do debate democrático.

sábado, 14 de março de 2009

A prosa de Vinicius e a homenagem a Antônio Maria

O “Poetinha”, como era carinhosamente apelidado, Vinicius de Moraes tende a ser naturalmente associado à poesia, seja como autor de sonetos (formato que inicialmente preferiu) e de outras modalidades de poemas ou como letrista de algumas das canções mais impregnadas de lirismo na música brasileira.

A proeminência da poesia em sua produção naturalmente relegou a um plano inferior o Vinicius prosador, que também é de alto calibre. É fato que alguma visibilidade foi dispensada ao autor de crônicas, embora ele jamais chegasse a se tornar especialista no formato, como um Drummond – que, trabalhando na imprensa diária, assina mais de 500 crônicas -, ou dele tenha se aproximado respeitando strictu sensu as características do gênero. O ritmo insano e a obediência a rígidos padrões formais não combinariam com o espírito livre de Vinicius - segundo o mesmo Drummond, "O único poeta que viveu como poeta".
Sua produção bibliográfica sob tal rubrica varia de 1 a 4 títulos, dependendo da fonte consultada, embora o único livro que publicou em vida que realmente autorize tal classificação seja Para uma menina com uma flor (1966); os outros três apresentam um híbrido de poesia e crônica, com as características formais da primeira estruturando um texto em que o humor leve, a temática do cotidiano e a forma coloquial de se dirigir ao leitor remetem à segunda. É o caso de textos que viraram canções, como "Para viver um grande amor", título de um dos livros mencionados.

Essa tendência a produzir híbridos de poesia e crônica não se restringe, no entanto, a tais publicações: tendo evidenciado-se, anteriormente, em algumas de suas criações poéticas, como na “Balada das duas mocinhas de Botafogo” (com tantas potencialidades narrativas que até virou filme) e em “Mensagem a Rubem Braga" – poema pouco conhecido e que, de toda a produção de Vinicius, é um dos favoritos deste blogueiro, pela abordagem lírica das temáticas do saudosismo e da amizade e pela evocação de tardes boêmias no Rio de Janeiro de então.

Mas é em alguns dos textos avulsos escritos nas contracapas de LPs, nas orelhas de livros ou em artigos avulsos frutos de vontade criadora e inspiração, trazidos à luz por vontade própria, que o talento do Vinicius prosador se apresenta de forma mais desenvolta, livre das amarras dos gêneros literários. Confira abaixo, em texto (retirado deste site) escrito em meio à agitação de julho de 1968 e dedicado ao grande compositor, cronista, jornalista, locutor esportivo, homem do rádio, humorista e figuraça Antônio Maria (Recife, 1921 - Rio de Janeiro, 1964).


Oração para Antônio Maria, pecador e mártir

"Nós saíamos os dois do "Vogue", e depois de deixar Aracy no táxi que a levava ao seu subúrbio, seguíamos de carro até o Leblon, às vezes acompanhando a matilha madrugadora de vira-latas a transitar entre as calçadas do Jardim de Alá; havia sempre um que parava para fazer pipi, o que provocava o reflexo dos outros, e era aquela mijação feliz — que eu nunca vi raça de bicho mais contente da vida que vira-lata carioca ao nascer do Sol. Parecia, mal comparando, uma fileira de lingüiças semoventes, uma a cheirar o rabinho da outra.

Você ria uma grande gargalhada, contente com o seu Cadillac velho, com a explosão da aurora no mar, com os vira-latas transeuntes e com seu novo amigo e poeta. E depois de passar pela casa de Caymmi, para ver se o baiano ainda ralentava a noite, acabávamos nos Pescadores enfrentando um filé com fritas, ou uns ovos com presunto — os melhores de Copacabana, porque eram feitos para a nossa grande fome. O pão era fresco e a cerveja bem gelada. Depois você me deixava em casa, eu dilacerado de saudades de tudo: de você, das conversas na boate amiga, onde dois barões, von Schiller e von Stuckart, disputavam em carinho e gentileza. E sobretudo da mulher amada ainda não tida. Você, maciste ao volante, cantava a marcha que tinha feito para a minha infinita dor-de-corno:

É muito tarde pra esperar por ela
Ela não vem ouvir a tua voz
Esquece, amigo porque a vida é bela
A noite é grande e cabe todos nós...

Um elo forte e viril se fizera entre nossas almas, e nós passamos a ser imprescindíveis um ao outro. A noite — que esperança! — não era grande, era pequena para a nossa gula de vivê-la em toda a sua plenitude. Tudo passava tão rápido, nós olhávamos as moças dançando, Aracy cantava, surgia a figura amiga de Fernando Ferreira, de repente a porta da boate deixava filtrar a luz da manhã. "Ele", como dizia Américo Marques da Costa, tinha despontado. Mais um dia, mais uma morte. Muitas mortes morremos nós, meu Maria, antes que a sua acontecesse para deixar-me mais só vivendo as minhas.

Tantos já se foram, atraídos pela Grande Noite... Evaldo Rui, Bicudo, Stuckart, Waldemarzinho, Louis Cole, Alzirinha, Mauro, Dolores, Ozorinho, Ismael Filho, Ari... Mas em compensação ai estão Paulinho Soledade e Carlinhos Niemeyer, respirando por um fole só, mas cada dia fazendo mais viração; Verinha, esse amor de Verinha, uma graça total, a nossa boa Araça, rainha das vagotônicas, e o querido Rinaldinho, que neste particular nada lhe fica a dever, ele e sua gargalhada que o rádio silenciou. E de vez em quando ainda acontece uma grávida, em geral moça do Norte. Porque a verdade, meu Maria, é que depois da pílula, moça carioca quase não muda mais de silhueta.

Às vezes eu fico pensando. Não sei se você gostaria de estar vivo agora, meu Maria, depois de 1964. Tudo piorou muito, o governo, o meu caráter, a música. Agora só se faz música para Festival e perdeu-se aquela criatividade boa e gratuita da década de 50. Todo mundo faz música com objetivo: comprar apartamento, ter um carrinho, ganhar popularidade, dobrar o cachê, vencer Festival, namorar as moças, bater papo furado. Isso não quer dizer que os caras não sejam ótimos compositores: eles o são. Mas tudo é feito num espírito muito toma-lá-da-cá, cada-um-por-si-e-Deus-por-todos. Assim, a meu ver, perde a graça. Aliás, não é culpa deles. Em absoluto. É o "esquema", como está em moda falar. Eles têm que estar na onda, senão não tem apartamento, não tem carro, não tem cachê, não tem Festival, o papo micha e as moças não dão. Ficam, por assim dizer, marginalizados, e aí nem o "Globo" nem a "Record" querem nada com os infelizes. Em resumo, meu Maria, não se perdeu a música; perdeu-se a sua dignidade.

Mas por um motivo eu sei que você gostaria de estar vivo: as moças. Elas estão, meu Maria, cada dia mais lindas e esportivas, havendo mesmo uns espécimes de se espetar na parede com alfinete. E acho que você iria gostar do "Antonio's", um restaurante novo do Leblon onde todo mundo vai, e tem de certo modo o espírito do velho "Maxim's" dos anos 51/53.De vivo mesmo, meu bom Maria, há Oscar Niemeyer e Di Cavalcanti, certamente os dois maiores homens do atual Brasil. Di está, nos seus 70, a coisa mais jovem, trêfega, inteligente e lírica do mundo, pintando cada dia mais lindo e batendo o melhor papo da República. E Oscar então, desse nem se fala. Elevou-se muito acima de todos, pelo gênio, pela consciência política, pela compreensão humana, pela simplicidade autêntica.E há os estudantes. Estão maravilhosos, e dando lição de cultura aos pais e professores. Saem à rua como um fogo que se alastra, fazendo comícios relâmpagos, topando as paradas com a polícia e conseguindo unir todas as camadas da população, com exceção dos milicos. Outro dia nós saímos em passeata cívica, e éramos 100.000 na Avenida Rio Branco: estudantes, intelectuais, clero, donas de casa, protegidos por um extraordinário esquema de segurança bolado pelos próprios garotos. Uma beleza. Se alguma coisa de bom tem que sair deste país, vai ser à base do novo movimento estudantil.

E, naturalmente, Chico Buarque de Holanda."

quinta-feira, 12 de março de 2009

O despojamento eficiente de "O Casamento de Raquel"

Um oásis no deserto de idéias e de fórmulas que se repetem à exaustão do cinema americano atual, a produção independente O Casamento de Raquel (Rachel Getting Married, 2008) surpreende pelo modo despojado e desprovido de grandes artifícios com que retrata dois dias na vida de uma ex-drogada que, internada para tratamento por ordem judicial, volta à casa da família para o casamento da irmã (Rosemarie DeWitt, em primeiro plano na foto). A despeito do orçamento pequeno e do tema presumivelmente pesado, o filme alcança um resultado notável, combinando, numa narrativa fluente e inventiva, leveza, humor e intensidade dramática.

Quem conhece a atriz Anne Hathaway só pelas comédias românticas hollywoodianas vai se surpreender. A protagonista de O diabo veste Prada dá um show na pele de Kym, a ex-junkie que tem de enfrentar, a um tempo, os conflitos e rancores familiares, a inveja da irmã certinha que realiza o casamento dos sonhos (e a culpa por alimentar tal sentimento), além das consequências de seu vício, que vão de uma insegurança e inadaptabilidade social crônicas à necessidade de cumprir excruciantes exigências legais – como exames de sangue periódicos e frequência às reuniões de ex-drogados - para provar que está "limpa". Como são pouquíssimas as cenas catárticas e a trama se desenrola de forma intimista, no mais das vezes sob o convencionalismo de um ambiente familiar, a performance da atriz, econômica nos gestos, é fortemente concentrada na expressão facial – mormente nos olhos - e na transmissão de uma energia corporal ansiosa e reprimida.

A produção investiu o parco orçamento em locações tão marcantes quanto versáteis, valorizadas por uma câmera que “segue” e se reveza, “livre”, entre as personagens, um tanto à maneira do Woody Allen de Maridos e Esposas (Husbands and Wives, 1992), mas mais relaxada. Sem as facilidades proporcionadas pelos grandes orçamentos aos quais está habituado, o talento do diretor Jonathan Demme (Filadélfia; O silêncio dos Inocentes) se evidencia ainda mais, particularmente no senso de timing para conduzir a trama. na decupagem inventiva e, sobretudo, na performance de alto nível que arranca do elenco de intérpretes desconhecidos mas afiados, cuja coesão torna ainda mais evidente o grande diretor de atores que revelou ser desde o início de sua carreira.

Há, ainda, detalhes saborosíssimos ora no subtexto ora no segundo plano, proporcionados pela ironia sutil na observação dos esforços das duas famílias para dissimular qualquer indício de constrangimento por se tratar de um casamento interracial, por pitadinhas de humor através de personagens secundários, alguns deles hilários - como o DJ japonês maluquete -, e pela irrupção, na garden party do casamento, de uma autêntica – você leu autêntica - batucada brasileira para, como diria Benjor, a-a-a-a-a animar a festa.

O Casamento de Raquel é um daqueles filmes aparentemente simples mas que se revelam ricos em detalhes e situações, fazendo o espectador sair do cinema e, de quando em quando, retomar a trama em sua cabeça. Um filmaço!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Carta a um ex-guru

Gabeira,

É com imensa vergonha que faço esta declaração, mas o fato é que você foi o meu primeiro guru. Ok, convenhamos, ler O que é isso, companheiro aos 11 anos é um pouco too much, mas os tempos eram outros, tinha a militância do meu pai, uma euforia no ar pela volta dos exilados, a ilusão de que o fim da ditadura estava próximo... enfim, transpirava-se política por todos os poros.

Ao contrário dos demais exilados, convencionais em termos comportamentais, você era uma figura muito sedutora para um adolescente: sequestrara o embaixador dos Estados Unidos, pregava uma sexualidade aberta e livre, defendia a legalização da maconha. Hoje sabemos que sua participação no sequestro não teve aquele destaque todo que você sugere no livro, mas é também verdade que muitas das críticas advindas de seus ex-companheiros mal disfarçam a inveja por, ao final, ter cabido a você o papel de contar a história. De minha parte, sempre lamentei que, no livro, tenha se recusado a fazer-se valer da denúncia da tortura como arma contra o regime. É que naquele tempo você tinha pudor, né?

Mas o livro que bateu mesmo, como um manga-rosa daqueles de que não mais se tem notícia, foi aquele “romance autobiográfico” quase que unanimemente execrado, Hospéde da utopia. Pirei com aquela história de sair por aí viajando (nos dois sentidos da palavra), transando, lendo e escrevendo, aproveitando a natureza. Ao longo da adolescência fui, como mochileiro, visitando aqueles paraísos todos: Trindade, Chapada dos Viadeiros, Trancoso (que agora tem estrada asfaltada, pra ver se acaba mais depressa com o lugar, você soube?). Os ares do tempo, a tal da zeitzeig, eram outros, lembra? Fumar um baseado não passava de um ato levemente transgressor, e os que o faziam não eram acusados de sustentar o crime organizado e, portanto, a violência, como acontece hoje no Brasil (e, não sei se você já percebeu, só no Brasil. Consome-se muito mais droga nos principais países ocidentais do que aqui, e ninguém é acusado de financiar violência nenhuma, o que prova que o problema não é o usuário, mas a farta mão-de-obra oferecida ao tráfico pelas condições sociais do país. Ou você acha que se, hipoteticamente, todos os usuários decidissem parar de comprar drogas o tráfico ia entregar as armas e passar a vender pirulitos e maçãs-do-amor?).

A primeira vez que me decepcionei contigo, Gabeira, foi nas entrevistas que deu para promover o filme O que é isso, companheiro?, aquela coisa indigna cometida pelo Barretinho, com um elenco tirado do TV Pirata visando esculachar os militantes de esquerda representados no filme – um deles, você. Lembro bem de um Roda Viva, dos tempos em que o programa merecia o nome: você sendo bombardeado e insistindo em defender o indefensável. Ah, sim, ia me esquecendo (deve ser a vergonha): antes disso, eu votei em você pra presidente! (no segundo turno votei em Lula; na época havia coerência nessa combinação de votos).

Mas o bicho pegou mesmo foi depois que o Zé Dirceu te deu aquele chá-de-cadeira e você, gritando feito uma prima-dona, abandonou o barco no calor da luta, arrumando uma porção de justificativas políticas alegadamente respeitáveis para o seu rompante. Num ponto eu concordo contigo: o que ele fez não se faz. Quer queira, quer não, você, tomando parte no sequestro do embaixador, arriscou a pele pra tirar o cara da prisão e o indivíduo te dá um chá-de-cadeira? (Aliás, cá entre nós: como era arrogante o José Dirceu no poder, não é mesmo? Tenho pra mim que o Lula ajudou a armar para o cara cair e assim não ter de dividir poder, o que achas?). O problema é que, agindo como agiu, você se iguala, por vias transversas, aos seus detratores de sempre na esquerda, que passaram décadas gritando por justiça social e distribuição de renda e, quando o governo Lula tira 35 milhões de pessoas da pobreza e cria um mercado para as classes C e D, continuam fazendo de conta que não é com eles, atirando pedras e fazendo o jogo da oposição de direita.

Oposição, aliás, da qual você virou uma espécie de musa justiceira. Fui um dois poucos que achei uma palhaçada aquela sua performance de vingador da pátria contra o Severino. Afinal, nada mais hipócrita do que a indignação seletiva dos que gritam “Ética!, ética!” apontando o dedo aos opositores políticos quando sabem que o problema é sistêmico. Mas esse comportamento hipócrita rendeu-lhe muitos frutos, não é, meu querido ex-guru? Logo você, que em seus livros é tão ferino em relação à “grande imprensa” aceitou de bom grado ser alçado à condição de paladino da honra da nação por nada menos do que a Veja! E (com o perdão do trocadilho) veja bem: numa época em que ela deixou de ser apenas o semanário preconceituoso e metido a besta de sempre para se tornar ponta-de-lança de uma operação agressiva da pior direita. Mas tudo pelo poder, não é mesmo, meu caro?

E olha como a vida é: depois de tudo isso, eu ainda me vi obrigado a apoiar a sua candidatura a prefeito do Rio! Coisas da realpolitik. Também, o roto ou o rasgado, não havia opção: entre você e Eduardo “Milícia” Paes...

Agora, sinceramente, preferia mil vezes você, rodeado de gaviões, digo tucanos, na prefeitura do Rio do que substituindo o babaca do Nelson Motta como colunista pau-mandado da Folha de São Paulo. Veja bem, não estou criticando o fato de você atuar no que antigamente se denominava “imprensa burguesa”. Dias Gomes e Vianinha nos ensinaram a importância de adentrar o – dá-lhes anos 60 – sistema e revertê-lo por dentro. Na própria Folha está Marina Silva, inteligentíssima e, esta sim, com uma preocupação ecológica genuína e, ao contrário de você, consistente ao longo do tempo, com uma colaboração semanal na qual mantém a dignidade. O que me incomoda é que ali, na página 2, você, como tem ficado evidente nos seus textos, está de bom grado cumprindo um papel pré-determinado, que interessa ao projeto de poder do jornal e ao seu próprio projeto político, baseado nesse neomoralismo tosco e hipócrita, palatável para a classe média mais retrógrada e preconceituosa e que sempre o rejeitou, e nada mais.

Gabeira, me diga uma coisa: você ficou babaca e não percebe o que está acontecendo, você sempre foi assim, ou você acha que nós é que ficamos babacas e não estamos percebendo as suas jogadas? Francamente, o que é isso, "companheiro"?

terça-feira, 10 de março de 2009

A volta de Collor e os limites da realpolitik

O papel do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na eleição de Fernando Collor para presidente da Comissão de Infrae$trutura do Senado (responsável por analisar, entre outros itens, os projetos do PAC), sua ostensiva recusa em agir em prol da candidatura da senadora petista Ideli Salvatti, preferindo afagar o PMDB de Sarney e de Renan Calheiros em troca da promessa de dividendos eleitorais no Nordeste na próxima eleição presidencial, torna urgente a reflexão acerca dos limites da realpolitik que caracteriza o modo lulista de fazer política.

Afinal, a senadora catarinense, uma das mais aguerridas vozes da base governista desde os escândalos do primeiro mandato, foi preterida por um político cujo passado evoca sérios dilemas morais não apenas em relação à honra (e, portanto, à imagem) do próprio presidente Lula, contra quem o então candidato Collor não se esquivou de usar as mais baixas táticas difamatórias – culminando com o “caso Miriam Cordeiro” – mas sobretudo no que concerne ao povo brasileiro. É uma afronta ver um ex-presidente, que, sob fortes indícios de corrupção, não teve sequer a hombridade de enfrentar o processo de impeachment (tendo renunciado antes do julgamento), voltar a usufruir das benesses do poder. Que tal excrescência se dê com a bênção do atual presidente trata-se de algo que, para muitos, se aproxima do escárnio.

Mais de quinze anos separam a renúncia de Collor do presente. Num país desmemoriado e cordial (no sentido buarqueano do termo) como o Brasil, isso equivale a uma eternidade. Tentativas de relativizar seus crimes ou mesmo de inocentá-lo e atribuir o processo que levou ao impeachment a conspirações midiáticas brotaram amiúde, até mesmo da pena de jornalistas bem-intencionados. Porém, os que viveram os desmandos de Collor, tanto os afetados pelo inacreditável e mundialmente inédito confisco monetário (que incluiu contas correntes e poupanças) quanto os que tiveram sua atividade profissional destruída pelo desmanche irresponsável do Estado por ele promovido - como é, destacadamente, o caso do setor cinematográfico – guardam bem vivas na memória as consequências dos atos de um dos mais irresponsáveis, arrogantes e nocivos presidentes que o país já teve. Para esses, a volta triunfal de Color é um insulto e uma afronta.

segunda-feira, 9 de março de 2009

O caso "ditabranda" e a tentativa de cercear o debate

A ênfase em condenar a inaceitável distorção histórica e axiológica representada pelo emprego do termo “ditabranda” em um editorial do jornal Folha de São Paulo, embora plenamente justificada, acabou por relegar a um plano inferior outro aspecto fundamental do caso em questão: a tentativa de restringir o debate público implícita nos termos da resposta de Octávio Frias Filho aos professores Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato.

Com efeito, a gravidade do problema não se restringe ao fato de o diretor de redação de um jornal invadir inadvertidamente uma seção intitulada Painel do Leitor para tentar desautorizar a opinião de dois signatários – embora tal ato já viole a ética das relações entre jornal e leitor -, e nem mesmo por fazê-lo de modo agressivo e, portanto, desrespeitoso. Essas são práticas condenáveis, mas o que torna a questão ainda mais espinhosa são os termos da resposta em si: é na afirmação de que os protestos dos dois professores contra o tratamento dispensado à ditadura militar brasileira não seriam válidos por não terem os signatários presumivelmente jamais condenado regimes totalitários de esquerda que reside o aspecto mais grave do caso, pois representa uma tentativa de regulamentar arbitrariamente o debate público, cerceando-o e atentando contra a própria liberdade de expressão.

Manifestada de modo intimidatório, essa tentativa de instituir a obrigatoriedade de se referir a um evento histórico “x” (no caso, o regime cubano) para que se possa tornar procedente a crítica a um episódio “y” que ocupa um lugar simetricamente oposto àquele no espectro político-ideológico (no caso,a ditadura militar brasileira) desrespeita a autonomia da livre manifestação intelectual e significa o estreitamento do debate, restringindo-o a termos que interessam ao jornal, mas não à livre circulação de idéias. Insere-se em tal lógica o fato de, mesmo após o jornal retratar-se (ainda que de forma dúbia) pelo emprego do termo “ditabranda’, Frias Filho continuar insistindo na crítica a Benevides e à Victoria e, mantendo a mesma linha de raciocínio – e o tom truculento –, chamá-los de “democratas de fachada”. Trata-se não apenas de uma acusação despropositada, mas – o que é mais grave, sobretudo para um órgão de imprensa - falsa, como o demonstra a longa folha corrida de serviços prestados pelos missivistas à causa dos direitos humanos e ao aprimoramento da democracia, sobretudo no período ditatorial. A Folha, portanto, não se limita à agressão e à tentativa de restringir, de forma truculenta, o debate (numa espécie de “dirigismo cultural de direita”?), mas o faz repetindo uma mentira (procedimento que, segundo um célebre publicista alemão, faz com que ela em verdade se torne). Por outro lado, não deixa de ser significativo, até mesmo em termos psicanalíticos, que os termos da acusação brandida pelo publishing da Folha contra os que ousaram criticar o jornal sejam essencialmente os mesmos das acusações que se avolumam e multiplicam pela blogosfera contra os Frias e seus produtos midiáticos.

Não é vão tal comportamento: obedece a um estratagema de desqualificação do discurso das esquerdas, assim como a tentativa de relativizar o arbítrio faz parte da dupla estratégia de, por um lado, num momento de crise comercial profunda da imprensa escrita, angariar leitores entre a direita mais abastada e conservadora, leitora de Veja e, por outro lado, tornando “branda” a ditadura, diminuir a importância da militância anti-arbítrio exercida pela candidata à Presidência Dilma Rousef.

Frias Filho, assim como seus colegas da plutocracia midiática, sabe que, somada ao monopólio da comunicação nas mãos de um punhado de grupos conservadores, a conjuminação de desideologização do debate público, queda vertiginosa do nível cultural da população e disseminação do discurso politicamente correto à americana - fenômenos das últimas décadas -, tornou o terreno fértil para simplificações fáceis e falaciosas do embate político, que desprezam a especifidade dos processos políticos nacionais e da interação destes com a ordem econômica mundial (é precisamente o caso da tentativa de igualar a ditadura brasileira e o regime cubano), acabando por beneficiar tremendamente a difusão do discurso hegemônico controlado pelas forças do mercado e difundido pelas grandes corporações de mídia.

A tentativa de desmoralizar e desautorizar Benevides e Victoria não é, portanto, um episódio isolado. Ela traz embutida o germe de uma estratégia de calar a esquerda, submetendo seu discurso – e, portanto, o debate político - aos filtros valorativos forjados pelas forças conservadoras durante o período de hegemonia neoliberal.

domingo, 8 de março de 2009

Uma Foto, Sem Palavras

(Guinaldo Nicolaevsky, 1979)
Exemplo de desafio ao poder ditatorial e patriarcal com o qual o blog homenageia as mulheres no Dia Internacional da Mulher

Grandes Figuras Contemporâneas - O Tavinho


O Tavinho era um menino triste e vesgo. Então seu pai, o Tavão, lhe deu um jornal de presente. Mas, cônscio da importância da educação, o Tavão, um çábio que não saía do edifício do jornal com medo de que os terríveis terroristas lhe explodissem os cornos, exigiu que o menino primeiro estudasse, para depois brincar de dono de jornal: mandou-o pra USP, onde o Tavinho conheceu outros filhinhos de papai como ele, só que ainda mais treinados na arte de afetar princípios democráticos para dissimular objetivos autocráticos. Esse bando de garotos logo cresceria e fundaria, sempre com o apoio de o Tavinho, um partido cujo símbolo é um gavião (ou algo assim).

O Tavinho enfim cresceu e pode usufruir de seu brinquedinho. A marca do jovem administrador se fez sentir em duas características que distinguem a TFP, digo FSP, dos demais jornais: a incrível brancura da pele de seus jornalistas, avessos ao sol e a tudo que os faça lembrar que moram em um país tropical, e a excelência de seus colunistas: Gróvis “Pitbull” Rosi, Heliana “Febre Amarela” Cantanrêde, Fermando “depois de gagá virei tucano” Gameira, Silberto “O Samaritano” Gimenstein, e a notável dupla formada pelo escrivão da corte (e amigo do Rei) Hélio Cáspari e por seu fiel cão, digo escudeiro, o acadêmico interiorano Júlio César Vila. Os dois desenvolvem atualmente um ambicioso projeto de reescrever a história do Brasil adotando a mitologia bíblica, com a ditadura correspondendo ao Paraíso, o período de redemocratização ao Purgatório, e o presente sob Lula ao Inferno. A esse imparcial e destemido escrete do jornalismo – só comparável à redação do JB em sua fase áurea – somam-se colaboradores que formam a nata do pensamento progressista nativo: Jozé “Não Largo o Osso” Zarnei, Luis Carloz "No Limite da Irresponsabilidade" de Marros, e o bisneto do grande dramaturgo alemão e proba figura de intelectual Hermínio o der Brecht. Como evidencia a diversidade ideológica dos nomes acima elencados, o desinteressado Eugênio Bucci está certo ao afirmar, n’Observatório da Imprensa, que a Falha não pode ser considerado um jornal de direita, pois publica textos de todas as tendências políticas.



Cansado de seu brinquedinho, o Tavinho resolveu experimentar novas diversões: assinou colunas políticas muito bem-escritas (se você considera uma sucessão de obviedades liberais alinhadas em um estilo pseudo-proustiano algo bem-escrito, é claro), tornou-se autor teatral prestigiado pela elite paulista (precisa comentar?) e experimentou o sexo antes dos 40 (!), namorando uma beldade global. Homem de idéias sempre à frente de seu tempo, o Tavinho descobriu recentemente, enquanto os mercados mundiais ruíam, o trabalho do guru do neoliberalismo José Guilherme Melquior, morto na década anterior, e o elegeu seu mentor intelectual. Eis porque nosso herói é um formador de opinião inato.

O Tavinho coroou sua carreira de homem de empresa, digo imprensa, cometendo um editorial em que classifica, corretamente, o período militar brasileiro de ditabranda. Afinal, a intensidade de uma ditadura restringe-se a uma questão matemática, não é mesmo? Portanto, basta comparar com as ditamenosbrandas de nuestros hermanitos... O Tavinho, aliás, entende do assunto, pois, segundo Beatriz Kushner, autora do livro "Os Cães de Guarda" (Boitempo Editorial), as kombis do jornal que o dândi da Barão de Limeira dirige eram emprestadas aos militares para transportar os perigosíssimos elementos de esquerda para o Doi-Codi, um dos centros de tortura da ditabranda (estarei enganado ou há uma terrível contradição entre estes dois termos?). Deve ser por essas e por outras que a FSP diz ser “um jornal a serviço do Brasil”.

Revoltado com a reação despropositada ao editorial, levada a cabo por um bando de leitores mal educados, aí incluídos dois intelectuais uspianos – ô, raça! –, o Tavinho, demonstrando equilíbrio, serenidade e espírito democrático, desceu-lhes o sarrafo numa seção apropriadamente intitulada "Painel do Leitor", decretando que, de agora em diante, fica proibido criticar a ditadura brasileira sem condenar a ditadura cubana. Isso é que é liberdade de expressão. Dá-lhe, o Tavinho!

sábado, 7 de março de 2009

Amor e Globalização em Hong Kong


Com o advento da internet em alta velocidade e dos sites de troca de arquivos, vale a pena abordar filmes que, mesmo dificilmente encontráveis no Brasil pelos canais usuais, podem eventualmente ser conhecidos através da rede.
Este post focaliza um dos grandes filmes realizados no continente asiático na última década. Conrades: Almost a Love Story (Tian mi mi, Peter Chan, Hong Kong, 1996) é, ao mesmo tempo, uma dos primeiros obras cinematográficas a tratar com propriedade o então pulsante fenômeno da globalização e uma bela, conturbada e nada piegas história de amor. Foi concebido, ainda, como ode a uma certa Hong Kong – cosmopolita, liberal, festiva – que, prestes a ser incorporada pela China (em 1997) estava sob risco, de acordo com a percepção vigente à época, de desaparecer.
O filme começa em 1986, com XiaoJun Lin (Leon Lai) chegando a Hong Kong. “Caipira” do interior da China, deslumbrado pela metrópole, ele vivencia o preconceito contra os chineses – sobretudo contra aqueles que, como ele, só falam mandarim numa ciade em que o idioma predominante é o cantonês. Sobrevive em subempregos, escrevendo cartas para a namorada que deixou no continente e morando no bordel de sua tia, uma velha prostituta que afirma ter sido amante de Willian Holden.
A menção ao astro de Sunset Boulevard (Billy Wilder, USA, 1950) é o primeiro de uma série de referenciais internacionais que perpassam a narrativa. Numa lanchonete da rede McDonalds, Lin encontra Leon Lai (Maggie Cheung, grande atriz e uma das divas do cinema chinês), garota arrivista que, visando lucro pessoal, o convence a estudar ingês na escola em que trabalha: “aprendendo cantonês você encontra emprego em Hong Kong; aprendendo inglês você pode trabalhar em qualquer lugar do mundo.” Ao vocalizar uma das idéias-chave da então nova ordem econômica mundial, o filme dá sentido às referências internacionais, evidenciando a globalização como um de seus temas-chave. O caráter multinacional da narrativa é enfatizado, ainda, através de menções ao Japão, Oriente Médio, Estados Unidos e Austrália (na figura do professor de inglês vivido por Chistopher Doyle, diretor de fotografia de obras-primas de Wong Kar-Wai, cujo ortodoxo método de ensino inclui frases como "Jump, your son of a bitch, jump!").
Contrapostos à imagem da velha bicicleta que Lin usa para trabalhar, símbolos da então nova cultura global reforçam tal significação: comunicação através de pagers, jogos da liga NBA, cartões de crédito. É através de uma máquina ATM, com os protagonistas vistos a partir de uma câmera subjetiva no interior da máquina, que são descritos seus altos e baixos financeiros – como quando acabam vítimas da nova economia global por ocasião da crise cambial que abalou a Ásia no período.
Numa seqüência-síntese da posição que Lin e Lai ocupam nessa nova ordem, os dois são vistos a partir do lado de fora de uma janela da filial do McDonalds em que trabalham. Falidos após um fracassado investimento comercial, ela limpa o vidro enquanto ele fala, como se estivessem em uma vitrine, tendo ao fundo, desolada ironia, uma imagem fora de foco do palhaço Ronald McDonald.

Tanto a trilha sonora - propositadamente cheesy, com aquele tecladinho bem anos 80 tornado ainda mais brega por arranjos de cordas açucarados - quanto as músicas interpretadas, na trama, por Teresa Tang, ícone de cantora popular na China nos anos 70, têm uma importância fundamental no desenrolar da trama, para a qual adicionam comentários ora cômicos, ora sentimentais. Além disso, é através de uma malfadada tentativa de aproveitar o sucesso de Tang, revendendo seus velhos discos, que os dois protagonistas se unem em sociedade.
O companheirismo nos momentos de baixa os aproxima ainda mais e os leva ao envolvimento amoroso. A partir do momento em que a relação se consome, a trama passa a avançar em sucessivas elipses (1986, 1990, 1993, 1995), a fluência narrativa valorizada pelo domínio da mise en scène, com nostalgia e paixão ilustrados por um padrão cromático em que o predomiante azul cobalto é por vezes oposto ao vermelho sangue, além da utilização de uma decupagem sempre meticulosa, com um uso primoroso do close-up resultando em um dos beijos mais bem filmados da história do cinema
O agravamento da situação econômica de Lai - que passa a trabalhar como garota de programa e torna-se amante de um membro da Yakuza - e a chegada da namoradinha de XiaoJun provocam separações e reencontros. Expressão da lógica do trabalho numa economia globalizada, as personagens se deslocam, ao longo da narrativa, entre China, Taiwan, Hong Kong e Nova Iorque, palco do grand finale. Um filmaço,para ver e rever.

Estreia pífio carbono de "Cidade de Deus"


Quem leva o Oscar a sério? Todos os anos, ali pelo fim de fevereiro, início de março, essa pergunta é repetida mundo afora. São poucas as pessoas a responder "eu levo!". Mas, no dia da premiação, é aquela audiência na casa das centenas de milhões mundo afora.

A dissimulação é compreensível: como levar seriamente em conta uma premiação que nunca contemplou mestres como Hitchcock, Max Ophüls e Fritz Lang e que só concedeu duas estatuetas meio de esgueio a Charles Chaplin: uma pela música de Luzes da Cidade (Limelight, 1952) e outra, honorária (que ele, aos 83 anos, se conservasse o ativismo político da juventude teria feito muito bem em recusar)?

Mas não é preciso olhar para o passado distante para questionar os Academy Awards: nos últimos anos, produções atolados de estatuetas têm-se revelado mera repetição de fórmulas (neé, Benjamin Button?) ou mesmo filmes medíocres - como Shakespeare in love ou Chicago - quando “confrontados” no multiplex mais próximo.

Quem quer ser um milionário (Slumdog Millionaire), contemplado com 8 estatuetas e que estreou recentemente no circuito nacional, não foge à regra. Dizer que o filme foi influenciado por Cidade de Deus é eufemismo. Ele copia descaradamente a estrutura narrativa, o tema (a evolução de um grupo de crianças pobres, com suas trajetórias reconstituídas em flashback a partir do único personagem que se tornou um adulto bem-sucedido, exatamente como no filme aqui produzido) e até os padrões fotocromáticos da obra dirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund. A coisa é tão descarada que até um clímax dramático baseado na violência brutal contra crianças os dois filmes têm em comum. (como acontece com o filme de Meirelles e Lund, Quem quer ser um milionário também tem dois diretores: o inglês Danny Boyle e o indiano Loveleen Tandan. O fato de você, eu e o resto dos mortais só termos ouvido falar do primeiro não tem nada a ver com herança colonialista, claro que não, imagina...).

O que diferencia essencialmente o filme estrangeiro é que a ação se passa na Índia (no caos urbano de Mumbai) e há um suspense, meio bobo, que atravessa toda a narrativa: conseguirá o ex-menino de rua que protagoniza o filme ficar milionário ganhando o prêmio máximo de um desses jogos televisivos estilo Sílvio Santos? Tan, tan, tan, tan...

Deve-se, a bem da verdade, reconhecer que o diretor Danny Boyle demonstra todo seu talento. Pena que este se resuma a dar um tratamento de videoclip frenético, anfetamina pura, à narrativa – o que, somado aos tiques maneiristas de cinema indiano, diluições “pra inglês ver”, trazidos por Tandan, sumariza toda a originalidade do filme. Oito Oscars? É pouco, por que não 12?

Muitos críticos apontaram que a exageradamente generosa premiação a Quem quer ser um milionário - reforçada pelo prêmio de Melhor Atriz coadjuvante para a espanhola Penélope Cruz - seria um indício do ímpeto multiculturalista que estaria a assolar a “academia”. Será mesmo? Enquanto a exigência de que os filmes concorrentes sejam falados em inglês, a tendência é que ela siga preferindo a bugiganga-pastiche aos originais de qualidade.